Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O vento da madrugada

Dizem que a cidade anda cheia de carros demais, fumaça demais, poluição demais. Em certas horas, é isso que dá pra ver mesmo, por isso gosto das madrugadas e dos drogados que andam perdidos por ela, a pé. Fica assim uma ausência, sabe? Uma ausência presente de tudo o que me agrada, só o vento em redemoinhos e nada pra atingir, folhas pelo chão, alguns insetos cientes da segurança do breu dos cantos das calçadas. Seria seguro se essa cidade fosse utópica, mas talvez seja essa insegurança das horas ruins que me acolhem melhor do que o sol do meio-dia. É uma paz só. Poucos me acompanham nessas passadas da noite, sem pressa nenhuma, afinal é perigoso, apesar de tudo estar ali exposto a olho nu, sem disfarces tóxicos, por isso gosto dos drogados, eles sim sabem o que usam. É uma consciência consciente, irônica, vai entender.

Acendo meu cigarro, a latinha de cerveja na outra mão e nesta noite caminho por aqui, sem rumo, sem nada, além do peso dos dias que cravam meus pés ao chão. Andarilho, vou dando passos bambos e dando com os ombros, cumprimentando desconhecidos e aceitando o que me oferecem, também sou um estranho. Ainda não falei em lua, mas por falar nela, está com aquele sorrisão minguante, fazendo da minha trilha uma confusão de caminhos, também a aceito. Não me canso dessas madrugadas nem das longas caminhadas, me canso dos dias, dos conhecidos, da inércia, me canso dos cigarros repetidos, quero tragos diferentes, assim não me vicio, degusto. Também dizem que o mundo vai acabar logo logo. Acredito tanto que já comecei a fazer a listinha das coisas que ainda tenho que fazer antes dessa maravilha. Uma delas é comprar uma bicicleta e dar ao vento velocidade pra me atingir. Por enquanto, é o único item da lista. É difícil pensar em outras coisas quando só penso nisso durante as madrugadas e nelas é o único desejo que tenho. Poderia já ter uma bicicleta, mas durante o dia não sinto as mesmas sensações. Quando sinto, é madrugada e pego carona em garupas alheias, vou me levando por outros sentindo as sobras do vento.

Estou assim, parado, fumando, bebendo, sentindo, esperando caronas com minha lista nas mãos e eu poderia morrer agora junto ao mundo ou simplesmente me dissolver em fumaça que continuaria assim, feliz. E de qualquer forma, se não aparecer carona qualquer, vou a pé.

Um comentário:

Inaê disse...

Esse feliz no final fez eu reler e sentir o texto de outra forma. Feliz por isso!