Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Quando tudo vira tédio

Por cansaço ou falta de vontade, não quero sair. Vejo as possibilidades, as companhias e lugares, nem muito nem pouco, apenas desinteressantes. Se ao menos tivesse certeza de que algo diferente fosse acontecer, mas parece ser sempre a mesma coisa, o mesmo papo, furado. Sinto como se estivesse investindo em nada, jogando dinheiro fora. Ao mesmo tempo, sei que ficar aqui não vai mudar nada. Mais vale o silêncio sozinho ou acompanhado? Emudeci porque já ouvi demais, o outro fala o que reflete em seu próprio espelho e, às vezes, isso não é suficiente. Só eu sei de mim, do meu tempo, da minha intensidade, dos meus sentidos. Em mim não cabe a equivalência do outro. Poderia arriscar e sair, uma companhia muda, ou uma conversa fiada, e alguns goles de cerveja, buscar uma embriaguez que alivie o corpo e a alma. Também posso me poupar, tomar uma dose forte e ir direto pra cama. Mas entendi que na introspecção não cabe nada nem ninguém.  Tudo vira tédio quando o tudo e o nada dão no mesmo.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A deixa do amor

Às vezes sinto que vou morrer. Outras vezes, que já morri. O trabalho virou um ato mecânico, tento ser máquina, quero não sentir mais nada dessa dor de tudo. O lazer tem sido como fugas, sair pra não sentir a ausência, encontrar na vida do outro algo que abafe os ecos da minha. Não, nunca aprendi o que é o amor, mas sei o que ele é quando vai embora. Sem ruído. Sem silêncio. Sem desistência. Sem resistência. Sem esperança. O vazio que o amor deixa não deixa espaço pra mais nada. É uma dor que de tão intensa não é sentida, e você procura em qualquer estrago físico traduzir a densidade dela pra saber de si mesmo, sentir o que ainda tem por dentro pra não morrer sem sentir nada, senão você vira só mais um corpo, um número no mundo. Sentir-se dor pra sentir-se vida.

domingo, 4 de dezembro de 2011

O descuido do mundo

Você quer o mundo e eu só queria ser o teu. Mas já não posso ser mundo, estou sumindo nessas vontades tão desencontradas, dentro e fora, e nesse corpo cada vez mais fluido me sinto adormecer de olhos abertos, uma insônia que me mantém alerta no escuro da noite e se apaga ao amanhecer. Meus movimentos perderam a agilidade, perdi meus reflexos. O que a gente vê agora? Estou frágil e não sinto fome. Dispenso companhias e imploro pela tua, fico só. E sinto que essa solidão cava um abismo cada vez mais largo entre nós, onde me enterro, me enterras. Abaixo do mundo que a gente quis um dia, enquanto você viaja outra vez.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A preguiça das letras de amor

o coração
perdendo as palavras
o timbre da voz
a firmeza da escrita
cada vez mais
achando em gestos
sutis
a comunicação.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A moça do olhar perdido

“Hoje às 17h30 no calçadão, vamos ver o pôr-do-sol, galera! Depois aquela cerva no Doors.”, escreveu e publicou na rede. Mais tarde, umas cinco ou seis pessoas a encontraram, alguns eram amigos mais antigos, outros, amigos de amigos. Era assim quase sempre, um convite à toa, encontros no fim da tarde e noite adentro, conhecidos ou não. Gabriela gostava disso, dessa imprecisão da vida, do acaso quase planejado e também de uma certa popularidade que veio meio que instantânea, talvez pela empatia que carregava desde o berço. Eram doses de sol, de chuva, de lua cheia, privês, sextas, sábados e domingos, não deixava passar nenhuma folga do trabalho. Até que não tinha um emprego ruim, fazia o horário durante a semana, cumpria as metas com antecipação, ficava a maioria do tempo cativando a vida. Tinha amores também. Platônicos, breves, intensos, convencionais. Nunca chegava nem saia sozinha e, raramente, com a mesma pessoa. “Tanta gente no mundo! Se prender às lamúrias de uma só pessoa pra quê?”, evitava as dores inevitáveis do amor, se gastava de pessoa em pessoa sem se fixar, sentia apenas as amizades enquanto não passava o tempo dessas tomarem outros rumos, porque, afinal, sempre tomam.

Érico a conhecera num desses encontros, amigo de Guilherme, namorado de Luiza, uma das amigas de Gabriela. Não sei se a palavra certa seria conhecer, pois quase nem se falaram. Talvez saber. Soube de Gabriela num desses encontros. Meio tímido, ficou ainda mais com toda a extroversão dela. O que lhe chamou atenção foi a verdade que cercava aquela garota, desde os sorrisos até alguns poucos momentos de olhares perdidos. Ela era bem ela, alguém tentando escapar das pedras da vida, aproveitando os bons ventos a seu modo, como todos, aliás, também tentam fazer todos os dias. Só que ela era uma verdade, era límpida em seus atos, de uma sinceridade que irritava quando mandava alguém praquele lugar por algum problema ocasional ou quando decidia simplesmente fazer o contrário de todos os outros, totalmente desimpedida. Parecia alguém que não se preocupava com a solidão, pois não fazia questão de manter as boas maneiras da boa vizinhança quando não queria. Além do mais, lá no fundo sabia que ficar sozinha era algo que só dependia dela mesma, não precisava se esconder atrás de máscaras. Essa transparência toda, por mais que afastasse algumas pessoas, também aproximava outras, mesmo que tudo fosse se passando em momentos breves, ébrios. Havia percebido nela também um certo desespero, como se buscasse em todos os lugares e pessoas alguém que pudesse postar-se assim tão nua quanto ela. Era o que era ou era o que ele queria ver. Passou a se importar.

Gabriela não percebia muito o que vivia, pois tentava demais perceber tudo, longe e perto. Na tentativa de sair das superfícies e imergir noutros sentimentos, acabou se tornando vaga, perdendo o ponto. De tanto ir e vir, com muitas perguntas e nenhuma resposta, passou a viver as coisas de forma imediata, apressada. A única coisa que não perdera foi a si mesma, sua essência, mesmo não notando mais nos espelhos quem olhava, só os outros viam. Os outros que a acompanhavam vez por outra, aceitando seus convites, menos Érico, que limitou-se a apenas ter conhecimento deles. Sabia sempre onde iria e a que horas iria, o que qualquer um poderia saber se quisesse. Na segunda ou terceira, e última, vez que se encontraram, tiveram mais proximidade, conversaram um pouco sobre qualquer coisa, mas isso só o convenceu de que não era isso o que ele queria, então resolveu não estar mais tão à vista, já que queria ser visto. O que ele não sabia é que ela jogava convites ao vento e ficava à espera. Esperava que alguém chegasse mais perto, que de qualquer coisa saísse alguma coisa, esperava talvez por ele, pelo quarto encontro. Uma espera já dormente. Ela, que fazia de todo mundo troféu, mal sabia que era troféu de todo mundo.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Nota de desfalecimento

Aos meus queridos que me cercam no dia-a-dia, no passado, presente, futuro ou imaginação, em pensamentos fixos ou móveis, toques ou olhares, suspiros ou declarações, desejo uma felicidade plena, eterna, dessas que encontramos em momentos breves, espontâneos, uma sinceridade que, mesmo mentida por tão verdadeira, mantenha a chama acesa da esperança, ou ilusão. Peço perdão pela distância, ou pelo descaso, por vezes tão presentes, que me posto, pois apesar de ainda acreditar nos sorrisos ingênuos de um brinde ou abraço, no instantâneo, não me iludo mais com proximidades. Sou só. E o tempo todo estou somente. Espectadora da alegria alheia, mesmo que minha. Feliz, talvez, de um sentimento vivido, sentido, mas adormecido ou morto. Pois sou corpo sem alma, não consigo mais manter a calma e tampouco largar as armas. Além de tudo, peguei distância pra ver melhor o que não havia e acabei não vendo muita coisa boa. Fui corrompida e perseguida por muito tempo pelo mundo do sim, dos risos frouxos, das mãos escorregadias, estou agora em queda livre. Talvez haja algum galho seco que eu possa me agarrar, talvez uma flor ainda por vir, talvez  tudo, talvez nada. Talvez eu volte. Por enquanto, o que me interessa manter em vista é a relatividade, o acaso, e essa distância, tempo e espaço, na qual tropeço e caio em cada prova de.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

- Desliga e acabou.

