Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

domingo, 29 de agosto de 2021

"Eu me sei"

Já não me interessa
me destruir para existir
me culpar pelas solidões que grudaram em meus ombros e que me fizeram ter essa postura de quem já sentiu mais do que devia já não me interessa adornar a dor preparar um altar para louvar os meus traumas prefiro não consagrar todas as vezes que me partiram ao meio prefiro soprar nos meus ouvidos que embora não saiba bem o caminho para voltar a ser inteira eu estou retornando a mim mesma já não me interessa ficar ao lado de quem esquece que eu estive lá que quando a fé tombou eu estive lá eu não posso conviver com quem me obriga a esfregar as mãos com o óbvio todas as manhãs já não me interessa explicar que quem tem caminhos abertos não diz isso o tempo todo porque já sabe contemplar o silêncio da certeza de ser guiada eu sou carne banhada de sagrado porque mereço já não me interessa desviar de espelhos provar vivências admirar abismos jogar com a minha cabeça pra ver até onde aguento meu orgulho não é contabilizar as cicatrizes sigo lutando para mantê-las fechadas se for entrar aqui venha de pés descalços preciso sentir a energia pra ver se confio meu feitiço é meu sentido
já não me interessa
ficar rouca tentando explicar qualquer coisa eu me sei, eu me sei, eu me sei agora eu me ocupo adentrando minha coragem resgatando meus poderes deixando minhas asas respirarem.

Texto de Rayane Leão
@ondejazzmeucoração

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Era pra queimar depois de escrever

Chegam os finais de semana e eu sempre me sinto sozinha. Sozinha, mas não solitária. Estar sozinha, somente comigo mesma, eu, meus pensamentos e assombrações. E por falar nelas, é preciso me livrar desses novos passados que seguem me atormentando noite após noite e que hoje me vêm muito mais em forma de reclusão.

Estão lá, cada palavra, cada tentativa de me rebaixar, de me enlouquecer diante do outro, de me diminuir para, enfim, me dominar, cada pancada que eu segurei com a frieza que, por graças, conseguia manter acesa e pra me defender: a única armadura contra o seu ódio por tudo e por todos: ser vazio e vazia. Eu não conseguia mais chorar de tanta tristeza, nem sorrir com os olhos; já não dormia à noite, já não queria viver meus dias. Só seguia o fluxo dos dias que, em alguns momentos, eu conseguia ter sob meu controle, mesmo com você tentando inundar tudo e me afogar na sua cólera condensada em veneno e mentiras. Não, eu não me mataria nem recairia num poço que tem lá até dedicatórias, como era de sua vontade sórdida.

Eu não tinha medo de você, tinha medo de mim, de tudo o que se passava pela minha cabeça em todas as vezes que você começava a rosnar e cuspir o mais intragável fel misturado a fumaça do cigarro. Até minhas reações estavam em jogo, na tentativa de serem controladas por alguém tão amador. E você queria a todo custo se cobrir com o manto do vitimismo e me apontar como o ser que você sempre tentou pintar por aí, à tua imagem e semelhança; teu espelho era inverso. Aquele olhar vazio e cheio de ódio me tirava qualquer paz de pensamento, a me prender numa repetição a marteladas: como poderia existir pessoa tão cheia de abismos dentro de si?

A ilusão de achar que eu ainda decidia sobre minha vida me fez protelar e acreditar que, um dia, tudo passaria e se ajeitaria do jeito que deveria ser. O problema é que o que deveria ser, de fato, era. A ficha não caia. Mas o meu pedido de socorro foi tão imerso em mim mesma, que de uma faísca, veio junto tudo o que havia sido enterrado e abafado durante esses anos. E sair da escuridão me fez reenxergar a vida e tudo o que ela sempre me prometera: não era mesmo ficar num porão imundo à mercê do que eu precisava crer pra não cair em declínio total, sem mais voltas, sem outras chances. Eu tinha forças ainda, e eram bem maiores do que ontem, seriam sempre maiores amanhã. Forças internas e externas. As minhas. As dos meus.

Então você foi arrancada como um band-aid que sai de uma ferida curada, sem dores. Eu não estava nas minhas mãos, mas, agora, também não estou nas suas. E isso me abre qualquer possibilidade de vida, nem que seja para escolher entre ficar simplesmente sozinha, aos finais de semana ou em qualquer outro dia. O vazio dessa casa nunca me preencheu de tanta paz. E hoje eu entendo a diferença entre solitude e solidão.

E pensar que, um dia, eu deixei que você questionasse até a minha escrita.