Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Nada demais

Foi só um amor-mal entendido que não soube perguntar se eu estava indo ou voltando quando nos esbarramos na porta da frente. Ele passou direto; eu o acompanharia se não tivesse dado as costas e retornado à cama, pensei que iria atrás de mim. Se não tivéssemos olhado para trás, nem teríamos notado o desencontro. Mas olhamos e mesmo assim seguimos rumo ao nosso próprio destino, nesse egoísmo inevitável de ser. Com ele, eu seria fragmentada, mas bastaria. Quero tanto ser que acabo sendo, sozinha, uma completude em falta, uma identidade plena que de nada me serve agora que ele veio e se foi sem ao menos dizer seu nome. Quero tanto ser que esqueço o que mais quero: ser quebrada assimetricamente e espalhada por ai, sendo tudo e nada, incompleta e cheia de defeitos, um erro orgulhoso por ser criticado, um maltrapilho de sentimentos desgovernados que desequilibrem minha razão me mantendo consciente, um devir angustiado à espera de um altar absoluto que me estagne e ponha um fim perfeito, uma esperança em infinita renovação, sendo feliz por não ser, estando com esse amor. Ser inteira por estar em pedaços.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Embaçada

Foi na beira do caminho
que encontrei uma rosa
vermelha embaçada
acolhida num cantinho
disfarçada numa borboleta
pronta pra voar
assustada
soluçando
não ousei tocar...

A rosa ficou e eu segui
pela beirada
num cantinho
acolhida e soluçando
disfarçada no voo da borboleta
que ousa cortar caminhos.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Morena-disritmia

As mágoas dela presas na janela
as palavras, na boca entreaberta
na corda bamba de um ritmo alterado


As lágrimas presas nos cílios postiços
as decepções pintadas, ajustadas
abafando o grito estúpido da fera

No copo mais uma promessa
um pedaço da noite, de açoites
no corpo marcado, cansado
os cabelos agitados
a roupa leve, a dança
os passos bem delineados

A morena dançarina
bailando nas nuvens do desespero
num tango sedutor
um samba tentador

Na janela, a boca presa
as mágoas entreabertas
num copo de lágrimas
prometidas à noite

Pintada de dança
os cabelos leves, o corpo agitado
um tango desesperado
num samba delineado
de uma morena magoada.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Agonia de ser

Minha vida é tentativa, vivo de tentativas, tolas insistências em vão. Ontem falhei. Hoje falho. Amanhã? Já não tenho pressa para o amanhã. Transformo cada segundo dessas noites efêmeras em infinitas fugas para o nunca mais. Luto a cada instante contra o que virá, o que é, e o que se foi tento expelir distante como num espirro em espontaneidade infantil. Estou aqui querendo ir embora, tentando ficar, tentando ir. Falho. Ajo inutilmente por nada. Ando em passos alternos, largos e curtos para o lugar nenhum. Em cada amanhecer imploro a noite quieta, cada despertar é em agonia abafada pelo sol. Me encontro perdida em desespero, morrendo todo dia, nascendo todo dia. Recrio-me para o fim me refugiando num tempo que não existe e transcendendo de mim para um eu qualquer, mantendo-me segura em meus próprios erros: motivos inventados pra disfarçar na culpa uma possível rejeição de quem me exige além dos meus propósitos. Redefino-me em obrigação por obrigação. Eu sou tentativa.

Canto à liberdade

Mais um dia, uma manhã sem sol, nublada, chovera a noite toda. Um mal estar a impediu de levantar antes da hora e fazer alguma coisa diferente, de aproveitar o tempo que não teria se acordasse na hora certa. Ficou na cama esperando o despertador tocar, quis dormir novamente, mas o sono deu lugar ao mal estar e agora só o que podia fazer era esperar.