O silêncio do outro lado da linha
depois do agora, do tudo
não era o de quem vinha
não diz nada 
não são palavras nem atos
e sim um fato
é apenas um telefone mudo
de quem não grita pelo futuro.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

"Um passo atrás, dois a frente"

Menos eu. É quase alguma coisa assim de exclusão com subtração. Todos, menos eu. Estou muito menos eu. Deu pra entender? É que se não deu, não vou poder explicar, tenho que pensar em outra coisa, não em mim, mas talvez no que me sobra. Pensar no amor, parar pra pensar nele, pensar pra parar nele. Só que não entendem: parar pra pensar no amor pressupõe um não pensar que se pensar nele, não se rende a ele. Como um suicida à beira de um prédio, avistando apenas o céu por alguns instantes, depois olhando pra baixo, carros, pessoas, talvez olhando pra frente, se deixando cair, não pensa, porque se pensar, não pula. Mais ou menos isso. Menos! É como tenho me sentido. Ao lado dela ou longe. Mas de que amor estamos falando aqui, esse que não é mais? Talvez deva parar pra pensar nisso. Talvez seja a hora de buscar outra sanidade aqui dentro e dar um passo atrás. Ou a frente. De qualquer forma, não seria eu. Então não penso. Ou não. Onde menos devo ser ou estar?

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Pássaro de neve

 mayara moreira.


Estava tão fria que abafava o calor do sol, tinha o mesmo clima que precede alguma nevasca em torno dela. O tempo se fechando, as cores se apagando, o vento sutil, mas gélido. Todos ali pareciam querer se esconder também, se abrigar em algum lugar seguro que não os óculos escuros que cobriam seus rostos apavorados pelo sopro sereno de vida que ainda permanecia no rosto dela. Parecia sorrir, parecia querer deixar escapar ainda aquele sorriso meio ingênuo, meio sofrido, que só ela tinha quando sentava aos pés de uma árvore ou de uma nuvem para acalmar as angústias que os olhares afiados dos outros lançavam em seu coração, mesmo que despercebidos do que faziam. Fria pelo abraço da morte o qual buscou, mas viva por tudo o que ainda tinha a sentir seu corpo miúdo. Além disso, estava mais pálida do que de costume e os cabelos negros, dessa vez naturais, acentuavam o tom de partida. Opostos simétricos que arrebentam a corda num jogo de força, sem vencedores. 

Havia um precipício dentro dela que jamais conseguira entender. Análise, terapia, meditação, nada, nada resolveu. Abandonou-se em si e deixou que os chãos a levassem pra qualquer lugar, pois tinha ainda esperança, talvez pelo caminho encontrasse outras formas de voar por cima desse abismo. Foi então que vieram as confusões. Amores, paixões, platonismos, amizades, sentimentos furados que dispensam razões e também alguém com tantos furos quanto eles, pois ambos precisam de qualquer coisa que os mantenham. Viu-se numa disputa dela contra ela, o amor precisava sustentá-la e sustentar a si mesmo. Agonias, dúvidas, vontades, ausências, traições. Mas era delicada demais, pois não teve tempo de reforçar seu corpo pelos anos que a tomaram, buscou tanto sua alma que perdeu a força da carne, não suportou nem a si mesma. Foi uma luta vã que serviu apenas para deixá-la consciente por um tempo. Tempo necessário para mostrá-la já tão quebrada a outro e dar vida a outro tipo de vida. Uma espécie de loucura a dois que colava um ao outro e todos os outros sentimentos que um dia a fizeram ir mais e mais fundo em si.

Foi uma desconstrução que uniu pedregulhos, formou batentes e desses, degraus improvisados. Construíram juntos seus reforços e suas fugas. Iam além do que os passos permitiam, num voo de pássaro novo. Mas ainda faltava algo. Ela ainda sentia aquele abismo e queria tirá-lo dali, pois então talvez tudo se tornasse pleno ao menos pelo tempo dela sentir um sorriso largo em seu rosto. Subiu as escadas levando consigo cada pedaço de concreto até o ponto mais alto, assim jogaria tudo lá embaixo e taparia todos os buracos que ainda haviam. No alto, abriu os braços e sentiu o vento bater contra seus cabelos, sentiu-se segura, algo ali a protegia. Tão serena, tão leve. Tudo era real naquele momento, até ela, seu corpo frágil, sua alma pesada. Um sorriso escapou deixando mostrar os dentes tão brancos quanto ela antes do voo... Mais parecia flutuar.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Amor bordado

Eu
que tanto quis
nós
sem pontos
fui logo cair na lábia
da moça
que não dá
ponto
sem
nó.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

•Rec

— Por que você fez isso?
— Mas eu não fiz nada.
— Então por quê?

Nos diários de uma memória falha, releio coisas que escrevi na minha vida. Tudo borrado. É que já tentei apagar e reescrever, retomar causas perdidas. É que ainda quero poder viver tudo outra vez, só que dessa vez diferente: traçar o futuro no passado. Nessas andanças do amor, me inverti, perdi o fio da meada das paixões, que ela se converteu.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A sociedade do nojinho

Sem ter muito o que dizer. É como tenho andado ultimamente. Coisa de quem se apegou tanto às palavras e aos gestos, que fundiu às pessoas, esperando delas alguma reação, interação, e descobriu que não, não é bem assim. Porque as pessoas são grosseiras, não aquelas que às vezes passam pela gente e baixam a cabeça ou olham como se esperassem algum cumprimento pra também cumprimentar, mas dessas que fixam o olhar em você e depois viram a cara, fingindo que nem existem, achando que o mundo é pouco. Quando penso nessa grosseria, lembro do nosso instinto, aquele mesmo que nos assemelha aos animais silvestres, peçonhetos, caseiros. E é ai, justamente, que me calo. É que ainda acho que quem pensa que é gente demais pra gente, é menos gente do que pensa.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Intimidade

De perto, quando os olhos se calam,
o bonito fica feio
o feio fica bonito
e todo o resto grita no silêncio de duas bocas.

sábado, 30 de julho de 2011

Do tempo que tudo vira pó quando nada era concreto ainda

Por que se mente pra quem gosta?
Pra não atingi-la de uma maneira que ela não espera ou suporta?
Mas e se a mentira for a maneira que ela menos espera e suporta?

