Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Não reciclável

Escrevo pra reciclar o lixo que polui minha mente, repleta de memórias descartáveis e bastante prejudiciais ao meio. Escrevo por acreditar no alívio que as palavras prometem, na renovação instantânea que cada letra mal escrita faz parecer real. Escrevo porque ainda sou iludida. Escrevo. Ainda.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

A Raça dos Desassossegados

À raça dos desassossegados pertencemos todos, negros e brancos, ricos e pobres, jovens e velhos, desde que tenhamos como característica desta raça comum, a inquietação que nos torna insuportavelmente exigentes com a gente mesmo e a ambição de vencer não os jogos, mas o tempo, este adversário implacável!

Desassossegados do mundo correm atrás da felicidade possível, e uma vez alcançado seu quinhão, não sossegam: saem atrás da felicidade improvável, aquela que se promete constante, aquela que ninguém nunca viu, e por isso sua raridade.

Desassossegados amam com atropelo, cultivam fantasias irreais de amores sublimes, fartos e eternos, são sabidamente apressados, cheio de ânsias e desejos, amam muito mais do necessitam e recebem menos amor do que planejavam.

Desassossegados pensam acordados e dormindo, pensam falando e escutando, pensam ao concordar e, quando discordam, pensam que pensam melhor, e pensam com clareza uns dias e com a mente turva em outros, e pensam tanto que pensam que descansam.

Desassossegados não podem mais ver o telejornal que choram, não podem sair mais às ruas que temem, não podem aceitar tanta gente crua habitando os topos das pirâmides e tanta gente cozida em filas, em madrugadas e no silêncio dos bueiros.

Desassossegados vestem-se de qualquer jeito, arrancam a pele dos dedos com os dentes, homens e mulheres soterrados, cavando uma abertura, tentando abrir uma janela emperrada, inventando uns desafios diferentes para sentir sua vida empurrada, desassossegados voltados pra frente.

Desassossegados desconfiam de si mesmos, se acusam e se defendem, contradizem-se, são fáceis e difíceis, acatam e desrespeitam as leis e seus próprios conceitos, tumultuados e irresistíveis seres que rastejam.

Desassossegados têm insônia e são gentis, lhes incomodam as verdades imutáveis, riem quando bebem, não enjoam, mas ficam tontos com tanta idéia solta, com tamanha esquizofrenia, não se acomodam em rede, leito, lamentam a paz que falta uma paz inconsciente.

Desta raça somos todos, eu sou, só sossego quando me aceito.

Texto de Martha Medeiros

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Dezessete e Trinta

A nostalgia dos sonos no fim da tarde revela toda a sensação sufocante que se esconde em mim. Os sonhos confundem-se com o pôr do sol e a minha mente adormece incerta. Tudo vai escurecendo paulatinamente, apago por algum tempo que não dura o suficiente pra me manter estável. Tempo instável. Ao acordar, me encontro rodeada por ausência e sinto falta de qualquer coisa que me prove que o pulsar do meu corpo é real e relativamente presente em qualquer outro pensamento. Algumas lágrimas escorrem em meu rosto, quase imperceptíveis à insensibilidade da minha pele. Estou sozinha e sem luz. Com os passos ainda sem rumo, cambaleando, procuro algo que alimente, que sustente. Meu espírito permanece intacto. Sobrevivo cicatrizada e mesmo não tendo nenhuma proteção contra ti permaneço sem nenhum corte profundo. Nada perfura minha solidão. Estática. A essência concisa de toda essa tristeza é repleta de desapontamento, sou contraste. E quando falo em 'antissocial', não deixo claro em minhas expressões a desilusão dessa vida. Ninguém entende o estilo das minhas palavras. Estilo fragmentado, palavras infinitas em si.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Sensação de ressaca...

Acordou com mais uma ressaca. Ontem havia sido um dia cheio, o copo esteve sempre cheio, e o corpo... Repleto das mesmas contradições. Afinal, por que o amor retoma qualquer assunto rotineiro?

