Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A máquina de escrever

Mãe, se eu morrer de um repentino mal, vende meus bens a bem dos meus credores: a fantasia de festivas cores que usei no derradeiro Carnaval. Vende esse rádio que ganhei de prêmio por um concurso num jornal do povo, e aquele terno novo, ou quase novo, com poucas manchas de café boêmio. Vende também meus óculos antigos que me davam uns ares inocentes. Já não precisarei de duas lentes para enxergar os corações amigos. Vende, além das gravatas, do chapéu, meus sapatos rangentes. Sem ruído é mais provável que eu alcance o Céu e logre penetrar despercebido. Vende meu dente de ouro. O Paraíso requer apenas a expressão do olhar. Já não precisarei do meu sorriso para um outro sorriso me enganar. Vende meus olhos a um brechó qualquer que os guarde numa loja poeirenta, reluzindo na sombra pardacenta, refletindo um semblante de mulher. Vende tudo, ao findar a minha sorte, libertando minha alma pensativa para ninguém chorar a minha morte sem realmente desejar que eu viva. Pode vender meu próprio leito e roupa para pagar àqueles a quem devo. Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa esta caduca máquina em que escrevo. Mas poupa a minha amiga de horas mortas, de teclas bambas, tique-taque incerto. De ano em ano, manda-a ao conserto e unta de azeite as suas peças tortas. Vende todas as grandes pequenezas que eram meu humílimo tesouro, mas não! ainda que ofereçam ouro, não venda o meu filtro de tristezas! Quanta vez esta máquina afugenta meus fantasmas da dúvida e do mal, ela que é minha rude ferramenta, o meu doce instrumento musical. Bate rangendo, numa espécie de asma, mas cada vez que bate é um grão de trigo. Quando eu morrer, quem a levar consigo há de levar consigo o meu fantasma. Pois será para ela uma tortura sentir nas bambas teclas solitárias um bando de dez unhas usurárias a datilografar uma fatura. Deixa-a morrer também quando eu morrer; deixa-a calar numa quietude extrema, à espera do meu último poema que as palavras não dão para fazer. Conserva-a, minha mãe, no velho lar, conservando os meus íntimos instantes, e, nas noites de lua, não te espantes quando as teclas baterem devagar.

Texto de Giuseppe Ghiaroni

domingo, 24 de janeiro de 2010

Sem açucar e sem afeto

fez-se mais um fim.

Os pingos sutis de chuva tocando as telhas produziam um som tão virgem que se ouvia a voz de uma donzela recitando suas dores invisíveis. Pupilas dilatadas, pálpebras cansadas e o desconforto do novo travesseiro conspiravam contra ele, impedindo-lhe de cair em sonhos. O cheiro de terra molhada concretizava o mormaço da noite e mantinha os sentidos acesos, iluminando o quarto e os lençóis. Nenhuma saudade permanecia viva naquela insônia, só o eco de um coração palpitante e receoso; o sol não era desejado nos próximos dias e não tinha a consciência pesada por querer tantas tempestades, sentia o puro egoísmo dominar suas mãos, sentia-se vivo dentro daquele egocentrismo. Nenhuma culpa por estar sendo ele mesmo numa noite abafada que não o deixava respirar, contorcia-se na cama num gesto de agonia por tanto sufocamento, reagia ao clima e só. Simplesmente esvaia junto às horas seus desconsolos numa atitude adequada, seguia o tempo sob o som das melodias e ia se preenchendo todos os dias, mesmo com vazios sentimentos, estava sempre cheio, com alguma cor, até mesmo a transparência o tingia. Mas naquela noite, seu corpo estava pálido e nítido, sem qualquer identidade compreensível, sem desculpas. Era sem ser, puro e nu.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Conformidade

A saudade do que sei e do que não sinto afeta sentidos e desgoverna convicções. Daquilo que sei, o conforto da certeza. Do que não sei, o desapontamento da não tentativa. Lágrimas correndo pelos caminhos confusas, zonzas por tanta desilusão, reflexos mal interpretados e a decisão do não tangendo o dia mal iluminado e aguado desse inverno acidental de um mero descuido vil humano e passos seguindo em frente trêmulos e bêbados da cana recém-ardente tomada em goles altos guiam a estátua do sacrifício. Nenhum arrependimento do mal-bem disfarçado passado e do que virá certeiro. Sigo. Fodam-se os outros.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Os Três Mal-Amados

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

Texto de João Cabral de Melo Neto

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

uma pequena flor..

num jardim que não é mais o meu.
Minha pequena
que já não é tão pequena
é tudo isso que causa
todo esse vazio
em casa
na chegada e na partida
e em mim
Que não mais está
Tudo é!
E eu...
Nada
Só lembrança e lágrima
saudade e só
silêncio
nenhuma paz
um jamais.