Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Outono

Há a porta, as janelas, a chaminé, mas não há lá fora o que impulsione sair de casa, então apaguei a luz e me deitei, no chão. Não, não espero mais nada. Já ela, talvez me espere em algum lugar longe daqui, mais agradável do que essas quatro paredes melancólicas. Liguei a TV, desliguei, o computador em espera, a garrafa de vinho pela metade, cheia ou vazia, no copo ainda restava um trago, sem cigarros porque aquela velha tosse voltou, renovada por causa da fumaça. Uma música antiga pra dar todo o toque de depressão às antigas, faltam só as páginas amareladas daqueles grandes pessimistas, que ainda hoje fazem felizes os apreciadores de obras raras, filosofias ou literaturas. Sons agudos e graves, tons escuros, o vinho bordô, minha aparência parda, meio anêmica, o chão frio, como sempre, pois a casa é bem arejada, sem falar no jardim com suas flores e aromas, as paredes num branco congelado, sem cortinas, e uma observação descritiva totalmente inútil pro tempo.

Falta mesmo aquele desejo de sair, mas pensando bem, aqui dentro também não encontro nada que me faça querer ficar, além da comodidade que é estar em casa, totalmente livre. É quase um dilema. A solidão dentro ou fora, cheia ou vazia, silenciosa ou gritante. O intrigante é que quanto mais tempo me mantenho aqui, mais vou me distanciando de tudo, e o tudo de mim, e se for lá pra fora, pro mundo, o tudo continua nesse processo, e eu devo manter a constante correria pra alcançá-lo, de não deixá-lo escorregar das mãos, como se todo o trabalho fosse em vão na necessidade de qualquer pausa pra respirar. Me vejo nascendo, sendo posta no alto de uma montanha de neve, e quando menos espero começo a descer, às pressas, atrás de uma avalanche, sem qualquer explicação, apenas sentindo que é isso que deve ser feito: correr atrás da avalanche e não dela, ao encontro dela sem nunca contê-la ou tê-la. É essa a vida que enxergo daqui de dentro quando paro, quase numa desistência, dessa correria toda, não pra pegar ar, mas pra ver se realmente vale a pena.

Ela também me intriga. Às vezes a vejo na minha frente, escorrendo junto com toda a neve, às vezes a vejo num canto observando tudo, simplesmente, não por vadiagem ou desistência, mas tomando fôlego pra continuar. Então eu paro e vejo tudo aquilo, o controle que ela tem consigo mesma e com a montanha, harmoniosa, uma leveza que controlaria qualquer avalanche, um desespero plenamente contido nela. Eu contida nela, daqui de dentro, ainda pensando ter autonomia sobre minha descida. Indago às paredes como, se até minhas escolhas, essas em potência livres, são todas guiadas para os caminhos que ela trilha, como no livre arbítrio de Deus, que de duas escolhas, nos encanta com uma e desespera com outra. Mas nesse caso, há a encantadoramente desesperada e a desesperadamente encantada, e qualquer rumo que eu tome vem o tormento de poder ter seguido por outro. Ando platônica demais pra pôr os pés no chão e agora com o inverno chegando escolhi ficar aqui dentro mesmo sem esperar mais nada, além de mim e de mais uma avalanche.

