Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Gravidade Relativa

A insanidade anunciou mais uma vez que o poço das ilusões está transbordando. Dom Quixote voa em seus dragões, já eu, o vejo se arrastar pelo chão e puxar os pés de Sancho implorando com arrogância confirmações que o julguem sensato. Os carros estacionados por toda parte afirmam minha razão, estão parados, posso atravessar a rua. Mas o escuro que preenche as esquinas alerta os meus sentidos e me faz perceber que os carros, que continuam parados, podem se movimentar. Isso me mantém numa corda-bamba, equilibrando-me. Quando, se, caio, a queda me deixa marcas irreversíveis e dores por todo o corpo. Dores que só são sentidas porque me reergo, o que as tornam desejáveis. Dores que brincam junto comigo na borda do poço, onde sinto os calafrios dos riscos e ouço o eco dos desvarios, das loucuras disfarçadas que se afogam lá no fundo da mesma água que vejo meu reflexo, que limpo meu rosto marcado por lágrimas ressecadas, vencidas. Água que me banho todos os dias e me faz sentir o frescor da sua pureza. Se dela bebo, é porque nela sei caminhar sem escorregar, sem cair. E as ilusões estão ali, como bolhas de sabão, ensopando meus pés, mas explodindo antes de atingirem minha prudência, de interromperem minha caminhada e afogarem minha insanidade aventureira que cruza cachoeiras sem permanecer presa no encanto das quedas d'água.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Contra o espelho, sorri.

Eu queria ser como ela. Disfarçar toda dor num sorriso sutilmente desgraçado, afogar minhas miseráveis mágoas de amor ainda mais miserável em incontáveis copos de bebidas teatrais, conter em mim as palavras de desordem e difamação que causam espanto entre os amigos submersos nas mesmas ilusões e manter a harmonia nos bares caóticos que frequento. Eu poderia ser como ela e suprimir no âmago da minha carência os desejos mais soberbos e vis. Realmente poderia ser assim tão convencional e sujeito às leis morais de uma psicologia que esmaga e regra a liberdade do homem numa sequência de permissões intituladas lúcidas; ilusórias. Mas não! Sou este que desmorona das escadas e se expõe em carne viva, suscetível às prisões sociais e suas acusações covardes. Sou essa explosão indiscreta que incomoda a paz do casalzinho moderno, vendados até o pescoço com fita de matrimonio sagrado. Sou repleto de queixas e rugas, choro na madrugada e acordo com olhos inchados e olheiras fúnebres. Jorro toda a intensidade, todo o desvario até a última gota, mesmo que me custe todas as luas que já admiramos juntos. Minha máscara não cobre minhas feições nem descobre minha natureza crua. Poderia sim ser como ela, mas ainda assim não. Não cobiço tanta aflição dentro de mim me corroendo e matando aos poucos, me transformando num fruto das rotinas de sobrevivência, me tornando escravo das convenções. Não quero sentir o vazio amargo no outro dia dessas tentativas frustrantes. Quero assumir as dores e dissipar tudo de uma vez por algum tempo e não ser esmagado pelo nada de cada dia. Não quero deixar as desilusões arrancarem de mim pedaço por pedaço até que eu vire um corpo sustentado por mágoas, movido por aceitações e vestido de receios.