Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Cardápio

Foi quando cheguei em casa mais cedo, logo depois do trabalho, nada de bar, ou pizzaria, ou padaria, ou restaurante, ou café, nada de livraria, nem biblioteca, nem cinema, nem casa de amigo. Vim direto pra casa, pois já não aguentava mais estar pensando tanto em você naquele dia, depois de tanto tempo, naquele dia em que você voltou ao meu pensamento simplesmente porque alguém que não era você entrou no mesmo ônibus, alguém que não era você também sentou na última cadeira, alguém que não era você desceu na mesma parada. Pedi sushi. Assisti a mais uns capítulos do seriado. Tomei café. Assisti a um filme. Fiz calabresa. Li um conto. Comi o último pedaço de torta. Liguei a TV. Pedi uma pizza. Coloquei Bethânia. Abri a primeira cerveja. Como alguém que não era você deve ter feito assim que chegou em casa com alguém que não era eu.

domingo, 15 de setembro de 2013

Pra viver como se fosse fins

Não quero ter a certeza da última vez
quero já ter vivido
e viver pensando nas possibilidades
daquilo que teria sido
se eu tivesse realmente vivido.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Amórbido

Tenho conseguido me virar bem sem você. Tenho até estado bem, já não encho os outros com meus lamentos, há tempos, apesar de ainda me pegar chorando sozinha. Talvez nem me escutem mais, ou talvez eu que não diga mais nada com nada mesmo. Os amores continuam passando por aqui, mas agora como fantasmas vigilantes à espera da minha, enfim, desistência e rendição. A verdade é que não morro mais por amor, que fiquem a me rondar e fazer companhia, mas não morro. Pois morrer é virar do avesso, é a certeza de nunca mais poder te tocar com as mãos da primeira vez, aquelas que se entrelaçaram, me deixando segura ao atravessar a rua, me querendo pulsante do outro lado, por quanto tempo, por onde fosse, e como desse. Vivendo por amor, cercada pelo que poderia ser, atormentada por fantasmas de possibilidades e pelo amor que um dia foi seu, tenho conseguido até me virar bem. Já não me incomoda você ter me virado as costas.

domingo, 1 de setembro de 2013

A idade do concreto

Não é a primeira vez que tentam invadir o Cocó com o argumento de trazer algum tipo de desenvolvimento para a cidade. Fico a pensar se desenvolver é isso: de árvore em árvore, enfim, se chegar a nada, além de chão seco, paredes firmes, tinta fresca e metais reluzentes. “Tudo isso por apenas algumas árvores. Tudo isso por causa de um viaduto. Não vejo esse escarcéu todo por outras causas. Estão sendo contra o desenvolvimento da cidade. Querem voltar à idade da pedra. Vagabundos! Vão trabalhar!” Eis algumas máximas vindas do lado de fora, de pensamentos cristalizados num sistema que nos molda anos a fio. Seria até de se compreender, não fosse a tamanha resistência a perceber outras realidades, outras formas de se construir uma sociedade. Muitas vezes nos prendemos às ideias apenas para comprovar nossa personalidade, moral, talvez “ética”, e nos agarramos a elas mais que tudo, nos fechando para os outros, para o espaço e direito dos outros. Fixe: esses outros não se resumem a nós, seres humanos, mas a tudo, a todos que compõem nossos solos, ares, águas e céus. Ao atravessar a entrada, destroçada pelos mandantes do desenvolvimento, mas aos poucos sendo colorida por instituições, entidades, indivíduos que percebem o mesmo que aqueles que ali ocupam e estão dispostos a defender o parque com unhas e dentes, e até com estômago, logo percebi: não são apenas árvores, não é só um viaduto, não são “vagabundos”. É uma causa, é um sentimento que não suporta mais a falta de sentimento reproduzida desde os tempos onde tempo é dinheiro. É um ideal que precisa cada vez mais ser reforçado, não apenas por sonho, utopia, mas por necessidade. Mudar as formas de se construir nossos espaços e nossas vidas é necessário. É preciso reconhecer-se enquanto ser vivo, enquanto parte de algo maior e, principalmente, enquanto único ser pensante responsável por esse algo e por tudo o que o constitui, mas que tem ido bastante contrário a isso. O incrível disso tudo é que algo tão simples e óbvio não consegue ultrapassar as barreiras sequer da visão de muitos, talvez por estarem acostumados a lidar com complexos sistemas mecânicos, sempre em busca de avançar, evoluir, progredir, desenvolver, como se quisessem preencher as falhas que ecoam entre os abismos cavados ao redor de cada um por anos e anos. Os poucos que tentam redefinir esses tons são tidos como loucos, transgressores, subversivos que vão de encontro às melhorias de nossa cidade. Melhorias?!... Talvez esteja na hora de “avançar, evoluir, progredir e desenvolver” de dentro pra fora, pois todos temos barreiras, mas podemos delas reconstruir pontes, praças, parques, e dai ver que a melhoria mais importante é ser gente de novo. Não é voltar a idade da pedra, é sair da idade do concreto.