domingo, 26 de dezembro de 2010

À beira do mar aberto

E de novo me vens e me contas do mar aberto das costas de tua terra, do vento gelado soprando desde o pólo, nos invernos, sem nenhuma baía, nenhuma gaivota ou albatroz sobrevoando rasante o cinza das águas para mergulhar, como certa vez, em algum lugar, rápido iscando um peixe no bico agudo, mas essas outras águas que lembro eram claras verdes, havia sol e acho que também um reflexo de prata no bico da ave no momento justo do mergulho, nessas águas de que me falas quando me tomas assim e me levas para histórias ou caminhadas sem fim não há verde nem é claro, o sol não transpõe as nuvens, e te imagino então parado sozinho entre a faixa interminável de areia, o vento que bate em teu rosto, as mãos com os dedos roxos de frio enfiadas até o fundo dos bolos, o vento e novamente o vento que bate em teu rosto, esse mesmo que não me olha agora, raramente, teu olho bate em mim e logo se desvia, como se em minhas pupilas houvesse uma faca, uma pedra, um gume, teu rosto mais nu que sempre, à beira-mar, com esse vento a bater e a revolver teus cabelos e pensamentos, e eu sem saber que me envolve agora quando teu olho outra vez escorrega para fora e longe do meu, entre tua testa larga de onde às vezes costuma afastar os cabelos com ambas as mãos, numa mistura de preguiça e sensualidade expostas, e quando teu olho se afasta assim, não sei para onde, talvez para esse mesmo lugar onde te encontravas ontem, à beira do mar aberto, onde não penetro, como não te penetro agora, mas é quando a pedra ou faca no fundo do meu olho afasta o teu é que te olho detalhado, e nunca saberás quanto e como já conheço cada milímetro da tua pele, esses vincos cada vez mais fundos circundando as sobrancelhas que se erguem súbitas para depois diluírem-se em pêlos cada vez mais ralos, até a região onde os raspas quase sempre mal, e conheço também esses tocos de pêlos duros e secretos, escondidos sob teu lábio inferior, levemente partido ao meio, e tão dissimulado te espio que nunca me percebes assim, te devassando como se através de cada fiapo, de cada poro, pudesse chegar a esse mais de dentro que me escondes sutil, obstinado, através de histórias como essa, do mar, das velhas tias, das iniciações, dos exílios, das prisões, das cicatrizes, e em tudo que me contas pensando, suponho, que é teu jeito de dar-se a mim, percebo farpado que te escondes ainda mais, como se te contando a mim negasses quase deliberado a possibilidade de te descobrir atrás e além de tudo que me dizes, é por isso que me escondo dessas tuas histórias que me enredam cada vez mais no que não és tu, mas o que foste, tento fugir para longe e a cada noite, como uma criança temendo pecados, punições de anjos vingadores com espadas flamejantes, prometo a mim mesmo nunca mais ouvir, nunca mais ter a ti tão mentirosamente próximo, e escapo brusco para que percebas que mal suporto a tua presença, veneno, veneno, às vezes digo coisas ácidas e de alguma forma quero te fazer compreender que não é assim, que tenho um medo cada vez maior do que vou sentindo em todos esses meses, e não se soluciona, mas volto e volto sempre, então me invades outra vez com o mesmo jogo e embora supondo conhecer as regras, me deixo tomar por inteiro por tuas estranhas liturgias, a compactuar com teus medos que não decifro, a aceitá-los como um cão faminto aceita um osso descarnado, essas migalhas que me vais jogando entre as palavras e os pratos vazios, torno sempre a voltar, talvez penalizado do teu olho que não se debruça sobre nenhum outro assim como sobre o meu, temendo a faca, a pedra, o gume das tuas histórias longas, das tuas memórias tristes, cheias de corredores mofados, donzelas velhas trancadas em seus quartos, balcões abertos sobre ruazinhas onde moças solteiras secam o cabelo, exibindo os peitos, tornarei sempre a voltar porque preciso desse osso, dos farelos que me têm alimentado ao longo deste tempo e choro sempre quando os dias terminam porque sei que não nos procuraremos pelas noites, quando o meu perigo aumenta e sem me conter te assaltaria feito um vampiro faminto para te sangrar enquanto meus dentes penetrando nas veias de tua garganta arrancassem do fundo essa vida que me negas delicadamente, de cada vez que me procuras e me tomas, contudo me enveneno mais quando não vens e ninguém então me sabe parado feito velho num resto de sol de agosto, escurecido pela tua ausência, e me anoiteço ainda mais e me entrevo tanto quando estás presente e novamente me tomas e me arrancas de mim me desguiando por esses caminhos conhecidos onde atrás de cada palavra tento desesperado encontrar um sentido, um código, uma senha qualquer que me permita esperar por um atalho onde não desvies tão súbito os olhos, onde teu dedo não roce tão passageiro no meu braço, onde te detenhas mais demorando sobre isso que sou e penses que sabe que se aceito tuas tramas, e vomitas sobre mim, e depois puxa a descarga e te vais, me deixando repleto dos restos amargos do que não digeriste, mas mesmo assim penses que poderias aceitar também meus jogos, esses que não proponho, ah detritos, mas tudo isso é inútil e bem sei de como tenho tentado me alimentar dessa casca suja que chamamos com fome e pena de pequenas-esperanças, enquanto definho feito um animal alimentado, apenas com água, uma água rala e pouca, não essa densa espessa turva do mar de que me falaste no começo da tarde que agora vai-se indo devagar atrás das minhas costas, e parado aqui do teu lado, sem que me vejas, lentamente afio as pedras e as facas do fundo das minhas pupilas, para que a noite não me encontre outra vez insone, recomponho sozinho um por um dos teus traços, dos teus pêlos, para que quando esses teus olhos escuros e parados como as águas do mar de inverno na praia onde talvez caminhes ainda, enquanto me adentro em gumes, resvalaram outra vez pelos meus, que seu fio esteja tão aguçado que possa rasgar-te até o fundo, para que te arrastes nesse chão que juncamos todos os dias de papéis rabiscadas e pontas de cigarro, sangrando e gemendo, a implorar de mim aquele mesmo gesto que nunca fizeste, e nem sempre sei exatamente qual seria, mas que nos arrancasse brusco e definitivo dessa mentira gentil onde não sei se deliberados ou casuais afundamos pouco a pouco, bêbados como moscas sobre açúcar, melados de nossa própria cínica doçura acovardada, contaminado por nossa falsa pureza, encharcados de palavras e literatura, e depois nos jogasse completamente nus, sem nenhuma história, sem nenhuma palavra, nessa mesma beira de mar das costas da tua terra, e de novo então me vens e me chegas e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências, e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque é assim que és e unicamente assim é que me queres e me utilizas todos os dias, e nos usamos honestamente assim, eu digerindo faminto o que teu corpo rejeita, bebendo teu mágico veneno porco que me ilumina e me anoitece a cada dia, e passo a passo afundo nesse charco que não sei se é o grande conhecimento de nós ou o imenso engano de ti e de mim, nos afastamos depois cautelosos ao entardecer, e na solidão de cada um sei que tecemos lentos nossa próxima mentira, tão bem urdida que na manhã seguinte será como verdade pura e sorriremos amenos, desviando os olhos, corriqueiros, à medida que o dia avança estruturando milímetro a milímetro uma harmonia que só desabará levemente em cada roçar temeroso de olhos ou de peles, os gelos, os vermes roendo os porões que insistimos em manter até que o não-feito acumulado durante todo esse tempo cresça feito célula cancerosa para quem sabe explodir em feridas visíveis indisfarçáveis, flores de um louco vermelho na superfície da pele que recusamos tocar por nojo ou covardia ou paixão tão endemoniada que não suportaria a água benta de seu próprio batismo, e enquanto falas e me enredas e me envolves e me fascinas com tua voz monocórdia e sempre baixa, de estranho acento estrangeiro, penso sempre que o mar não é esse denso escuro que me contas, sem palmeiras nem ilhas nem baías nem gaivotas, mas um outro mais claro e verde, num lugar qualquer onde é sempre verão e as emoções limpas como as areias que pisamos, não sabes desse meu mar porque nada digo, e temo que seja outra vez aquela coisa piedosa, faminta, as pequenas-esperanças, mas quando desvio meu olho do teu, dentro de mim guardo sempre teu rosto e sei que por escolha impossível recuar para não ir até o fim e o fundo disso que nunca vivi antes e talvez tenha inventado apenas para me distrair nesses dias onde aparentemente nada acontece e tenha inventado quem sabe em ti um brinquedo semelhante ao meu para que não passem tão desertas as manhãs e as tardes buscando motivos para os sustos e as insônias e as inúteis esperas ardentes e loucas invenções noturnas, e lentamente falas, e lentamente calo, e lentamente aceito, e lentamente quebro, e lentamente falho, e lentamente caio cada vez mais fundo e já não consigo voltar à tona porque a mão que me estendes ao invés de me emergir me afunda mais e mais enquanto dizes e contas e repetes essas histórias longas, essas histórias tristes, essas histórias loucas como esta que acabaria aqui, agora, assim, se outra vez não viesses e me cegasses e me afogasses nesse mar aberto que nós sabemos que não acaba assim nem agora nem aqui.

Texto de Caio Fernando Abreu.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Das negações

Não sei, quem sabe, talvez, pode ser, mais tarde, vou pensar, vou ver, se der, depois, outra hora, outro dia, da próxima vez, eu juro, depende, quem vai, mas, pra voltar que horas, tá caro, tô sem grana, te ligo, me liga, me lembra, tô atolada em trabalho, seminário amanhã, se fosse mais perto, não posso chegar tarde, tenho que ir ali antes, devia ter avisado mais cedo, dor de cabeça, ...

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Espectros


Quem nos roubou o orgasmo dos olhos,
o gesto de socorro das mãos,
o sorriso de fraternidade,
o abraço que antes pousava no abraço do irmão?

Quem matou em nós o casulo da esperança,
a teia das ilusões,
e construiu em seu lugar
extensas muralhas de tristeza?

Quem destruiu a ponte silenciosa dos suspiros,
derramando-lhes nos flancos
a solidão de um barco sem destino
a flutuar sobre águas esmaecidas
em noites negras, sem abraços?

Alguém fez de nós estes espectros solitários
a beber sombras salgadas e bêbadas
nas densas paragens de intermináveis noites
sem estrelas.

Poesia de Giselda Medeiros

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A long time ago...

Quando era pequena
ficava com um binóculo no quintal
horas observando as estrelas, a lua
colocava formiguinhas num aquário cheio de terra
e as via construir seus novos caminhos...
As paixões eram mais verdadeiras
ingênuas
A vida fazia mais sentido!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Cupido

É tudo mágica, só mentira,
seja quem for ou como seja
doce ou pura aspereza.

Ora veja!

Na mira? Atira!
Pois é só mágica
é tudo mentira.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Tarsila

 para j.

Já fomos embora tantas vezes, estava até acostumada, mas é que desta vez sinto um aperto no peito, aquele cheiro me desandou, sabe? Estou quase fazendo apelos, veja você, eu de joelhos suplicando alguma coisa, qualquer, me dando por satisfeita com as tuas poucas promessas, umas tão impossivelmente reais. Ontem ali naquela chuva, o mar em plena ressaca, um vento confuso que ia e vinha, fazia frio, as nuvens pesadas, imóveis, e você, num vestidinho de verão, contrastando com todo o resto, diferente de mim, que ia me adaptando a cada ponto da noite, ouvindo cada palavra tua, os soluços tímidos, o toque leve das tuas mãos, o dizer Adeus sem ir embora. Eu quase sussurrava quando tentava dizer o que queria, como se não soubesse o que queria ou sequer quisesse algo de fato, pois você era sempre tão confusa longe de mim, contraditória, o que eu poderia realmente querer, além de procurar qualquer refúgio que fosse do teu perfume que tomava todo o corredor? Uma estranha pelos corredores. Mas bastava chegar perto, atravessar a porta, trancá-la, eu e você, e tudo transparecia, se tornava mais fácil, éramos quase almas gêmeas angustiadas pelos infortúnios do acaso ou do destino, ou dos acasos do destino, voltava aquele aperto no peito, pelo cheiro, pelo que não poderíamos fazer. Na praia, tirei os sapatos, nossos pés no chão, na areia, você se mostrou descalça pra mim, quase nua, e eu pude enfim ver que era você, quem era você, e você era muito mais do que eu pensava, pois você era minha, escondida entre tantos panos, minha, você. Hoje, agora, me dói alguma coisa, talvez tua partida, talvez minha descrença e medo, talvez os olhares que tanto te afastaram de mim, talvez o que simplesmente deveria estar doendo há muito mais tempo, e sinto teu cheiro vindo até a porta antes mesmo que você saiba que sou eu, quase de joelhos, quase suplicando, às pressas, porque depois de tanto adiar resolvi gritar que sim, me apaixonei, mas que ainda não posso ficar, então me promete...