Outra vez ela viu um avião cruzando os céus. Pensou que para além daquele objeto pintado no quadro azul, existiam mais coisas, pinturas, existiam pessoas e nessas pessoas existia uma vida a ser contada ou ainda vivida. Ficou ali pensando na vida dos outros que estavam num avião, cruzando os céus e indo pra algum lugar e também pensou que não importaria mais o que fizessem, chegariam em algum lugar, tinham que chegar, a não ser pela fatalidade de um acidente, mas ainda assim, chegariam em algum lugar. Pensou por um instante que era só um avião e que eram só pessoas, pensou que talvez nem houvesse nada ali, que talvez fosse um pássaro diferente, que talvez fosse uma ilusão que criara pra distrair a mente dos pensamentos que há tempos a incomodavam. Pensou que talvez. Não, não podia mais pensar assim. Tinha que pensar mais forte, mais pé no chão, tinha que parar de avistar aviões e ficar imaginando o que poderia ser ou ter sido. Mas então ficava sem saída, pois ver aviões era o único modo de não ver mais nada que estava bem debaixo do nariz dela e isso era preciso pra que não voltasse a querer ver aviões. Ver aviões para não ver a verdade e não ver a verdade para não querer ver aviões. E a verdade é que era mentira, era demais pra ela saber disso. Ou não, pois ela suportava. Só doía demais nela ao ponto de não sentir dor alguma. Outra vez estava quebrada, mas desta, virando pó, como se não houvesse mais jeito nenhum de se reconstruir. Outra vez, sem chão, vendo aviões.

Foi de um jeito diferente dessa vez. Além da mentira, havia o engano. Enganar-se com o próprio espelho, um susto. Porque o amor de quem ama é refletido em espelhos, um de frente ao outro, as imagens ficam refletindo, refletindo, refletindo. E o outro amor, o do amado, confunde-se com imagem e com espelho. Nessa confusão é que ela havia encontrado alguém pra se segurar, pra sair desse mundo de aviões que devem chegar a algum lugar, pra já estar em algum lugar e ao mesmo tempo indo pra todos os lados. Queria tanto essa imagem, que se confundiu com os espelhos quando foram se quebrando um a um, tentando agarrar a todo custo aquele amor primeiro que havia se perdido pra sempre em tantos reflexos. Porque aquele amor não era engano nem mentira, era uma espécie de balão, cheio de ar, belo, leve e livre. Passou tempos enchendo balões, colorindo todos, cuidando, assegurando para que não estourassem. Mas o tempo, entendeu, se não estoura os balões, os leva pra longe ou os secam. O problema é que ela não conseguia perceber o que havia acontecido com aquele amor, que era balão, ou espelho, ou imagem, ou avião. Só via a si mesma, entre vidros despedaçados, plásticos desfigurados, céus borrados, misturada ao ponto de não se encontrar por inteira, original.

A mentira deixa uma sensação de desgosto que parece nunca mais passar, além dos espelhos quebrados, que acabam com todo o resto que havia, deixando apenas restos. Passa a refletir tudo em cacos, em pequenas partes embaçadas, não se reconhece mais o que reflete. E era assim que ela se sentia e tentava evitar olhando aviões. Ela se sentia quebrada, restos. Suspirou quando o avião sumiu entre as nuvens, entrou em casa. Tocou sua pele pra ter certeza de que ainda havia algum corpo ali, talvez um banho contornasse suas linhas, a água reformasse seus traços. Achou no canto da prateleira um pacote esquecido de argila, viera não sei de onde, disseram que era bom pra pele, cicatrizante. Juntou, então, argila, água e pele, começando um tratamento que duraria mais do que o tempo de secar tudo.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

segunda-feira, 25 de julho de 2011

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Os invisíveis

Ontem assisti ao programa Conexão Repórter, que passa no SBT, pela primeira vez. Pelo que entendi, o repórter se infiltra em algum contexto e desenvolve a matéria de um modo bem cru. O nome dessa foi Os Invisíveis com a intenção de retratar não só a vida rotineira dos moradores de rua, mas também a vida que precedeu aquele destino e a forma como essas pessoas [não] são percebidas pela sociedade. O nome é claro e objetivo, bem adequado aos fatos. Essas pessoas estão por toda parte e em lugar nenhum, vivem e morrem no anonimato e, como foi dito na matéria, só ganham alguma visibilidade nas estatísticas, quando viram algum número. Dois pontos me chamaram bastante atenção: no primeiro, um dos produtores do programa caracterizado como um mendigo tentou entrar em dois locais da "classe alta" para se alimentar, mas foi barrado pelo segurança, mesmo alegando que tinha dinheiro pra pagar, por pura discriminação social; e o segundo, o qual me deixou plenamente sensibilizada, foi a história de uma mãe que passou a morar na rua pra cuidar do filho, dependente químico que perdeu tudo por causa das drogas e nunca conseguiu se recuperar do vício, indo parar nas ruas por intolerância dos familiares. Eis a fala da mãe, que comprova o amor incondicional, quando o repórter questionou sua decisão:
—  Não basta amar um filho na hora que ele tá numa faculdade se formando num doutor, num psicólogo, num advogado. É nas horas da dificuldade. [...] Pra viver sem meu filho eu prefiro morrer com ele.

Segue o link do vídeo: Conexão Repórter - Os invisíveis

Isso me fez lembrar de um trecho do Caio Fernando Abreu:

Escuta aqui cara, tua dor não me importa. Estou cagando montes pras tuas memórias, pras tuas culpas, pras tuas saudades. As pessoas estão enlouquecendo, sendo presas, indo para o exilio, morrendo de overdose e você fica ai pelos cantos choramingando o seu amor perdido. Foda-se o seu amor perdido. Foda-se esse rei-ego-absoluto. Foda-se a sua dor pessoal, esse seu ovo mesquinho e fechado.

A intenção aqui é expandir meu corpo para além dessa carne fria cheia de si que circula sempre ao redor do mesmo ponto e, quem sabe, acordar as mentes adormecidas e demasiado egoístas e fúteis que existem por ai. A questão não é encontrar nos problemas dos outros uma forma de alívio ou renúncia de si, mas refletir e agir acerca de questões que realmente merecem atenção e urgência. Os invisíveis também somos nós que nos omitimos diante de tantos problemas que esse mundo tem. E essa sim é a verdade nua e crua!

