Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

sábado, 18 de março de 2023

A borda

        Lá dentre os anos da minha infância beirando uma juventude ainda muito branda, na aula de natação, onde eu acabara de entrar pra turma "grande", da piscina semiolímpica, tenho essa recordação dos quinze minutinhos depois das aulas que podíamos aproveitar o tempo pro que desse e viesse. Os que tinham turma, iam de turma, entre pulos, mergulhos tortos e acrobacias. Os que tinham pressa, chuveiro e toalha. Havia também os que tinham resistência e continuavam as sequências de nados e desafios inventados. Eu, ainda muito nova e pequena em comparação aos outros, não fazia muita coisa, além de brincadeiras aleatórias como cambalhotas debaixo d'água pra ver até onde a respiração, ou falta dela, aguentava.

        Ainda bem no início das aulas na piscina grande, ainda espantada com o tamanho dela e dos outros alunos, usei esse tempo livre pra contornar a piscina segurando numa borda interna que percorria por toda a sua extensão. A parte mais rasa me cobria por inteiro por alguns palmos ainda. E a mais funda? Era essa a grande curiosidade. Bom, já havia escurecido aquela altura quando fui chegando no ponto onde não dava mais pra diferenciar as divisões entre os ladrilhos e me soltei, soltando também o ar pra que a descida fosse certa e eu chegasse lá. Eu via a superfície se distanciando, mas mesmo assim não olhava pra baixo. Era como uma queda invertida, indo no sentido certo. Lembro-me de pensar: e agora? Não havia ninguém por perto e eu continuava descendo. E antes de chegar a lugar nenhum, já sem fôlego e sentindo muita pressão nos ouvidos, resolvi nadar de volta, de um nado que ainda nem era tão bom assim. Voltando à superfície e retomando o ar, dei-me conta de que poderia ter morrido e talvez não tão cedo fosse encontrada, ou caso socorrida, fosse tarde demais.

        A sensação imediata, no início, foi engasgante. Depois, vieram umas vozinhas de consciência e repreensão por ter feito aquilo, por não ter ido com ninguém ou sequer falado nada nem antes nem depois. Teriam sido recordações bem ruins se dias depois e por tantas vezes eu não tivesse feito de novo e de novo até conseguir. Em todos os tempos livres, mesmo sem fôlego, e sempre com aquela pressão no ouvido, simplesmente tocar o fundo mais fundo daquela piscina sem quase nunca precisar olhar pra baixo e ver o quanto ainda faltava de chão foi um dos mais singulares sentimentos que tive. Às vezes me pego angustiando o corpo, que segue inerte depois que tomamos conta de que manter a respiração contínua é bem necessário nessa vida, e ansiando por uma piscina bem funda.