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Neurotransmissores

Olhei de novo para o trinco, dessa vez tão fixamente que poderia ter aberto dez portas. Mas aquela nem se moveu, até porque o que eu esperava era que alguém a abrisse, qualquer um, que fosse doce e me levasse pra outro lugar, aberto. Quando digo doce não falo de romantismo, doce porque durante muito tempo foi o meu pior erro, fui acreditando nas sensações que me davam lá dentro, na mente, a tal endorfina, talvez, e esqueci as sensações que davam aos outros pelo lado de fora, aquela imagem tão almejada por tantos que não, não me pertencia há muito tempo. Foi um vício, uma fuga, uma distração, doces que me tiravam dele noite após noite, cada vez mais. Eram bons e ruins. Se agora o doce fosse esse qualquer alguém, talvez não me fizesse tanto mal quanto os de antigamente, ativasse as “inas” do organismo e simplesmente me desse as sensações que me permiti sentir de novo.

As chaves estavam em minhas mãos, mas a porta não estava trancada, era só uma segurança tê-las comigo. O trinco nem sequer brilhava. Ele fechou a porta com tanta força quando saiu que não tive coragem de abri-la de novo pra olhar o lado de fora, ficava ali dentro, fechada, e os doces todos pela casa, espalhados em meio à bagunça que se foi acumulando, também não quis mais arrumar as coisas. Já faz mais de um ano desde que ele partiu, junto foram meus amigos, um por um, já que a interação é a base de qualquer relação, não suportaram interagir por mim e por eles. Há uns dois meses desliguei o telefone e não olhei mais as correspondências, com o tempo a luz foi cortada, a água, o seguro, o plano de saúde, estou esperando a minha vez, ou a porta ser aberta. Até pensei em abri-la algumas vezes, eu ia com as chaves nas mãos, passando pelos dedos, me aproximava do olho mágico, não via nada lá fora, pois não havia o que ser visto, tocava o trinco, depois acordava deitada no sofá, chaves no chão. Era isso, não havia nada a ser visto ou sentido, lá fora não passava de um mundo que eu não conhecia mais, ou que nunca tinha conhecido, me questionava se havia sequer existido um mundo lá fora, eu existia?

Talvez tudo não passasse de um intermediário entre mim, a porta e o mundo, onde nenhum dos três estivesse realmente ali se fazendo presente, nenhum dos três fizesse o que tinha de ser feito, apenas ocupassem algum lugar em algum espaço ou tempo, ou nem isso. Eram corpos tão dependentes um do outro que não conseguiam encontrar essência em si mesmos, nem na relação entre eles. Em alguns momentos, me via deslocando do meu corpo, me tornando um ser inanimado, observando tudo bem de perto, mas à parte, realmente não me relacionando com nenhum deles. Me via olhando aquela porta como se fosse a última coisa que faria na vida, via aquela porta estagnada, agressivamente mostrando que não abriria, e via o mundo, girando no mesmo lugar na frente daquela porta, sem qualquer interesse nela ou em mim. Agora, sem saber direito onde estou, se no sofá, no chão, com chave ou sem, vejo a porta, e somente ela, não sei se está trancada, se foi o mundo que entrou quando ele saiu... Bem, não é mais alguém que quero que a abra, é qualquer um, doce ou não.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

... meia [ou quase nenhuma] palavra basta

O que era, é outra coisa.
O que foi, seria.

E não cabe aqui nestes antiversos
qualquer poesia,
pois se faço em prosa essas entrelinhas
é porque tenho a dizer que esta moça,
ou aquelas,
me pôs,
ou puseram,
a perder qualquer juízo que eu já não tinha.

Foram promessas,
fizeram-se ilusões e a imaginação foi-se longe!
fez-se alucinação
num tempo de tão pouca esperança,
onde o meu não-viver
até quis renascer
em poucas palavras.

Foram sorrisos singelos,
dignos de desconfiança,
gestos delicados,
e fortes, não é? que desarmaram,
com um breve "até",
a mais rude e clichê das armas,
ou escudos,
os corações e suas farpas,
além das retóricas.


Pois sim, dentre essas tantas conjugações
há de se perder mais um
com o tudo mais, o tudo menos
apesar do ao menos.

Bem,
para bom entendedor...

domingo, 5 de dezembro de 2010

Quase uma dança

 f. freire.

Era uma chuva leve, serena, quase uma serenata, quando quase amanhecia. Os primeiros raios de luz ameaçando entre os prédios coloriam os cabelos dela enquanto ela dançava suavemente acompanhada de um sorriso que instigava qualquer um a dançar. Um vestido de flores, cabelos quase encaracolados e as mãos bailando pelo ar, como se jogasse um feitiço nada discreto sobre mim, pois ao canto Clarinha percebia tudo aquilo e sorria, quase dizendo "vai ficar parada ai?". E eu ficava parada aqui, hipnotizada, morrendo de vontade de seguir o ritmo dela, mas sabia que não tinha ritmo nenhum que pudesse alcançar aqueles passos. Pelo menos eu não tinha ou não tivesse naquele momento. A única reação, ou não-reação, era ficar observando a chuva, a dança, o vestido, a moça, os cabelos e as mãos. Provocante, era a única coisa que me vinha à mente, uma provocadora! Mas tão inocente, ou tão bem disfarçada numa pureza de me causar vergonha por estar com aqueles pensamentos. Tentava não olhar, ou reparar nos movimentos do vestido, a chuva estava quase cessando e o sol já aparecia, Clarinha procurava alguma música enquanto ela parecia não estar buscando música alguma, apenas dançava, ou girava, pairava. Quando dei por mim, estava totalmente ludibriada por aquela manhã de Sábado, captava cada detalhe, os perfumes, as cores, os sons, meus sentidos estavam aguçados, como se precisassem registrar tudo ali. Era ela que estava em toda parte. – Não quer dançar mesmo? Guardei uma dança pro fim da festa ou pro início do dia. Foi quase um susto ouvir aquela voz tão empolgada quanto no início da noite passada, ela parecia não cansar, ou simplesmente não passar pelo tempo. Tudo partia, a festa, as pessoas, as bebidas, a noite, a chuva, eu. Ela não. Ou talvez só ela partisse. Enfim, não podia recusar aquele convite, nem ela, havia ainda uma dança em algum lugar daquele corpo e ela oferecera a mim, mas eu não dançava, nunca, e não dancei naquela manhã. Continuei a olhar o tempo que passava cada vez mais com ela por mim, em mim.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A uma borboleta de Casimiro

Um brinde! aos cabelos esvoaçantes
rebeldes
breves

A uma noite ou insônia
a qualquer Sônia
ao porre, ao cigarro
ao incenso, ou fumaça
a uma colônia

A ela, borboleta
dos amores
pudores, contradições
entre mim e mil
aos temores e tremores
de tantas outras paixões

Ao adormecer numa melodia
ou ao extase numa batida
a moça que cochila e não ouso
acordar
[Perpetua teus sonhos nessas redes-ilusões
ou não, aprofunda-te nas minhas
reais e incoerentes,
e por vezes tão leves,
dissimulações!]

Não minto, borboleta, omito
invento, enfeito
contentamentos
experimentos:
pois quero ter só a ti
e o insustentável bater de tuas asas
como sustento!

domingo, 28 de novembro de 2010

Com vinho, poesia ou virtude...