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Escrita a dois

Traço o corpo dela com a tinta dos meus dedos, crua, promiscua e de uma sensibilidade que nem a pena do mais nobre dos poetas possuiu um dia, e as palavras vão saindo tão naturalmente que não cabem numa poesia, mas num filme mudo e em preto e branco que, aos poucos, vai ganhando cores e sons em tons singulares, o meu e o dela, ambas contracenando. Movimentos improvisados, rimas sutis, frases curtas, textos objetivos e cheios de subjetividade, aquela que só a gente sente, eu e ela, várias histórias numa só, sem a morte do ponto final que precede a rotina, o óbvio e o diálogo monossilábico. Enquanto chove lá fora, e aqui dentro, não escrevo numa folha de papel lamúrias de um passado, nem forço arte, fico lembrando do corpo dela de ontem e de hoje e rabisco meus dizeres nas paredes e no quintal, carvão, guache, só pra enrolar até a hora de sua chegada e de uma nova página, outro roteiro.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

[Des]enganos

Amo o seu sorriso e as suas mentiras
falsos ou não.
Porque o amor é uma criança boba
faz do você-meu real, tudo verdade.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Árvore de cor


Venho tentando acalmar meu coração ultimamente, evitando alguns pensamentos, não indo atrás de algumas coisas, das satisfações que já nem acredito mais. O problema é que isso vai deixando cada vez mais o coração sem vida, frio, quase congelado, e não é justo que tanto sentimento assim empedre só por falta de poda, então eu tento e tento e tento, não ver aquilo, lembrar daquilo, considerar outros nós, amarrar alguns galhos quebrados, reaproveitar os frutos podres, tudo vira adubo. Não tenho tido muito sucesso. Talvez eu só esteja tentando demais, querendo demais. Talvez seja isso mesmo de nascer, crescer e morrer. Nossa árvore veio de uma semente tão pequena que um pássaro por descuido deixou cair num jardim alheio, já deu frutos tão lindos, mas deu tantas pragas, que não resistiu quando veio o mau tempo e agora é uma coisa qualquer abandonada num terreno baldio. O que me acalenta é saber que disso ainda pode ser feito um lápis de cor.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Da mentira com fundamento

Aos invejosos que mentem, enganam e ainda querem ter razão.

Falou que Deus não quis dar asa à cobra
Seria um bicho ameaçador
Mas tem uma peste delas avoando
Que o diabo fez
(Raul Seixas)

Se for pra mentir, que seja pra esconder alguma coisa relevante que vá magoar o bem querer ou pra tornar a vida mais bonita. É uma ingenuidade até bela. Agora, mentir pra conseguir alguma coisa prejudicando com total consciência o outro é uma coisa muito podre, tão podre que tampa os sentidos e a gente não consegue nem sentir o cheiro. A falsidade é uma coisa tão sutil, né? Tanto que é toda sonora, não-vibrante, que nem o sibilo da serpente pedindo silêncio. E tem serpente que é tão linda que a gente se ilude mesmo. É aquela coisa, tem pouco dente, sem membros, olhos pequenos, tem quem desconfie não. A FALSSSIDADE segue rastejando atrás do invejado junto ao INTERESSSE, vai bulindo ao redor, catando tudo o que pode pra depois inverter a vida de algum pobre coitado que ainda tem coragem e inocência de acreditar em conversa pra boi dormir. Essas coisas puxam a gente pra trás de um jeito que a gente nem sente, só percebe depois que se livra, por sorte ou por acaso, no arranque que a vida dá. O lado ruim é que nem todo mundo percebe junto, ai fica aquela pontinha sempre tentando trazer à tona o bicho ruim que persiste em rodear o terreno esperando algum descuido. Sei não, mas na minha cidade isso se resolve num é no facão não, é na mão mesmo. Ou pior, nem na mão, mas na palavra. Ou no silêncio. E a minha negação da palavra tem a dizer só uma coisa: quem tenta envenenar, engole o próprio veneno.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Sólido espontâneo

Sem muita pressa, seguiu pela calçada o finalzinho da tarde, à beira do meio-fio, sentindo o maior orgulho por ter fechado mais um showzinho num restaurante da cidade. A carreira estava indo bem, ela era boa nisso, afinal, e sentia cada vez mais palpável a satisfação por ter escolhido o caminho que realmente queria. Parecia até historinha de autoajuda, onde tudo dá certo. Era uma garota não muito magra nem de muito porte, tinha lá seus vinte e sete anos, cabelos nem lisos nem ondulados e de um corte mediano, as roupas eram bem leves, escolhia sempre as lojas mais antigas, pois já conheciam seu gosto, assim evitava o trabalho de procurar o que vestir na próxima estação, morava com o irmão mais velho, mas quase não o via, pois ele passava a maioria do tempo trabalhando na empresa de computadores, herança de seus pais que tinham sumido no mundo em busca de outras propostas de vida, algo diferente daquela que termina num quadro em família no qual todos sorriem, mas ninguém está realmente feliz. Ela, por sua vez, não queria aquilo, foi então que resolveu abrir mão de alguns luxos impregnados desde a infância e procurou na simplicidade de outros sons sua própria melodia. No início, foi meio difícil, tanto pra ela quanto pro irmão, que teve de arcar sozinho com todo o trabalho, mas logo tudo foi se ajeitando quando conseguiu emprego na loja de CDs. Ali estava ela e seu violão quando chamou a sua atenção um som bem distante e indefinido, mas o suficiente para que avistasse uma janela no segundo andar de uma das casas e dobrasse a esquina, entrando naquela rua sem asfalto e sem saída. A janela estava meio aberta, algumas cortinas enfrentavam o vento, iam pra lá e pra cá, inquietas, dando a impressão de uma água-viva em pleno centro urbano e reluzindo vez por outra a luz amarela que saía do quarto. Parecia um mar que havia absorvido completamente a luz do sol. Pôde perceber que junto à música mal compreendida havia alguém noutro ritmo, dançando como se nem estivesse ouvindo nada, era uma sombra ou era um rapaz, às vezes se confundiam e foi exatamente isso que chamou a atenção dela por mais alguns minutos, era ele. Sentou-se num tronco de árvore que havia por perto, um tipo de banco que muitas pessoas dali usavam para suas conversas diárias, e passou a sentir cada passo que o rapaz dava, o balançar das cortinas e até mesmo o som que vinha de dentro. Como não entendia de dança, julgou ser um balé meio jazz meio tango, sorriu sem graça pela total ignorância e numa tentativa de autodesculpa pegou o violão e começou a arranhar algumas cordas, um prelúdio que cabia perfeitamente àquele momento, a ela e ao rapaz. Ficou por ali alguns minutos dedilhando e acompanhando os passos do jovem, era como se só houvesse aquilo: não mais tempo, não mais espaço, apenas os sons do violão e as vibrações dos movimentos. Imperceptível, a noite caiu sem querer e muitas outras luzes se acenderam, as cortinas pararam com o vento quente e a música também, a dele e a dela. Somente duas coisas continuaram a navegar naquele mar, os olhos dela e os passos dele. Quando deu por si, já era hora de estar em casa, havia combinado com o irmão de se encontrarem, era aniversário dele, sairiam pra algum lugar em busca de alguma interação que os mantivessem ligados um ao outro. Ainda via o rapaz pela janela, mas outra vez teria de ir embora, cedo ou tarde, guardou o violão, avistou outras pessoas pela rua, nenhum conhecido, e continuou, seguiu rua adentro.

