Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

domingo, 19 de julho de 2015

Despedida

Enfim, tô de partida, indo ali aspirar outros ares. Então será isso. Parto sem pesos nem pesares. Já tá tudo encaixotado, quer dizer, quase tudo, alguns sentimentos deixei de fora mesmo, que se dissipem em meio a essa cidade caótica que abateu meu coração, tragou meus pulmões, mijou nos meus rins, bebeu meu fígado e “insanizou” meu cérebro. Vou lá pra dita calmaria do vácuo de uma cidade pequena, buscar grandezas que nunca encontrei por aqui. A casa lá será nossa, se aprochegue quando quiser, mas não esqueça: eu serei sempre só minha. É pertinho, sem drama nem demora. Aliás, a única distância real é o esquecimento prolongado. Então trate de continuar me lembrando das coisas que eu sempre venho esquecendo, te lembrarei também. E não deixe que a saudade te ludibrie, não deixarei, é só manter o copo cheio e a noite acesa. Parto leve, mudei.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

O primo

Eu pensei que tivesse sido a única, uniquinha no mundo que já tinha sofrido por amor a duras penas, patos, pistas, pilhas, postes e as putas que pariram. Pensei que já não tinha sofrido o bastante, quando já tinha, e que não tinha mais nada por vir, quando ainda vinha. Até que ele parou na minha frente. Esfarrapado, sujo, andarilho talvez, desistente, certeza, parado ali, olhando pra mim, e eu achando que tudo era demais pra mim, mesmo que o tudo demais pra ele, mesmo sendo tudo demais, nunca chegaria aos pés dos meus tudos. Aí eu comecei a julgar, antes de acenar. Julguei a barba mal feita, o cabelo meio raspado, acidentado de um lado, assanhado do outro, as unhas imundas, os dentes amarelados, os pés sem rumo. Julguei até mesmo quando ele acenou de volta, pois foi meio sem prazer, sem questão, sem direção, sei lá. Mas aí ele aquietou-se num canto como que dizendo pra que eu sentasse ali e percebesse no silêncio dele tudo o que me deixava gritante, pois eu estava inquieta. Só eu tinha sofrido, perdido e adiado amores. Só em mim doía. Mas eu sentei. Estava tão cansada que sentei. Então ele começou a falar dos cinco anos, eu mal sabia o que isso significava, ele dizia cinco anos de destroços, de quedas, de merdas, de arrependimentos desviados e de futuros ainda por errar. Também disse que amara.