É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.

E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: “É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso”. Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.
Texto de Baudelaire

domingo, 21 de novembro de 2010

Aquela tarde

O dia surgira repentino naquele Domingo, sem sutilezas, parecia um meio-dia de céu sem nuvens. Um "bom dia" seco despertou o que ainda insistia em aproveitar alguns minutos a mais de sono, levantou-se. Ela já no banheiro de frente ao espelho, tentando dar importância a algumas curvas tortas, deixava escapar um olhar perdido, indiferente a imagem refletida, refletia-se pra dentro. Carolina nunca foi boa em disfarçar ansiedades, preocupações ou paixonites. Ele fingia não notar, nunca, e naquele Domingo mais ainda se mantinha alheio aos sinais de Carolina. Sentou-se na cama tentando criar forças pra acordar o dia que não precisava ser acordado, a não ser para uma caminhada na praia, como faziam há algum tempo juntos. Caminhada, corrida, um breve mergulho, água de coco. Ela insistia sua companhia e ele passou a acordar cedo em todos os Domingos, não durou muito. Agora ficava ali na cama sonolento, observando todo o ritual de Carolina antes de sair, blusa, short, meias, tênis, cabelos, batom, os mesmos passos, o mesmo entusiasmo. Mas aquele olhar o inquietava, não de uma forma aparente ou consciente, pois não se importava, só o fazia prestar mais atenção naquele dia, naquela manhã e naquela mulher que por alguns instantes parecia uma desconhecida. Pensava nas manhãs de Domingo, o quanto se tornaram assim repentinas, frias e cada vez mais com olhares perdidos ou distantes. O que estava acontecendo? Havia outro? Outra? Ou simplesmente não havia mais nada? Deitou-se sabendo que não voltaria a dormir, que o olhar de Carolina quando saísse pela porta ficaria ali, nele, olhando pra dentro e pra fora, criando imagens e ideias involuntariamente. Poderia ir com ela, evitar a insônia matinal e uma mente perturbada, mas não, não se importava o suficiente, talvez tanto fizesse, ou talvez só quisesse dormir até um pouco mais tarde ao menos nos Domingos. O que importava era que ela saísse logo, pelo motivo que fosse, e o deixasse sozinho por algum tempo, mais tarde pensaria naquele olhar.

— Até mais tarde.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Enjoy


Quero não esquecer que essa vida é efêmera
e a felicidade um pretérito imperfeito.

Sem fantasias

Que nas surpresas tão necessárias do dia a dia transpareça você,
mais suja que o desejo de uma mente insana.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Amar.ação

O amor é matéria.
É pedra, até caverna,
que pode durar ou ruir,
incomodar, encantar
ferir.

sábado, 16 de outubro de 2010

Dos amores não vividos

Na fila mesmo comecei a pensar, talvez por ter de pagar uma conta atrasada, nessa relação de troca muitas vezes desigual e cheia de encargos. Pensei em Davi, no pouco tempo em que estivemos juntos, nos momentos raros em que o encontrava e como ele conseguia dar tanta intensidade a cada um, transformando os minutos em uma vida inteira de doação recíproca. No dia em que foi embora, disse que voltaria, que precisava de mim o mantendo de pé onde quer que estivesse, que eu era aquela última esperança, inspiração, sei lá. Me pôs num altar, me fez de santa a rogar, sobreviveu à distância e ao tempo, mas retornou por mim, não pra mim. Não sinto mágoa por não tê-lo de volta, pois se voltou é porque um dia o tive e ele me teve, foi, digamos, um amor abstrato, e pra mim bastou. Quando te encontrei ainda me encontrava no altar que Davi sustentava com palavras doces e promessas, por um certo tempo o esperei, mesmo estando contigo, decaindo em teus braços pouco a pouco, sobrevoava junto a ele no teu abismo. Só que, não sei, não entendo, a escuridão que ia me tomando em cada degrau dissolvia Davi, o altar e todos os sonhos que brotaram nele. Ele não foi você. É certo que Davi me deu o que não existia, você me deu livros e uma caixa de lembranças cheia no armário, me deu um recomeço real. Então apareceu Eduardo, tão inquieto pelo meu jeito, meu novo eu que você reconstruiu e moldou, que me inquietou também. Ele era intenso, tinha um olhar devorador e uma forma de me envolver às pressas que atropelou a tua calmaria posta sobre mim, tive vontade de subir as escadas correndo e me jogar nos braços dele como uma nova chance de me tornar tão importante quanto antes, ele me coloria novamente, dessa vez com cores mais fortes que os teus tons pastéis, e eu me joguei, não mais do que quatro ou cinco vezes, era uma esperança efêmera que só durava o tempo de um beijo ou de uma ligação. Eduardo era complicado, rodeado demais, mas me deu prioridades disfarçadas que só nós dois sabíamos, um segredo nosso que dava boas risadas e uma cumplicidade que viria a ser invejada se descoberta. Pouco tempo, já que você afrouxava a mão, mas logo apertava quando percebia o risco de me ver partindo pra sempre, e eu voltei pra você pela primeira vez, cheia de orgulho por te colocar acima de qualquer outro que pudesse ser melhor, tudo bem, ele também não era você. Aliás, qualquer outro era melhor e me fazia assim quando você foi esgotando a quota de simpatia, se tornando amargo e eu, irrelevante. Partimos um do outro por quase meio ano, o tempo de vivermos outras paixões, melhores do que nós dois. E foi ai que surgiu Adriano, me dando tudo o que você não deu, noites em claro regada a sorrisos, não mais a lágrimas, aventuras tolas que eram o suficiente para mim, deu conversas e perspectivas, a impressão de um futuro seguro, pois nos completávamos, não nos cansávamos um do outro. Adriano me deu a sensação de um beijo em cima de um skate, equilibrados, eu e ele, não em movimento, claro, mas era diferente, ele era uma cor irreverente. Mas você fechou a mão mais uma vez e com força, me deu uma queda brusca, me mostrou o que poderia ter me dado e não deu, me culpou e me prendeu, me rendi, pois ele não era você. Éramos tão culpados que nos remodelamos até nos encaixarmos numa desculpa, e olha! foi fácil te desculpar, só que nos diminuímos tanto que não cabíamos mais num romance convencional, soltamos a corda e pulamos na rede, você caiu primeiro porque não te segurei dessa vez, foi Benjamin a quem me agarrei com toda força, fui escorregando aos poucos, te vendo lá embaixo e vendo também a mão dele me segurando, eu sentia o que ele queria, não queria nada demais e ao mesmo tempo queria tudo, talvez de mim ou de outra, só que eu estava no momento que importava muito. Uma das minhas mãos se fundiu as dele e a outra te buscava como se pudesse alcançar o tempo e te salvar. Eu e Ben nos demos o momento certo, mas ele não é você. Se ao menos eu pudesse unir o momento certo e você... Só que você arrebentou o fio que nos ligava e agora te vejo lá embaixo, na rede, sem nada de novo nem velho a me oferecer, senão o você de sempre, nada que não desse a um irmão, amigo ou cachorro. Nessa fila, está quase chegando minha vez de ser atendida, estou pensando em tudo o que você me deu. O que você me deu realmente? Não consigo encontrar uma diferença que me eleve a qualquer outro, a não ser um amor tão falado e tentado a todo custo ser cravado em ti e tornado real. Talvez você seja só um corpo, uma imagem a ser contemplada, uma máscara que eu busco inutilmente encaixar noutro qualquer pra ser você.

Ego.