domingo, 3 de julho de 2011

Se um dia nascer feliz

E você mente e mente e mente e eu caio e caio e caio. É muito desgosto pra uma pessoa só, talvez por isso eu esteja dividindo com outras partes e dando corda ao ciclo do "desconta lá". Seria mais fácil se o jogo fosse o bate-e-volta. Quem disse mesmo que o caminho mais fácil pode não ser o melhor? Aqui passou foi longe o sono também. Tenho andando triste, que nem você, mas não tenho usado isso a meu favor, que nem você. Porque não sei ainda reaproveitar as coisas. Sou dessas que vem pra casa depois de uma discussão e deita na cama torcendo pra dormir logo. Tive um pesadelo e até nele você estava. E mente e volta e invade e vai. Tentei segurar as barreiras por aqui, não deixar a água entrar com tanta força e inundar tudo isso que ainda está seco, mas parece que você não suporta, né? E pior, cobra, vai tirando pedrinha por pedrinha, rastejando e emburacando por onde der até desabar tudo e me afogar com esse teu gelo. Nessa história de cada um com a sua cruz, acabei tirando a sorte de pegar uma que engorda. Sei não, mas sabem lá que eu mereço mesmo, vão dizer que é o destino, vai dizer que eu gosto. O sol está quase apontando o domingo, tem gente indo dormir, os que escolheram o fácil e o melhor, e eu aqui acordando, pensando em umas coisinhas, fichando outras, tentando arquivar algumas. Anotando tudo pra não esquecer. Porque esse é o meu mal, o esquecimento. É meu bem também, mas no caso dela é corrosivo, é coisa que quando você vê já tomou o corpo inteiro e não tem mais jeito, cedeu. Num gosto disso não, tenha certeza, bichinha. Queria ao menos a constância de um amor problemático pacífico, daqueles que brigam, cada um corre pra um lado mas se encontram na próxima esquina, e não um amor problema constante, desse que só você corre pra longe, inventa até o que não gosta. Tive um pesadelo, você quase morreu nele, acordei com o coração acelerado e agora não consigo mais dormir.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Making of

Procuro em teu rosto delicadamente severo algum traço de mentira, mas não consigo encontrar. Você passa pela porta, para e sorri como se eu fosse a única ali na sala e eu acredito, porque você me deixa cega, não vejo que logo atrás tem outras pessoas e que dentre elas, tem as que te conhecem tão mais do que eu, ou reconhecem outras faces, e me dizem que não é você a que é pra mim. Olho bem e não consigo mesmo ver traços de mentira, mas posso perceber face sobre face disfarçando qualquer rastro no sorriso da pessoa que um dia se pôs tão frágil diante dos meus braços já tão cansados, suplicando cuidados, desabafando desilusões. E eu me perco entre algum desses rostos, não sei mais quem sou nem o que sinto, só me pego pensando em você como se acreditasse em cada palavra que ecoa nas minhas lembranças e desejando que esteja comigo outra vez, segurando a face que me mostrou, tentando a todo custo mantê-la fixada ali pra não ver os traços que tanto dizem por ai. Acredito sim que você seja várias, pois até sempre convivi com isso, você com tantos outros e comigo. Mas não posso acreditar que, dessas várias, a única pela qual me apaixonei seja a mentira mais reluzente, a que não cabe em mim, se um dia me foi por tão completa. Leio o que você escreve, ouço o que você diz, procuro em cada linha algum rastro, coisa qualquer que me acorde e diga que não é mais a minha verdade, mas não, não encontro, nem você nem eu, só uma jura acobertando todo o resto e dando corda no relógio até marcar a hora certa, trezentos e sessenta e cinco faces e um ato por detrás das cortinas.

domingo, 12 de junho de 2011

Manual do bom cidadão

Me sinto segura no meu bairro quando vou comprar alguma coisa pro almoço, na minha cidade quando quero me distrair um pouco, no meu estado quando tenho vontade de conhecer outras praias, no meu país quando pretendo explorar outros climas e no meu planeta quando quero vivenciar outras culturas. Me sinto muito segura quando quero fazer qualquer coisa porque desde pequena aprendi a ser boa gente e boa gente não tem nada a temer. Se dirijo meu carro no limite permitido, uso o cinto e trato bem o fiscal de trânsito, não levo multa. Se saio de casa bem vestida, sem essas roupas vulgares que sensualizam os outros, não sou assediada. Se chego em casa antes da meia-noite ou ando em lugares bem aparentáveis, não corro o risco de ser assaltada. Se estudo, em vez de perder meu tempo pelas ruas, não passo necessidades nem fico passível a maus tratos. Porque, acima de tudo, a gente tem uma lei que contempla o bom cidadão e uma polícia digna que nos protege desses marginais que beiram às calçadas ameaçando a paz das nossas consciências. Me sinto tão segura que fico de bem com essa vida bem delineada e acho até estranho como as pessoas não conseguem viver assim como eu, decentemente. É só estudar e se comportar, não questionar, não ser pobre, porque ser pobre é uma escolha, lógico, não ser rude, indignado, rebelde, não ser mulher vulgar, não ser homem desleixado. Me surpreendo quando abrem a boca pra falar mal dos nossos políticos, a gente que vota neles, a gente sabe que não tem jeito, a gente não pode fazer nada, então pra que ficar falando, criticando, indo atrás de tomar satisfação? E quando falam dos policiais então, ai que fico pasma. Como assim se indignar com eles? Eles estão nas ruas nos protegendo dia e noite, mais à noite, abordam bandidos, revistam suspeitos, ameaçam e batem nos marginais, intimidam potenciais perturbadores da divina paz cidadã, mantêm a boa vizinhança, rondam nossas mentes e inibem questionamentos que possam nos tirar o sono da beleza. Realmente, não entendo esse povo que fala mal do nosso sistema. Gente, é só estudar e ser um bom cidadão, que tudo se resolve: o problema da fome, da miséria, do desemprego, da crise ambiental, do aquecimento global, da violência, do assédio... Caso contrário, a culpa é de quem opta pelo caminho mais difícil.

Um sorvete, um café, um amor

para inaê.

– A gente marca qualquer dia um sorvete, um café, um amor.

Você veio, nem tão de repente assim, se aproximou delicadamente, como quem não quer nada, como você faz. E desse jeito, como quem não quer nada, me deu tudo. Sorrisos e lágrimas. Um filme e um sorvete, uma bela tarde de sexta-feira, um amigo daqueles que a gente abre bem a boca pra dizer A-M e quase confunde com amor I-G-O de tão belo que se rodeia aquele sentimento. Você o trouxe pra mim também. Me deu tudo assim de braços abertos e sorrisão no rosto, porque você tem um sorriso que não cabe em ti, mas que também não cai. Meus olhos, você abriu, e depois estendeu diante de mim uma estrada nem tão florida assim, me deu sementes e me acompanhou equilibrando a água nas mãos. Vieram as chuvas, os sóis e as flores. Também vieram as colheitas, levaram algumas das rosas mais bonitas, presentes, desculpas, cortejos. Uma casinha delicada ao canto, frágil a qualquer ventania, um café pra esquentar as noites e amanhecer os dias. Você não colocava as lâmpadas, mas sempre as trocava quando queimavam, não trazia cadeiras, trazia toalhas e almofadas pra sentarmos no chão embaixo de alguma árvore. Um amor, você trouxe amores também, meu coração reconhecia cada um, porque você me ensinou a reconhecê-los, assim como tratá-los, cuidá-los, amá-los. Você me trouxe tudo o que eu precisava. Suspiros, balões, aquarela, caderno de desenho, poesias. Questionamentos e revoluções, despertou ideologias, inquietações, movimento. Tudo o que eu era, me trouxe. E eu não percebi. Porque a única coisa que eu queria era te trazer pra mim e isso também não me deixava ver que você já estava aqui. Junto a tudo o que você trouxe, veio o medo de te perder, que não dá pra separar noutra caixa e deixar num porão bem escondida pra ninguém abrir. Esse medo que a gente sente de perder alguém fica exposto como um quadro bem na entrada da casa que alguns param pra admirar e outros nem percebem. Foi bem assim, eu não tinha nada e você trouxe tudo, e então eu quis agarrar e guardar tudo de uma vez dentro da minha mala e ir pra bem longe pra ninguém tomar de mim. Mas você não cabia ali e eu tive que escolher. Então eu te coloquei na mala junto com tudo o que havia dentro dela e não a fechei, nem fui embora. Só que eu fui juntando bugigangas que encontrava pela rua, queria guardar também ali dentro, eram coisas que combinavam com o que você havia me dado e eu queria te mostrar que eu também podia te dar algumas coisas. Mas não coube tanto e você teve que ficar de fora. Ficaram na mala nossas coisas feito um mosaico. Eu só via a bagunça que você deixou ao sair, quis jogar tudo no lixo ou guardar no fundo de um armário pra nunca ter que arrumar. Passava a maioria do tempo fora também, pensei em ir embora e simplesmente deixar tudo pra trás, sorvete, café, amor. Só depois de borrar todo o caminho, pisar em todas as flores e rasgar todos os desenhos, pude ver, bem lá no fundo da mala o que você me deixou. Sorvete no fim da tarde com sorrisos que você me inspirou a conquistar. Café da manhã na cama entre os sorrisos mais lindos que você me ajudou a reconhecer. E a promessa de um amor entre sorrisos de cuidado, compreensão e respeito que você me ensinou a ter. Me deixou tudo de bom, porque todo o tempo só queria me dar o que era bom, agora eu sei.