Aquela mulher que mora sozinha numa casa relativamente pequena, vai ao trabalho, ama desesperadamente em silêncio o colega de trabalho, faz compras, cumpre os afazeres da casa e sociais, uma cidadã, tem manias, algumas insuportáveis, come pizza e sorvete aos sábados, não vai à igreja aos domingos, gosta de tango, mas não dança nada, ouve qualquer música pra dormir, usa sapatos da moda e roupas de grife, se veste mal em casa, é mais confortável, gosta de olhar para o céu à noite porque durante o dia a claridade dói na vista, quase não vai à praia, mas gosta do mar, nunca foi casada, não quer ter filhos, prefere andar de ônibus, não gosta de caminhar, só sai de casa para o trabalho ou quando extremamente necessário, como visitar os pais no natal, no dia das mães, dos pais, páscoa, não gosta de férias, lê sempre que o silêncio se torna desconcertante, gosta de poucas frutas, admira a fé, não acredita em deus, nem em paraíso, muito menos em inferno, tem um peixe no aquário e muitos enfeites, que vota todos os anos e assiste ao jornal diariamente é uma mulher livre. Presa em suas próprias escolhas, algumas necessárias, vive seus dias livremente iludida na sua autonomia. A tv anuncia um lançamento, carro do próximo verão, sinta a liberdade!, quanto custa? É preciso acreditar em tudo o que se vê e ouve, afinal é liberdade, e essa mulher é livre, esbanja satisfação em estar envolvida nas linhas dessa liberdade construída anos a fio. Liberdade que perpassa todos os discursos, enlaça e enforca; não a mesma do último canto, o canto solitário do cisne, o canto da liberdade. Mas essa mulher é livre.

Ainda na cama, segundos antes do despertador tocar, ela o desativou. Mais um dia livre de tudo e de todos a esperava no primeiro gole de café. Levantou bem na hora.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Brinde trincado

 para inaê.

— Aos grandes, artistas e cientistas do dia-a-dia, um brinde significativo, o primeiro gole, que sacia todos os desejos e anestesia todas as dores! Enquanto pessoas, ser humano degradante e vil espécie, o desprezo, o último gole, o escárnio do bêbado.
Pedro já passava do oitavo copo de cerveja esperando por Lara. Estava ali sozinho desde o início da noite, mais um pôr do sol, sozinho. Algumas menininhas passavam, sorriam, hesitavam se aproximar por avistarem outro copo na mesa, algumas até o cumprimentavam, o copo estava vazio mesmo, mas logo iam embora. Pedro era sério e não alimentava muita conversa, só bebia. Cada copo que virava era uma sensação diferente, esperança, decepção, raiva, conformismo, tristeza, dormência. Muitas vezes experimentava esses goles, sozinho, acompanhado, em bares, boates, festas insignificantes, outras raras valiam sua embriaguez. Desde que conheceu Lara, passou a beber mais, menos, confuso. Ela era inconstante, insaciável, desgastante. No começo esperava por ela tanto tempo que adormecia no sofá mesmo, no outro dia a ressaca o castigava, mas ele sempre esperava. As poucas lembranças o rodeavam e o faziam ir levando cada final de tarde pacífico, resignado. Dissuadia as verdades que ali se apresentavam com queixas, vivia se maldizendo, o mundo era desprezível. E era mesmo, um lugar miserável, um vírus egoísta disfarçado, cada um agindo por si e não assumindo suas intenções sobre o outro, justificativas baixas que qualquer um pode sentir, mas evita. Como já disseram por ai que só o que atinge a si é sentido realmente.
Os goles iam passando imperceptíveis, ele ia se enganando, ela ia pra lugar nenhum. Bêbado, cambaleando pelas calçadas, Pedro ia pra casa toda noite. Algumas vezes ela o dava um banho de água fria, outras vezes, quente, nesses dias em que um casal se cuida e se revela. Dormiam juntos uma vez por semana, quando ela tinha tempo, era uma fase conturbada que exigia muitos sacrifícios. Suas necessidades iam além da vidinha comum dele e o tempo estava sempre passando, era preciso aproveitá-lo, sugá-lo. Ela queria mais, mais do que apenas goles de cerveja no fim da noite. Queria talvez um vinho relativamente bom. Só que Pedro não gosta muito de vinho, embriaga rápido e ele bebe qualquer bebida no mesmo ritmo e intensidade. Ele gosta de sentir o tempo se esvair aos poucos, o chão se desequilibrar vagarosamente, e assim equilibrar seu corpo nas ondas do mundo do seu jeitinho, sem pressa nem pressão, seguro de si e mais crédulo. Mas desde que a conheceu, perdeu o equilíbrio, muitos conceitos mudaram, os olhos agora eram crus, outras verdades e não tão agradáveis, ele inquieto se desconstruía. Ela, incoerente, com seus questionamentos e teorias, gosta de vinho, adormece um dia ruim e se põe disposta no outro pronta pra guerra rotineira que suas escolhas lhe deram. Ele, desacreditado, prático e vulnerável, e seus goles, antes promissores da noite e distraídos, agora apaziguadores de um visionário falido, ainda não gosta muito, mas vai engolindo essa liberdade sutil e gradativamente amarga.
Apesar de tanto descaso, eles se amavam. Um amor apressado, desordenado, mas ainda assim amor. Por isso ele a esperava e ela ainda não tinha tempo, o amava demais pra largar seus ideais e jogar-se incondicionalmente num amor romântico, ingênuo e irreal. Lara sempre foi muito firme em suas decisões, não tão racional nem pessimista, mesmo estando num mundo péssimo conseguia se equilibrar na realidade nua, era forte. Ele a admirava, amava e esperava desfalecendo em cinzas e ressurgindo aos poucos, mais convicto, maduro, menos palhaço de bar que provoca tantos risos, pois agora ele percebia que as piadas não tem graça, mas sim o palhaço que se expõe ao ridículo, as pessoas gostam disso, sentem-se aliviadas quando os outros libertam seus defeitos e caem de seus altares, quando o ego é resumido a uma piada, alimentam-se da audácia do outro e vão vivendo em grandes bolhas arrogantes.
No décimo quinto copo, a cerveja já quente, Pedro ajeitou-se na cadeira dormente, tirou o dinheiro da carteira, chamou com ar de condenado o garçom e pagou a conta. Nada de Lara, a lua já estava cheia no céu, poucas nuvens, já dava pra ver as estrelas e fazia frio, ou talvez fosse só febre. Faltavam poucos goles pra tudo terminar e mais um dia de enganos concluir e reafirmar suas convenções, costurar o tempo com a mesma linha, a mesma agulha, mascarado, imerso nas armações traiçoeiras, no velho destino de tudo seguir em frente e nas contradições de viver o presente, repetindo as falas ensaiadas, sossegado nos costumes, quieto, ajustado. Por ora, Pedro ia com a noite como o dia.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Contra-retrato