Nua, era como estava exposta na cama, à disposição, total, para banhar-se sob a luz do luar que entranhava pelas grades da janela. Os lençóis dispensados num canto abandonado da cama e ela, em seu lugar, em sua noite, posta como um bebê, como se protegesse o corpo dos sonhos ou dos mosquitos, e os travesseiros pelo chão, em negação ao desconforto que causavam noite após noite depois que começara a dormir sozinha. A TV estava desligada, o rádio estava desligado, a luz estava desligada, somente o reflexo de alguns fleches de luz da rua no espelho e a lua, teimosa, iluminavam o quarto e mantinham a visão dela acesa. Quando se deitava, normalmente ligava a TV, assistia programa qualquer até que o sono cessasse mais um dia rotineiro, ou então ouvia alguma música que a fizesse sentir lá no fundo uma lembrança que apertasse o coração ou a embalasse no marasmo da noite, permanecia nua na cama até que ele entrasse pela madrugada e a embrulhasse num dos lençóis que dividiam, era cauteloso e também tinha medo, de perdê-la, de ela adoecer, do frio, a mantinha quente com suas mãos envolvidas na cintura dela, a possuía ao envolvê-la simplesmente em seu cansaço operário. Ali, naquela cama, dois corpos se fundiam num sono só. Ele não se despia por completo, estava de prontidão ao acaso, acaso precisasse se levantar, acaso ela precisasse dele. E ela precisava. Mas o via dormir, desfalecido, num escudo tão protetor, que suspirava em silêncio, num meio pulmão, para não acordá-lo, envolvia-se num lençol e descia as escadas no escuro guiada pelo costume da casa até a geladeira, água ou leite. Agora se encontrava, ou se perdia, naquela cama, à meia-luz, senão inteira e fosca, ainda nua, em silêncio, em soluços tímidos ou receosos, à espera das mãos dele ou do cobertor, da sensação de uma música, de qualquer coisa que a fizesse crer em qualquer coisa de novo, até na TV. Era um não-sentir tão sentido, que ela chorava por dentro, agonizando por não lhe descer ao rosto uma lágrima sequer, era somente um corpo nu numa alma morta. Ele partira, talvez para o além, talvez para outra, talvez para o mundo, era o que menos importava, era relevante apenas o verbo mais-que-perfeito, que concretizava sua ausência, tornava matéria um corpo noutro espaço. Culpava os lençóis, mais ainda os travesseiros, a cama velha ou a janela, por vezes a escada, a luz, a TV, o rádio. Culpava a si mesma, a ele, ao destino, à vontade de Deus, ao acaso, a ninguém. Sentia muito por não sentir mais nada, a não ser o desejo de tê-lo de volta envolto em seu corpo nu.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Contesto!

Te calo em mim porque te quero silenciosa
apenas num voo rasante
cortando minhas cordas vocais
Te quero acreditar, mas quando tu falas a mim
ao outro, aos outros
me deturpas a imagem
te imerges nas minhas decepções
Te calo em mim pra me calar também
não tenho direitos sobre ti
Te calo em contradição comigo mesma
porque o teu grito é livre, me dói ouví-lo
mas o teu silêncio me corrói.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

"O amor não é prêmio"

A um certo modo de olhar, a um jeito de dar a mão, nós nos reconhece­mos e a isto chamamos de amor. E então não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é mais necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que se voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio.

Texto de Clarice Lispector

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Inter

Ter opções já é uma prisão de escolhas, a gente tem exatamente isto, isso ou aquilo pra escolher. Agora não ter opções, isso é pior, é nem escolher, é ser engolido pela não-opção da escolha involuntária. Me desgasta essa filosofia da liberdade inerente a mim, se não escolhi, onde esteve a opção ou não-opção? Foi do nada para o tudo sem meu querer, não-querer ou sem querer, simplesmente foi. Hoje, tenho escolhas dentro de um ciclo fechado, onde tenho total liberdade pra me locomover. Besteira. É como andar em círculos num finito de opções. Como se tudo dependesse só de mim pra escolher com autonomia, liberdade! Como se eu fosse um Deus. Essa liberdade é pura ilusão, coisa de quem acha que cria, que acredita no inato. Quem dera fosse assim, mas se não fosse pelo outro, onde estaria nossa existência, se ser é estar, é provocar, é reflexo? É tudo um complexo de construções, é tudo reboco de mundo, minha gente! É tudo uma espiral de ações e reações.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Bobo da corte

Ele se matava todas as noites
sempre.
Até que um dia se viveu numa manhã
e foi embora pro nunca mais.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Anatomia normativa

Adoecida, da alma ou da vida, seja lá o que for, estou perdendo todas as palavras que um dia pude traduzir qualquer dor de cabeça, gripe ou febre. Restam-me apenas tosses secas, uma face pesada e um corpo. As letras que me rodeavam acobertando minha pele, me fazendo sentir, agora se embaralham, se perdem em si mesmas. Erro os termos corretos, a gramática me foge totalmente, há falhas até na sintática dos meus pulmões, densos, que se contradiz a cada respiração, uma secreção agarrada em mim que se mostra ali, mas se nega a sair, um sintagma. Dores nos olhos, nas costas. Um dicionário e um corretor ortográfico automático vão me guiando pelas linhas, como remédios para um alzheimer linguístico. Aliás, remédios não, mas relaxantes, pois não sinto cura, não há. Amnésia. Doente do intelecto. E tudo por causa de um coração batido em dois, três, quatro, choque! - É psicológico! - São as noites frias! - É a alimentação! - Não, é falta de água!... É escassez ou. Faltam-me antônimos e me sobram sinônimos. Cinco, seis, sete... Há um certo cansaço no peito, na mente, por vezes, nos pés, e um pensamento cada vez mais longínquo, disrítmico, junto a sensações, sem semântica nem semiótica, só fonemas. Oito, nove, dez...._________________

domingo, 26 de setembro de 2010

Afetividade

Bolhas. Esses sentimentos fluem dentro de bolhas, por vezes sendo elas próprias uma sensação. Em alguns momentos, você sente a necessidade de acobertar e se camufla numa grande bolha protetora, e densa. Mas tem aquelas horas em que você quer estar apenas dentro dela, sendo levado pelos ventos pra qualquer lugar, sem medo de tocar em nada, já que somente ela dissolveria. O problema é que os sentimentos são bolhas mutantes, se transformando quando bem entendem em avesso se precisarem. A gente não. Somos bolhas ou estamos nela e a mudança leva tempo. É um processo sair de uma bolha construída pra você e virar essa mesma bolha pra outra pessoa. Sentimos a necessidade de ser uma bolha, mas também queremos estar dentro de uma. Surge então o dilema do peso das coisas, medindo o que vale mais a pena, e o paradoxo do tempo, mudando constantemente as nossas vontades. Nos transformamos, por fim, num vento qualquer, levando e sendo levado por tudo, esperando que num sopro ingênuo surja uma bolha leve e levada.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Leveza... Leve-az!

"Nuvens... Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstracta e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também. Nuvens... Que desassossego se sinto, que desconforto se penso, que inutilidade se quero! Nuvens... Estão passando sempre, umas muito grandes, parecendo, porque as casas não deixam ver se são menos grandes que parecem, que vão a tomar todo o céu; outras de tamanho incerto, podendo ser duas juntas ou uma que se vai partir em duas, sem sentido no ar alto contra o céu fatigado; outras ainda, pequenas, parecendo brinquedos de poderosas coisas, bolas irregulares de um jogo absurdo, só para um lado, num grande isolamento, frias.