sábado, 11 de junho de 2011

Você recebeu uma nova mensagem

 para mayara moreira.

É como receber uma carta, mas sem muito ter o que andar.  Abro a página do e-mail, caixa de entrada e está ali, em negrito, entre tantas outras também em negrito, a mensagem dela. Às vezes, abro primeiro, vou correndo junto ao mouse, feito ratinho mesmo fugindo com o queijo na boca atrás de qualquer buraco que o esconda por algum tempo, tempo em que tudo se acalme pra então ir pra casa. Outras vezes, vou abrindo e-mail por e-mail, mesmo sabendo que são propagandas ou nada que me interesse tanto, fazendo hora até que o relógio marque a hora exata de clicar naquele que se sobrepõe a todos os outros, vou criando expectativa, dando corda ao tempo e ao coração pra quando finalmente abrir sossegar num simples e ingênuo "oi, tá ai?". É ai, nesse exato momento, nessas exatas palavras, que tudo se parte e dá partida àquilo que eu nunca joguei antes, sem regras, peças, tabuleiro, controle. A gente conversa, a gente desabafa, a gente discute, a gente debate, a gente consola, a gente conforta. E a gente sabe que tem outros meios mais rápidos de se fazer isso, coisa de mensagem instantânea, torpedo. É só clicar ali, adicionar e feito, eu e ela numa janelinha, foto, cor, personagens. Não dá pra explicar, tão natural esse papo todo e a gente simplesmente se deixou levar pelo mais complicado. Mas o natural mesmo foi trocar palavras em outros tons, retrógrados, meu e dela. De certo é que nunca simpatizei muito com a palavra instantâneo. É algo assim que se dissolve rápido, entende? Lembro de leite em pó instantâneo, também nunca gostei muito. O integral sempre foi mais gostoso, concentrado. E esse jeito prático de fazer as coisas acaba deixando a gente despercebido, com as coisas, as pessoas. Tudo vai sendo feito às pressas, a gente mexe e mexe e mexe, nem olha as bolhinhas que se formam, a água contornando a beirada do corpo, quase maremoto, o pó se diluindo aos poucos, não ouve o barulhinho tilintante da colher batendo no vidro, mexe e toma tudo de uma vez. A gente não espera se curar de um amor, remexe outro por cima dele. A gente não tem pressa de viver, a gente tem pressa de se mostrar vivo. Os amores então vão se acumulando e se acumulando, a vida vai ficando pesada, lenta, exaustiva, e a gente vai tendo cada vez mais pressa, mas não consegue mais correr. Integral, é disso que lembro quando abro a minha caixa de e-mails e vejo ali, em negrito, o nome dela e um assunto meio vago. Eu e ela vamos nos achando de fora pra dentro, aos poucos, sem correria, a gente não tem pressa de chegar porque a gente já está lá e esse lugar não é uma caixa compacta e determinada, mas um fio por onde passa toda a energia, de ponta a ponta. Não tem atropelos nem escorregões, nem acúmulos ou barreiras. Nos jogamos pelo espaço e vamos tecendo, linha por linha, uma teia que quando menos esperamos estamos presas nela, rolando de um lado pro outro, totalmente seguras. Quando leio o que ela escreve ali, e não numa janelinha suspensa dentre tantas outras, sinto aquilo sendo fixado em mim, como os anexos nos e-mails, alguns desenhos mal traçados, algumas graças que só ela tem. O desenrolar das palavras criam frases e delas vêm os textos. E dos textos, vem a gente. Das letrinhas ao corpo e à alma, numa mistura integral. Já me acostumei com a hora em que ela vem e vai embora, abro a página e fico ali olhando o momento em que vai aparecer um novo e-mail, é quase mágica, porque desce não sei de onde. E desço a página lendo toda ela, sem precisar tocar. Solto meus dedos no teclado e eles vão costurando tudo o que quero dizer, o que quero que ela ouça, mesmo com receios por estar se entregando assim tão rapidamente a alguém. E o integral nessa hora, cadê? Também não se trata do instantâneo. É que essas coisas, que são naturais, não se encaixam em tempo nem em modo nenhum, talvez ela dissesse. Aos poucos, estou me acostumando a algo novo, o espontâneo. Outro dia abri a caixinha antes do tempo dela, rebusquei em mim tantas coisas, rabisquei alguns papéis, li mensagens antigas, olhei para outros lados, e então decidi começar de outro jeito - "enviar".

terça-feira, 7 de junho de 2011

Silêncio

Ando lendo menos, me dedicando mais. Tenho andando menos também, ficado mais tempo parada, pensando e vivendo apenas o "momento presente". Tenho disparado meu coração em vão, mas jogado palavras em ouvidos que se esforçam pra me ouvir. Tem alguém que quer me ouvir. Existe quem queira parte do meu abraço. Mas você não há. E eu volto pra esse momento, em que você não há. Ele é ausente e latente. Nele, sinto saudade de alguém que também não há. Houve? Se é passado, então invento, te recrio numa forma que me fez feliz e que agora me faz sentir essas coisas. Você, que eu amo, é passado e, talvez, até futuro, é tudo aquilo que eu não posso tocar nem viver, é um platonismo quebrado como tantos outros que já tive, é uma total abstração do que já sentimos. Nesse momento, em que você não há, posso ouvir o eco do meu coração batendo dentro do meu corpo, me sinto carne viva. Posso pensar em você e tentar imaginar o que está pensando nesse momento, em que eu não sou. Posso, mas logo me deixo voltar como uma pena se deixa levar por um vendaval ao "momento presente", pois talvez você já esteja em outro presente e eu não quero esse pra mim. Então eu volto pro meu tempo, em que você não deixa de ser, mas que aprendi a estar e a ser bem mais presente, mesmo que à parte de tudo, porque você não há e ainda continuo a te buscar pelas esquinas que passo torcendo pra não te ver.