Foi em casa buscar o resto das coisas que deixara no armário. Alguns perfumes, algumas moedas. Ele não estava. E quer saber? Bem melhor. Ou bem pior. Talvez quisesse olhar bem nos olhos e dizer o motivo por estar indo embora assim tão repentinamente. Não teria tido tudo o que um filho quer? Por que sair de casa queimando em pressa? Porque estava ardendo por dentro. Entrou no carro e colocou o cd confuso, assim ele dizia. — Músicas mais confusas, sem começo nem fim, nem letra nem nada. Só barulho, filho! Ria da opinião, era a idade, nem tão velho, nem tão novo, mas de outro tempo. De um tempo onde tudo era diferente, era normal. Hoje em dia tantas anomalias. — Já tá na idade de arranjar uma namorada, menino.

Passou na casa do Felipe e pegou os anestésicos. Eram ótimos pra ressaca. Na praia, já bambo, passos inebriantes seguindo o ritmo de suas músicas, mergulhou no mar. Sua mente enrolava nas algas e se afogava nas mentiras que contava a si mesmo. Salgado, deitou-se na areia da praia. Achava desconfortável aquele grude que ficava: areia e água salgada, brisa, vento sem direção. Mas deitou-se e mirou o sol. Queimava. Por alguns instantes saiu de si, apenas um zumbido o guiava pelo pensamento que tentava resgatar a todo custo, tentava permanecer sóbrio. Todos os dias tentava. Mas aquele sentimento o sufocava e o obrigava a fugir. A adormecer. Desgastado, perdeu mais uma vez o por-do-sol.

Naquele apartamento de um só quarto, aluguel barato, poucos móveis, se sentia como um estranho. Paredes desconhecidas, cama pequena, água na geladeira. O sacrifício da negação, da renúncia. Passaria a qualquer momento aquele amor que consumia a sua sobriedade. Esperaria ali, entranhado em segredo.

Amor. Um dia engana qualquer filósofo e o desaba numa loucura óbvia. Céticos aplaudem as desilusões. Cínicos fingem. Alguns questionam, outros condenam. O para sempre acaba, o efêmero não era verdadeiro, o obcecado passou dos limites, o desligado é insensível, o traidor não ama, a poligamia é absurdo, a monogamia é dependência, o romântico não tem amor próprio, o amor é impossível, é maior, é sublime. Esse amor, que o homem reverencia, não se sente capaz, não quer assumir a si mesmo, sente receio de ser arrogante, e acaba sufocando o seu instinto com tanto moralismo, é repressão, implosão, morte lenta da essência.

— Pai, eu amo você. Mas não... Por favor, olha pra mim. Eu amo... Só ouve. Ouve. Louco? Loucura? Não! Não. Não... Não entende. Eu preciso... Eu não sei. Anormal?! Não é só admiração. É amor! Sim, é amor. Por que não existe? Convenção? Invenção? Deus não tem nada a ver com isso, pai. Procriação? Pai... eu não queria... ir embora...

Sabia que seria pior se assumisse e se consumiu. Dia após dia ia sumindo. Conseguiu um empréstimo e mudou de cidade. Cidade grande, movimentada, apressada, desligada, cheia de festas, cheia de noites. Numa dessas festas, percebeu uns olhos insistentes procurando pelos seus, quase extintos. Pouca conversa, muitas doses de delírio e uma noite-extase. Os corpos consumidos e sedentos, a renovação imediata do outro dia, a queda em outro abismo, a efemeridade da sensação humana e o gosto pela razão questionadora. Tudo insistia numa resposta obrigatória, numa determinação. A dor de cabeça incomodava a sua contradição. É? Pode ser? O que é? Amor?

— Não, eu não te amo. Acho que ninguém ama. Amor é isso? Então não é amor. Pode ser tudo, menos amor. Sim, só sei o que não é amor, e amor não é nada.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Tardes.

Em dias tão quentes e em noites tão frias
Era como se o quente do asfalto congelasse os meus pés
E queimasse a minha alma, despertasse alguma motivação
Na coordenação sustentável da vida...