Nuvens... Interrogo-me e desconheço-me. Nada tenho feito de útil nem farei de justificável. Tenho gasto a parte da vida que não perdi em interpretar confusamente coisa nenhuma, fazendo versos em prosa às sensações intransmissíveis com que torno meu o universo incógnito. Estou farto de mim, objectiva e subjectivamente. Estou farto de tudo, e do tudo de tudo. Nuvens... São tudo, desmanchamentos do alto, coisas hoje só elas reais entre a terra nula e o céu que não existe; farrapos indescritíveis do tédio que lhes imponho; névoa condensada em ameaças de cor ausente; algodões de rama sujos de um hospital sem paredes. Nuvens... São como eu, uma passagem desfeita entre o céu e a terra, ao sabor de um impulso invisível, trovejando ou não trovejando, alegrando brancas ou escurecendo negras, ficções do intervalo e do descaminho, longe do ruído da terra e sem ter o silêncio do céu. Nuvens... Continuam passando, continuam sempre passando, passarão sempre continuando, num enrolamento descontínuo de meadas baças, num alongamento difuso de falso céu desfeito."


Texto de Fernando Pessoa

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Incompleto

Antes mesmo de perder o equilíbrio, já estava desequilibrada. Os sons, a fumaça, os bêbados, todos, tudo empurrando pra fora um corpo que não estava mais ali, mas sugando a mente de quem permanecia estático, à espera de alguma coisa, da hora certa ou errada, tinha algo a esperar. Longe e perto, sendo tocada e rejeitada, se mantinha no mesmo lugar, aflita, calma, uma confusão prevendo uma contradição. Abraçava os braços dos desesperados e não conseguia lhe deixar tocar o rosto uma lágrima, era a agonia da noite - a vontade de chorar nos ombros de quem repulsava cada vez mais. Mas os outros choravam por ela, como se sua dor ressoasse por todo o ambiente e a livrasse daquele fardo ao mesmo tempo em que aumentasse, um balão cheio de ar. Não fazia o menor sentido estar ali, sóbria, embora fizesse todo o sentido do mundo.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Dito pelo não dito.

Procurei à noite inteira músicas e versos antigos que traduzissem o agora, ainda estou procurando, ouvindo, lendo, planando pelas superfícies e sendo recolhida para as bordas. É que não há o que me diga o que há, só há o que houve, tudo circundado por restos tão persistentes quanto necessários, impregnado. Esses escritos se vão pelos tempos arrastando o que vier pela frente, selecionando um qualquer intenso, como um imã que atrai qualquer coisa que possa ser atraída, e se constituem um qualquer cheio de significações para qualquer um. Foi um resgate madrugada adentro translaçando sono e insônia, não sei se adormeci, só sei que acordei pela manhã mais cedo que o de costume e levantei, carreguei a casa vazia com meus passos sonolentos de quem nunca precisou dormir na vida e tombei no sofá de frente ao jardim de inverno. O céu azul estava nostálgico, não num sentido ruim ou bom, apenas com algum sentido, uma nostalgia. Tive certeza então: eu estava acontecendo. Nos últimos anos, não tantos assim, mas o suficiente para ter uma entonação de relevante importância atemporal, estive sendo, fui essencialmente eu, traduzindo tudo o que quisesse e pudesse onde fosse possível ser escrito. Agora, as palavras parecem me fugir. Não tenho necessidade de resgatá-las, deixo-as livres compondo meus dias noutras palavras. É isso o acontecer, esse estar, esse constituir, preencher o tempo e não o espaço, porque ser impede que se esteja, provocando uma enorme necessidade de invadir o espaço com qualquer coisa que possa ocupar. Como estou acontecendo, não encontro mais explicação nem inspiração para traduções, pois estou por mim mesma traduzindo. Entendendo isso, pude conter o início de um desespero qualquer que me forçasse a voltar a ser e me permiti a simplesmente acontecer, jogando pro alto todo o sentido que construi quando aconteci sendo. Algumas pessoas me fazem ser. Outras me fazem acontecer. Eu, me faço duas ou mais, e quando sozinha acabo retornando à minha essência e traduzindo os espaços que pude ocupar e o tempo que pude perder.

Entre o ontem e o hoje, sendo ou estando, estou querendo o amanhã.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Instantes e bueiros

Havia lama pelos canteiros após uma chuva inesperada, cada pingo com pelo menos um grão de areia pintava as paredes brancas já rabiscadas, noite ou dia. O guarda-chuva não o cobria por completo, e de certo modo, além dos pés molhados, a calça já estava encharcada. Só a camiseta e os cabelos permaneciam intactos, até a mochila sofria os respingos do clima. Se aproximava de casa, não tinha pressa em seus passos, quem sabe um banho de chuva seria totalmente adequado naquele momento. Mas que momento, senão o vazio preenchido que o guiava até em casa? Não se sabe, apesar de haver um momento qualquer que fosse e precisasse de um banho de chuva, em seu incessante retorno sem prévias.
Capitu traíra ou não afinal? Não entendia essas discussões, nem queria. Queria era adentrar mais no que viria a ser escrito ou no que beirava o forno da padaria da esquina. Mas insistiam em Capitu, nas belezas de Capitu, nos olhos de ressaca de Capitu. Se Capitu estivesse na chuva, não provocaria tantos boatos essa suposta traição, os olhos traduziriam uma tempestade em alto-mar e o guarda-chuva talvez a cobrisse por inteiro. Mas havia um momento que precisava de um banho de chuva, não era Capitu. Quem sabe um momento escrito por ele mesmo. Ou nem escrito. Apenas o seu momento dissolvido em abstrações ou frustrações não registradas, ou simplesmente deteriorado em papel seda. Enfim, também havia o que precisasse ser afogado nesses canteiros e escorrido nos bueiros, esquecido.
Era inútil buscar o momento certo, mesmo caminhando alheio pelas calçadas e evitando encontros indesejados. Não queria mesmo falar sobre Capitu, talvez Hilda, mas Capitu não. Estava cansado daquele dia, daqueles momentos. Ainda bem que estava chovendo, pensava com um sorriso indiferente. Tinha vontade de largar o guarda-chuva ali mesmo e se atirar nas lamas com os pés descalços, à mercê de qualquer doença, calças dobradas até os joelhos e sem camiseta, a mochila escorrendo junto à corrente de água suja, lixo. Mas não era o momento, não era tempo de se expor por inteiro a qualquer temporal. E se aquela chuva fosse apenas uma nuvem passageira? Não arriscaria entregar-se assim, fácil, a um resfriado qualquer. E concluiu, não era o momento, definitivamente.

Talvez no portão de casa, antes de abrir, fosse o momento, ou no quintal, entre as flores cultivadas com apreensão, não sabia que eram tão delicadas. Aprendera a cuidar delas com o pouco de afeição que lhe restava, que as chuvas ainda não haviam levado. E floresciam, ali, no lugar delas. É, quem sabe entre elas houvesse um momento. Mas não, eram muito sensíveis, e ele queria escorrer rua abaixo com o mínimo de cautela. Não, entre as flores não, nem entre as ruas, ou na porta de casa. Desviou-se então para um bar qualquer.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Orvalho do Mediterrâneo

para Bruna Almeida.


E o perfume que exalava naquela casa
Era a porta de entrada à minha alegria...


Alecrim. A primeira palavra que me veio à mente quando a vi cruzando a esquina. Alecrim, pelos fios dourados ou pelo perfume que logo sentiria, ou pela cerveja que partilharíamos naquela tarde mesmo, pouco depois de nos esbarrarmos, desastrada como só ela. Foi quase o destino intercalando nossos presentes, que beiravam um futuro premeditado, pois alecrim eu já sabia que plantaria naquele jardim a colorir todo o resto da casa, onde adormeci na mesma noite, passada lentamente sob o seu relógio. Ela controlava o tempo como ninguém, atrasava as horas e me tecia um longo tempo ao seu lado.