- O tempo não existe.
- O tempo existe, sim, e devora.
- Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?
- Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.
- E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.
(Silêncio)
- Mas não seria natural.
- Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.
- Natural é encontrar. Natural é perder.
- Linhas paralelas se encontram no infinito.
- O infinito não acaba. O infinito é nunca.
- Ou sempre.
(Silêncio)

Das esquinas e das correntes

Ela ia se arrastando pelas calçadas, exausta por tantas contradições da moça-high-society. A paixão veio assim de repente, como de costume, e de repente se foi deixando nela um mundo de palavras a serem ditas e de corpos a serem sentidos. Aquela moça tinha que subir, voltar pra casa e pros amigos que em comum não tinham nada, só o salto.  Ela, que andava sem causas, tinha o que do comum e por esse tinha amigos, tão comuns quanto ela, tão cheios de quê e sem salto nenhum. O primeiro encontro foi bem por acaso mesmo, nessa festa de amigos em comum, bebidas em comum, danças em comum, mas passou assim imperceptível. No outro dia, nem nome de que nem nome de quem, Marcela ou Roberta? Vai saber. Só sei que se encontraram dali a duas semanas depois e se reconheceram logo num beijo descompromissado, com pressa de passar, corredor em movimento, a festa corria e não se podia perder a noite! Nem o dia. Só que nessa euforia ficaram algumas coisas, como o número de um telefone. Ela ainda tinha algumas pendências por resolver, contas a acertar com o coração, com multas e juros por atraso ou antecipação. A outra, coração calado, talvez acolhido num canto bem escondido, não pagaria nada. Mesmo com tantos acertos e desacertos, os dedos não se recolheram por entre as mãos, braços e corpo, ligaram e, quase sem querer, conversaram sobre qualquer coisa, quase sem promessas, mas já tão promissor. Terceiro ou quarto encontro? O fato é que foi num bar, papo à meia luz, e de outros amigos por vir, só a cerveja veio. Fez-se um mal ou um bem? Foi uma noite de anistia. Foram noites de libertação e dias sob condicional, cada qual com suas correntes levando no tempo dívidas e divisões. Só sei que foi assim e ainda é, que bom que é. Ambas entrelaçadas, ambas reconstruindo muros sobre pedras demolidas, num perfeito reaproveitamento de si. Hoje, pouco sabem desses amores e paixonites antigas, mas aqui e acolá as correntes se chocam e soltam faíscas, alguns murmúrios, outras que se foram, outras que não voltaram, outras que se perderam. São felizes, estão juntas pro que der e vier. Porque as coisas do coração são assim mesmo, amor se encontra em toda esquina, paixão é que dá trabalho!

sábado, 4 de junho de 2011

Da percepção

Uma mente ébria é capaz de enxergar muita coisa,
mas só uma mente sóbria pode perceber além.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Tempo, mano velho



Todas as noites ele esperava que ela voltasse, pela manhã, ao acordar, olhava para o lado, esperando que ela estivesse ali deitada, num sonho só dela, pelas ruas, esperava encontrá-la numa esquina qualquer, pela vida, esperava que, bem lá no fundo, essa espera ainda fosse real.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Quase nada

Deixo meu corpo livre, ele faz de si o que quiser agora. Não, não tenho a mínima vontade de me perder numa boca qualquer. Nem de me encontrar. Na verdade, ultimamente, não tenho tido vontade de nada, não sei, coisa de momento talvez. Mas tanto faz se passar ou não. Só sei que não tenho vontades. Só sei que desde que te encontrei, não tive mais vontade de me perder nem de me encontrar, nada, além de te ver, ter por perto. Quase impossível. Quase viver. É isso. Nessas noites, tenho me mantido distante de tudo, pensando que talvez você se aproximasse, mas foi em vão. Continuo longe, por escolha minha, por falta de vontade ou por vontade demais. Queria que adiantasse de algo. Ou que simplesmente me servisse. Mais uma vez me encontro sendo sem ser, difícil, essência refletida, espelho sem reflexo, tão vazio assim, pena, eu sem você. E você sem mim?

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Meio por inteiro

J. B.

Aquele perfume que ficou em minhas mãos mal pode dissipar-se por ai, pois o contive dentro do carro, vidros fechados, coração quase parado. Ao menos tive tempo dessa vez de vê-la entrando em casa, indo embora, não pra sempre, nem por pouco tempo, apenas me deixando mais uma vez. Vestido mais curto que de costume, talvez por provocação, boa ou não, vivíamos assim de provocar mesmo, short curto, perfume forte, cabelo meio amarrado, meio olhar, meio paixão, meio amor, meio proibido, ou indevido, meio ela, eu e meio. Nós duas, três anos. Casada, quem diria! - É, casei. - Simplesmente, da noite pro dia. - Não acredito! - E acreditei, entendi, aceitei. Outra vez, aliás, pois outras dessa ela já me aprontou, mais amenas de certo, mas tão súbito quanto. E o que fazer, nunca soube, só fazia. Sim, vamos, sim, espero, sim, não, sim, sim, o que você quiser, porque, afinal, mais vale esse sentir subentendido, esse abstrato do “talvez seja exatamente isso” ou “não sei bem o que é”. Colocamos em dúvida qualquer certeza e passamos a viver juntas, separadas, numa cumplicidade sem testemunhas nem réus, vivendo o estar. E estava bom assim, como agora também está. Amanhã? Quem sabe. O que sinto é pra ser sentido agora. Ela é o agora, o exato momento, o ponto entre a vírgula e ponto final, a ligação quando estou indo embora, o encontro imediato, o proveito dos últimos minutos, da última gota, o que tem de mais importante e que deixam por aí por ter demais a qualquer hora e em qualquer quantidade. Talvez só eu soubesse disso e só ela soubesse que eu sabia, seria sapiência demais pra passar a ser. Por isso ficávamos no estar, enfim.

Estávamos, então, nesse dia a procurar por nós duas, até que nos achamos no fim da tarde. - Cinema? - Fomos. Filme até legal, mas sem muito aquele agora que esperávamos, era pra outro tempo, não nos importava qual, o que importava era sabê-lo e mudar o caminho, voltar os ponteiros e procurar o agora do agora certo. Rodamos um pouco a cidade nessa busca, relógio parado, tempo passando. - Entra aqui! - Entrei. Meio pequeno, meio aconchegante, meio diferente do que tínhamos imaginado. - Um vinho pra esquentar. - E sorriu, meio ingênua, meio insinuante, como só ela sorria. Isso sempre me irritava. Não porque eu sentia aquele sorriso esnobe dizendo pra mim que ela estava perto e longe ao mesmo tempo, pois não nos tocávamos tanto, era uma relação meio egocêntrica, mas porque a vontade que eu tinha era de pegá-la em meus braços e tornarmos ser, era a contradição que aquele sorriso me provocava. Afinal, não tinha motivos pra mudar tudo se tudo era pra estar como estava. Mover qualquer ponto era complicar a balança, desequilibrar, perder o controle. Ora veja, duas descontroladas saindo do meio pro inteiro, esse inteiro em falta que é o amor. Não, não podia acontecer. A vontade que tive foi de sair dali, daquelas quatro paredes, transformar o agora em antes ou depois, deixar o vinho aberto pela metade, deixar tudo pela metade, como sempre. Mas não o fiz. - Teu sorriso me incomoda como nenhum outro jamais me incomodou, ele é cínico demais, incoerente demais, absurdo demais, lindo demais. - Foi então que percebi, eu já estava nas reticências. Não contive o impulso quando abracei forte aquela mulher junto a uma das paredes, como nunca, acariciei, beijei, amei. Redesenhei cada traço dela com meus dedos, os cabelos, os olhos, a boca, o pescoço, os seios, o abdômen, as coxas, os pés, o sexo, a respiração, os suspiros, a transpiração, o êxtase, o suor, o sono e os sonhos. Estávamos por inteiro numa cama, num corpo e numa alma só. Não era mais ela, nem era mais eu, éramos nós. Éramos um agora de ontem e de amanhã, até a madrugada chegar.