Estou me negando tanto ultimamente. Nego o sol pela manhã e a chuva surpresa na calçada. Rejeito uma roupa diferente, um corte de cabelo e uma sandália da moda. Me nego a mim mesma. Fujo todo dia da rotina e caio num dia rotineiro de fuga. É o que vejo por ai. As pessoas fugindo e se negando, o que me faz normal e inserida nessa mesma realidade de mutações inertes. Algumas vezes me atrevo a questionar o outro e um espelho reflete em mim uma imagem distorcida e abafada. Vejo-o negar todo dia as mudanças forçando algo novo, mergulhar no mar de quimeras e nem sequer afundar, boiar num conformismo atormentado, desesperado buscando movimentos inéditos, porque o que é inédito é sempre melhor, o novo atrai bons fluidos, extrai o mofo dos móveis velhos, é ar puro, límpido, o novo é sensação de liberdade. O novo é só algo a mais desconhecido sem definição e por convenção bom, depois por dedução ruim e descartado. Nego-me a ver e sentir o mundo tal qual se apresenta. É um mundo negado, renegado, uma esfera contorcida. Um lugar onde todos negam a si mesmos e são ninguém afirmando a cada mudança-ilusão um novo eu, onde cada um tem medo de ser simplesmente o que é e vai vivendo recusando o que naturalmente muda, onde nego e assumo o que não sou e vou sendo esse ninguém de todo dia.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Seu Figura

Impressionante como hoje em dia as metáforas podem justificar tudo.
Falou merda: põe a desculpa na metáfora.
Fez merda: metáfora.


Bem... não foi exatamente isso que eu quis dizer...

domingo, 6 de dezembro de 2009

.

Não consigo
mais
escrever.

A gota d'água samba na ponta da torneira,
mas não cai.
As inquietaçãos transbordam e as palavras continuam imersas entre os receios.

Não quero errar.
Não vou acertar.