Parecia mesmo alecrim, ou rosa, por vezes, girassol. Pela manhã não acordava junto ao dia, era da noite, das madrugadas, e por isso chamava atenção por onde passava, um alecrim noturno exalando um aroma único dentre sombrios bosques e jardins adormecidos. Comecei a ter insônia e dias exaustos, afinal, dormir à noite seria estupidez enquanto ela se mostrava toda a quem quisesse ver. Eu queria. Entre bebidas quentes ou geladas, entre fumaça, desvarios, eu queria vê-la, somente. Às vezes tinha o privilégio de sentir aquele cheiro em meio a tantos odores, os que dissolviam-na num clarão escuro daqueles delírios noturnos rotineiros. As horas congeladas pelas suas mãos amornadas me davam a impressão de que podia tudo, e podia. Aquecia-me a pele sua carência disfarçada pelos tons dourados dos cabelos, alecrim, e num jardim, há pouco estranho, eu me encontrava à vontade, como um nômade.

Alecrim!, o qual plantei entre arbustos, cactos e nim, em pouco tempo desabrochou, disse ela num desses encontros perdidos. Disse também que exalava um perfume singular pela casa, mal sabia que era seu próprio perfume, distraída, ou despercebida de si. Aos acasos, a via por ai, dissipando-se, mais linda a cada esbarro, florescendo junto ao alecrim de seu jardim e de sua essência. Sim, era linda, e eu não entendia pra onde ia tanta beleza aos olhos dos outros e dela mesma. Tantos toques, tantos cheiros... Passava simplesmente, noturna, imune e impregnada pelos devaneios alheios e dispensáveis.

sábado, 26 de junho de 2010

Cronômetro

Soube naquele exato momento o que deveria ter descoberto há mais tempo. Agora era tarde. Não muito tarde, mas o suficiente para não dar mais tempo de resolver o que desejara ter resolvido a tempo, era simplesmente tarde. Ali, no instante de uma parada de ônibus, poucas pessoas o acompanhavam naquelas reflexões, não havia quase ninguém, aliás, arrisco dizer que daquelas poucas, nenhuma realmente o percebia. Os carros passavam, pareciam discorrer sobre um longo romance, e ele agora sabia finalmente. Sabia sobre os fins e começos. A demora do ônibus parecia proposital, como se indicasse uma espera provocadora de um atraso, quanto mais esperava, mais dava indícios de que não queria que chegasse, ofendia o tempo e o trânsito, tinha que descobrir qualquer coisa que justificasse o próximo passo, aquele que daria para continuar a viagem. — Não podemos insistir. — Sim, podemos. Ainda dá tempo pra tudo se consertar. Diga que sim! — Não, melhor não. E se foi escorrendo pelas horas como a água escorria pelos rostos e ralos depois de um banho demorado, ia carregado daquele corpo, agora límpido, para qualquer esgoto. O tempo nunca foi muito exato para ele, às vezes adiantado, outras, atrasado. Mas ele sabia que daria tempo e que poderiam ter consertado tudo, agora sabia.

O sol estava quase se pondo e Clarinha o esperava, nem ansiosa nem apática, apenas o esperava com ar de quem não espera nada, como se não houvesse nem nunca tivesse havido o que esperar. Quando ficava em casa, sempre havia muito o que fazer, então até que ele chegasse ia vivendo suas rotinas normalmente, sem que nada a afetasse. Era uma indiferença diferente, pois dava pra sentir o grande sorriso vindo do jardim abrir o portão da frente para recebê-lo e a casa, impregnada por passados dispensáveis de recordações, se transformava num ambiente perfeito para artistas fracassados, como eles dois, que coloriam sempre alguma parede juntos como se precisassem pintar alguma ausência de suas vidas. Beijavam-se entre as cores sujas, florescentes, e os desenhos indecifráveis, lembravam duas crianças que borravam suas roupas e que logo logo levariam bronca.

Ele, na parada, pensava em tudo isso, antes e depois de pegar aquele ônibus, havia parado ali. Lembrava também de Yasmin, que há alguns anos fora embora num voo imediato, sem sequer haver tempo de se despedirem. Ela não podia tê-lo, ele não podia perdê-la, e mesmo assim partiram-se um do outro em menos de um mês. Foi inevitável, para além de suas vontades, digamos quase um típico destino cruel. Quase porque Yasmin estava voltando. Não naquele ônibus que ele esperava, mas viria depois que ele passasse. Ela estava no passado, no presente e no futuro daquela parada. Mas disso ele não fazia mais questão de saber.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O vento da madrugada

Dizem que a cidade anda cheia de carros demais, fumaça demais, poluição demais. Em certas horas, é isso que dá pra ver mesmo, por isso gosto das madrugadas e dos drogados que andam perdidos por ela, a pé. Fica assim uma ausência, sabe? Uma ausência presente de tudo o que me agrada, só o vento em redemoinhos e nada pra atingir, folhas pelo chão, alguns insetos cientes da segurança do breu dos cantos das calçadas. Seria seguro se essa cidade fosse utópica, mas talvez seja essa insegurança das horas ruins que me acolhem melhor do que o sol do meio-dia. É uma paz só. Poucos me acompanham nessas passadas da noite, sem pressa nenhuma, afinal é perigoso, apesar de tudo estar ali exposto a olho nu, sem disfarces tóxicos, por isso gosto dos drogados, eles sim sabem o que usam. É uma consciência consciente, irônica, vai entender.

Acendo meu cigarro, a latinha de cerveja na outra mão e nesta noite caminho por aqui, sem rumo, sem nada, além do peso dos dias que cravam meus pés ao chão. Andarilho, vou dando passos bambos e dando com os ombros, cumprimentando desconhecidos e aceitando o que me oferecem, também sou um estranho. Ainda não falei em lua, mas por falar nela, está com aquele sorrisão minguante, fazendo da minha trilha uma confusão de caminhos, também a aceito. Não me canso dessas madrugadas nem das longas caminhadas, me canso dos dias, dos conhecidos, da inércia, me canso dos cigarros repetidos, quero tragos diferentes, assim não me vicio, degusto. Também dizem que o mundo vai acabar logo logo. Acredito tanto que já comecei a fazer a listinha das coisas que ainda tenho que fazer antes dessa maravilha. Uma delas é comprar uma bicicleta e dar ao vento velocidade pra me atingir. Por enquanto, é o único item da lista. É difícil pensar em outras coisas quando só penso nisso durante as madrugadas e nelas é o único desejo que tenho. Poderia já ter uma bicicleta, mas durante o dia não sinto as mesmas sensações. Quando sinto, é madrugada e pego carona em garupas alheias, vou me levando por outros sentindo as sobras do vento.

Estou assim, parado, fumando, bebendo, sentindo, esperando caronas com minha lista nas mãos e eu poderia morrer agora junto ao mundo ou simplesmente me dissolver em fumaça que continuaria assim, feliz. E de qualquer forma, se não aparecer carona qualquer, vou a pé.

domingo, 13 de junho de 2010

Pelas ruas passadas

As ruas estavam meio vazias, era Domingo afinal e a cidade costumava ficar assim ausente de vidas, cheia de energias sobrevoando um céu livre de definições, mesmo nublado. Ia dividindo os passos com a própria sombra que tinha pressa, apenas pressa. Poucos carros marcavam a velocidade, isso era até bom, estar situado ali naquele vácuo ostensivo. Talvez pensasse em alguma coisa, em alguém. Ou talvez não pensasse. Mas pensava que não pensava e se sentia livre pra pensar qualquer coisa. Tinha em mente algumas vagas lembranças de um ontem irreal, tudo o que era passado não parecia de verdade para ele, eram sonhos distantes até mesmo dele. Só o agora o afetava, depois, ou antes, nada mais sentia. Achava ruim por alguns instantes, até o momento em que virassem passado. Depois, nada. E naquele instante, pensando nisso, percebeu que estava sozinho, por dentro. Até se lamentaria, mas estava sozinho. Algumas mesas desocupadas no canto da calçada deram lugar a uma solidão de Domingo, e ainda nem era noite. Olhava a rua quase sem movimento e suas mãos cansadas da semana, podia sentir uma dor física tornando reais aqueles dias de trabalho. E só. Pensava sem desesperos nos incômodos presentes, como poderia ser uma companhia agradável se não estava bem? E como ficaria bem se ninguém estava ali pra segurar aquela mão calejada? Difícil de entender. Só saem nos finais de semana com sorrisos, é um pré-requisito bastante importante, deveria saber disso ou ficar em casa. Às vezes até ficava em casa esperando por qualquer um que trouxesse algum sorriso usado, mas traziam sempre restos e durava tão pouco que mal dava pra pensar em causar boas impressões como recompensas. Então preferia sair por ai, despido de sensibilidades, sorrisos ou lágrimas, rodando pela cidade sem outros risos ou piedades. Não, não era uma boa companhia, nem poderia ser, já que dependia até mesmo de um espelho pra refletir qualquer traço bom. Sem companhia, voltava pra casa sem pressa pelas ruas mais vazias ainda das noites de Domingo. E pensava, talvez até gostasse da sua liberdade inútil.