Adormecida num quarto desconhecido, acordou-se meio atordoada, fora do tempo, à procura de mim ou dele, atrasada para alguma coisa no meio da noite, preocupada com qualquer coisa. Havíamos perdido o nosso agora e precisávamos encontrá-lo antes de sair dali ou correr o risco de nunca mais saber de nada sobre a gente. Talvez fosse isso. Pude acalmá-la num silêncio, meio calada, quase soluçando. O agora estava voltando na constância dos gestos e das falas. - Vamos embora, acordo cedo amanhã. - E voltamos confundindo o tempo, apesar de sabermos que era noite, parecia quase amanhecer, mas também parecia quase anoitecer. No rádio, uma música pra inibir a ausência que aumentava cada vez mais que nos aproximávamos da casa dela, deles. Eu estava meio com sono e ela meio cansada. Parei quase em frente ao portão e ela se foi deixando um abraço e um beijo no canto da boca. Fixei por alguns instantes aquele desfile, aquele perfume e aquela mulher, depois descartei, mais uma vez. Abri os vidros e também fui embora. Ao chegar em casa, ainda que pisando manso, o acordei, mas meio sonolento e acostumado com minhas noites adentro de trabalho, voltou a dormir. - Boa noite, meu bem. E dormimos, abraçados, como sempre.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Cortesia

Moça de sorriso fácil, um fato breve,
saia leve, mas comprida,
decote ligeiramente provocante
ai, a imaginação alheia!
ai de mim!

Os cabelos enrolados uns nos outros,
curtos, longos, no meio-fio
e ela entre fitas de cetim, enceradas e de lã,
búzios, pedras cristalinas.
Seria uma baiana artesã?

Um sumiço pra despertar saudade
uma taça pra incitar desejo
a brincadeira pra atiçar o beijo.

Já vi dessas passando por ai
saia, cabelo e decote...
os olhos, desses já vi cem
O que justo essa tem?

Ah, morena
dança de ladinho
como quem não quer nada
como quem comeu tudo
Se é Ana, serena
Mas também é Luiza,
problema.

Eu que não faço questão
caneta, papel, jamais!
nesse fogo eu não ponho a mão
nem penso, nem olho
Desgosto de quem só provoca
quero quem me arrepia.

Mas olha que ironia!
fui fazer conto dessa criatura
e virou poesia.

domingo, 15 de maio de 2011

Vitral

O que eu vejo por ai não são pessoas, são representações. Sei que tudo nesse mundo é isso mesmo, mas as pessoas assim se tornam duas vezes mais matéria, menos alma. Vejo cascas, não casas, atrás de um copo de bebida, de um livro, de fones de ouvido, carros, roupas, tintas, quadros. Fazem de si uma obra barata, comum. E por detrás dessas pessoas, vejo você, escondida, envergonhada por ser tão crua, por não estar inserida nesse mosaico. Terapia, clínica, entorpecentes, porque só há tratamento pro que está exposto. E você está. Em carne viva, sensível, adoecida do que deveria ser cura. O teu reflexo é em si mesma, porque você é vidro, não espelho. Denso, transparente, rígido, frágil, cortante. O espelho tem identidade? Não queira ser espelho. Não queria ser eu. Estou numa representação, palco mofado, público pobre, luz, câmera e ação, mas na minha não há tantas falas, espero que sinta meus apelos nos meus gestos apáticos, é que não sei mais encenar, falta eu, falta essência que aos poucos foi se perdendo em tantas estreias. Vê? Nem pierrot, nem arlequim. E você querendo estar no palco... Não precisa subir lá, não precisa aprender a representar. O que eu vejo por aí não são pessoas. E vejo você também, com medo de machucá-las por não poder refletir a vaidade delas.

domingo, 8 de maio de 2011

Acabamento.

Você vai me abandonar e eu nada posso fazer para impedir. Você é meu único laço, cordão umbilical, ponte entre o aqui de dentro e o lá de fora. Te vejo perdendo-se todos os dias entre essas coisas vivas onde não estou. Tenho medo de, dia após dia, cada vez mais não estar no que você vê. E tanto tempo terá passado, depois, que tudo se tornará cotidiano e a minha ausência não terá nenhuma importância. Serei apenas memória, alívio, enquanto agora sou uma planta carnívora exigindo a cada dia uma gota de sangue seu para manter-se viva. Você rasga devagar o seu pulso com as unhas para que eu possa beber. Mas um dia será demasiado esforço, excessiva dor, e você esquecerá como se esquece um compromisso sem muita importância. Uma fruta mordida apodrecendo em silêncio no quarto.

Até que eu me torne uma saudade artificial de quem encontra alguém na rua, abraça forte, pergunta como tá, diz que morre de saudade, vamos marcar alguma coisa, e vai embora antes mesmo de ouvir qualquer coisa que o outro tenha a dizer. Mas você vai ouvir o que eu tenho a dizer, você tem a etiqueta da boa educação, aquela que quase perde a essência por ser etiquetada demais, vai ouvir, vai sorrir, vai até passar um tempo comigo, ficar feliz ao encontrar algum amigo e ter o que dizer, que me encontrou em algum lugar, e depois me esquecer nas entrelinhas de outra conversa bem etiquetada. Talvez antes de dormir, pense mim, pense na gente, no quanto foi bom, no quanto foi ruim, no quanto sofrimento, e no quanto alívio, tudo passou, nem lembrança nem vontade, só uma saudade artificial que não faz a mínima questão de ser morta. Nem viva.

sábado, 7 de maio de 2011

Dos utópicos amores platônicos

para MM.

Você e Quintana
os passarinhos, as estrelas
os impossíveis e suas belezas
as borboletas! Ah, as borboletas, as flores
A lagartinha num casulo, você
Tua melancolia,
que ele diz romântica
A lua,
que tu dizes balão
Eu e você
O amor-amigo
nem o sim nem o não
só o toque delicado das mãos
E um talvez...

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Ela que nem...

Quando estava chegando em casa, chovia uma chuva fina, leve, quase não molhava, quase nem chovia. Eu olhava pro seu céu e via aquelas gotinhas sutis caindo, tímidas, sem querer tocar nada, nem a mim. Como ela. Ela, que me cai pouco, que é discreta, mas tão sincera, que não consegue se dar a mim, porque afinal não é pra mim, nem eu. Perto de casa, quase chegando, não tive pressa, não me molharia, só corri quando lembrei que poderia ter algo na caixinha de mensagens, talvez dela, reclamando do meu atraso, ou do meu descaso, que nem tenho noção. E ela tem noção? Claro que não. Pois minto, ou escondo, ou ela não vê, disfarces, mil faces. Só sei que cheguei em casa, que vim numa chuva miúda, e tive vontade de tê-la mais perto, tão mais perto do que de costume, e não a tive, pra variar, e não a terei, como sempre. Porque tudo o que foi meu nunca foi meu. E, sei lá, nunca nada é nosso mesmo. Essa coisa toda de ninguém ser de ninguém. E meu, menos ainda. Ela então...