domingo, 6 de junho de 2010

A insustentável leveza do ser

... Ele a estreitou contra si e levemente ela adormeceu em seus braços. Nos braços dele, mesmo no auge da agitação, sempre se acalmava. Ele contava a meia voz bobagens para ela, palavras tranqüilizadoras ou engraçadas que repetia num tom monótono. Quando dormiam, ela o segurava como na primeira noite: apertava-lhe firme o pulso, um dos dedos, ou o tornozelo.

Tomas dizia consigo mesmo: deitar-se com uma mulher e dormir com ela, eis duas paixões não apenas diferentes, mas quase contraditórias. O amor não se manifesta pelo desejo de fazer amor (esse desejo se aplica a uma multidão inumerável de mulheres), mas pelo desejo do sono compartilhado (esse desejo diz respeito a uma só mulher).


Trecho do livro "A insustentável leveza do ser",
 de Milan Kundera

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Pingos e batucada

Sobre a chuva, tão perto de mim
estejas tu, que goste dela simplesmente
não pense em amansá-la numa pintura
ou enquadrá-la numa poesia.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Do caos ao caso

 para Bruna Almeida.

Eram pretos. Aqueles olhos arredondados como amêndoas, nada tinham de castanho, nem claros nem escuros, mas pretos. Era um abismo rude que convergia com os fios dourados dos cabelos e da pele delicada, uma pedra bloqueando a ressaca de um mar já não tão insistente à beira da praia ou um milharal sem terra, suspenso. Preto, como uma noite iluminada apenas pelas luzes dos postes antigos que clareiam os caminhos bêbados dos boêmios e suas palavras murmuradas numa folha seca de papel amassado, posto em dúvida a cada tracejo trêmulo no canto do bar.

Ali, naquele bar, aqueles olhos iam se tornando negros, escurecendo junto à sombra de uma lua indecisa em suas formas, redonda ou oval, qual seria? Eu os via perseguindo qualquer coisa que não fossem as gotas do copo escorregando pelas curvas desalinhadas na mesa, me perseguiam com algum desinteresse eminente e me enclausuravam num escuro nauseante. Aquela negação me causava isso, desconforto e sem recusa eu me ia deslizando pelas pálpebras enigmáticas, afundando, decaindo num marasmo assustador, eu era só mais um nadando naquelas profundezas. Mais uma vez a delicadeza, de um toque sutil, mãos rodeando os cabelos, buscava expor uma luz escondida na mesma face onde aqueles olhos estavam descobertos, intimidando a quem ousasse desafiá-los a uma disputa injusta.

Ousado, fui sentindo minha leveza sendo sugada pra dentro daquele oceano, fundo de um poço habitado pelas mais estranhas criaturas marítimas. Talvez fosse um peixe naufragado e que agora descobria apenas os olhos e mantivesse o resto do corpo contornado por florescentes escondido detrás de uma rocha, tão firme quanto aquele olhar que reservava só para ele todas aquelas dores do mundo. Ou talvez fosse um abismo ao avesso, pois mantinha um sorriso aberto, destemido, contrastando com tudo mais que envolvia aquele cantinho à meia-luz. Eram dentes tão brancos, desesperados. E olhos pretos, frios. Me sentia caindo numa suavidade de oposições, sendo tomado por um redemoinho de ternura e desprezo daqueles olhares fixos, desinteressados. Eu, de olhos claros, estava totalmente vulnerável e agora já não controlava os indícios do amanhecer, estava com medo do próximo pôr-do-sol levar o que uma madrugada me trouxe em meio a tantos outros olhares e sorrisos evidentes.

domingo, 16 de maio de 2010

Selado

Quando falo alto e em bom tom
não é o que digo que quero realmente dizer
você deveria ser capaz de traduzir
induzir ou até deduzir
essas palavras de lagoa rasa
e ir além das superfícies
silenciosas e contraditórias
que reforçam essa cela

Quando falei o que queria dizer
sussurrei...

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Motivação

É sempre bom ter para que fazer o quê
ou fazer não sei para quê
ou por quem fazer o quê
ou por que fazer o quê
ou quem fazer por quê
ou por que fazer por quem
ou fazer o que para quem
ou não fazer, nem o quê nem o para nem o por
e nem o quem.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Guarda a chuva

No preto e no branco,
até mesmo no cinza e nas cinzas,
esse colorido resgata as cores que um dia de chuva
um dia levou
e traz um sol refletido nos mais belos espelhos d'água.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Reestruturação

Por alguns momentos perdi o fio da meada...
Mas foi até bom
ampliar, absorver e filtrar
algumas coisas
manter um foco agora complementado.
Como se ir e ver além de si tivesse transformado o vir a ser.

Estou mais e menos do que fui
nada do que seria
e tudo do que sou.

Como um cubo mágico que precisa ser desconfigurado pra ter sentido.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Os últimos cigarros da noite

Os sonhos de fumaça que atormentam meu sono
me lembram uma noite remota em que repousava noutras nuvens.

São nestas ondas que mergulho ultimamente.
E só tenho me afogado em todo ar que as constituem, vazio...
Mas é também nessa falsa densidade que me encontro e permaneço inativa
Imersa num profundo e silencioso marasmo.

... you gave me three cigarettes to smoke my tears away.

sábado, 17 de abril de 2010

Melodias de Orfeu


... Quando ele tocava, os pássaros paravam de voar para ouví-lo e os animais selvagens perdiam o medo. Orfeu era casado com Euridice, dona de uma beleza singular, a qual amava mais do que a música e pela qual interessou-se Aristeu. Ela não o quis, foi perseguida e na tentativa de escapar, tropeçou em uma serpente e foi picada, era Cirene, a mãe de Aristeu que transformara-se para matar aquela que ousava rejeitar seu filho. A morte de Euridice causou tamanha dor em Orfeu que, depois de tanto sofrer, desceu ao mundo dos mortos com sua lira para resgatar a amada. Após adormecer Cerbéro com sua canção, chegou ao trono de Hades. A música de Orfeu fez-lhe chorar lágrimas de ferro! Perséfone, esposa de Hades, implorou-lhe que atendesse ao pedido do músico. Hades permitiu que Euridice retornasse à vida, mas com uma condição: Orfeu só poderia olhá-la quando estivessem à luz do sol. Assim, partiram por entre as sombras ao som da lira de Orfeu, que tocava para guiar a amada. Mas quanto mais se aproximava da superfície, mais crescia sua dúvida. Não tinha certeza se Hades deveras a tinha libertado para voltar à vida. Então Orfeu quis certificar-se de que ela o seguia e olhou para trás, para Euridice, que imediatamente retornou ao mundo dos mortos para sempre. Orfeu, amargurado, nunca mais olhou para outra mulher. Até que um dia, as mulheres selvagens, Mênades, cansadas de serem desprezadas por ele, o mataram cruelmente. Desde então, os rouxinóis cantam mais docemente do que nunca, pois Orfeu e Euridice estão juntos de novo.