Anelo ver passarem-se os dias de maneira fortuita
Recebendo como presente o dia preenchido pela tua ausência,
E a noite repleta de ti, representada pela tua saudade...


Tua presença me faz ficar mais rutilante de vida
Que chego a ficar sem palavras diante de ti;

Porém, mesmo sem sucesso, enfrento o fracasso com palavras erguidas
E expressões rígidas de quem tem controle sobre si,
Mantendo-me na fronteira da loucura...

 
(Poema dadaísta de bar; autores: Ed, Fer, Su, Che)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

silêncio-inspiração

Minha mãe quer que eu tenha um jardim maior e melhor do que o dela. Mas o que ela não entende é que as flores do meu jardim não querem ficar num cantinho do quintal, elas querem se espalhar por ali, por todo canto. Violetas, girassóis, margaridas, tulipas, papoulas, lírios...

Um mundo no jardim.

Hoje, meditei. Meu Deus foi o sol, Maria foi a lua, minha energia veio da tempestade da areia da praia e o mar foi meu guia. Quando pus a mão no coração pra desejar o bem a todos que me rodeiam, joguei todos num círculo que se formou na praia do meu ser, era paz lá em cima e apenas os observei lá debaixo.

Um tornado em mim e à parte de mim.

domingo, 4 de outubro de 2009

Curvas tingidas de cinza

Corpos que suam
nus
Corpos que chocam
crus
Corpos efervescentes
queimam

Corpos que harmonizam a noite com ruídos de ondas de calor. A cama, o quarto, as portas fechadas com brechas de convite e nenhuma preocupação. Corpos que pedem plateia. O palco e o público, ele, ela, eles. A cena interpretada, improvisada, detalhadamente preenchida por pingos de exaustão. Respirações ofegantes de um ritmo desritmado, êxtase. Corpos que dançam um tango brasileiro, corpos que sambam na corda bamba, equilibram-se entres as curvas do picadeiro. O palhaço e o mágico, o domador de leões e a bailarina, o atirador de facas e o malabarista. Corpos que desenham e inventam, transcendem em si, revelam-se. Riscam o tempo com cores mistas, quentes, reluzentes.

Diego foi o primeiro a acordar naquela manhã. Fixou ternamente os olhos de Carmen, as formas de seu corpo, as ondas de seus cabelos. Ela ainda dormia, ele tinha o sono leve. Só após alguns minutos Carmen sentiu o olhar de Diego fitá-la e despertou.

— Precisamos conversar, Diego.

Esquivou-se do olhar dela como se soubesse a intenção daquela conversa. Há alguns dias havia visto Carmen e Rodrigo conversando no corredor da faculdade; ao aproximar-se dos dois sentiu um ar de precaução entre as palavras, mas disfarçou bem o brilho nos olhos que anunciavam uma lágrima, conseguira o estágio no museu de artes que tanto queria e fora ao seu encontro pra dar a notícia. Da surpresa que planejou, foi surpreendido. Aqueles olhares eram indiscretos demais e ele, perceptivo.

— Nossas noites têm sido maravilhosas. Tão mágicas e repletas de paixão, que chego a me assustar! Tenho medo do que possa se tornar tanto sentimento. Nossas conversas, compreensivas, apesar de curtas, me fazem tão bem que já não me preocupo tanto com os foras que levo da vida. Ter você a meu lado é como ter tudo o que qualquer garota gostaria de ter. Mas...

Os olhos de Carmen eram indiscretos. E a voz, maliciosa. Os quadros que Diego pintara desde que a conheceu refletiam cada gesto dela, agora eram vívidos e misteriosos. De cor em cor, traço em traço, apaixonou-se, mesmo sabendo desde o começo onde se metera. Como artista, arriscou-se.

— Você não precisa dizer muita coisa. Nunca precisou. Carmen, sei exatamente o que vem depois dos seus "mas"; sempre imprecisos e gaguejantes. A porta sempre esteve aberta para você ir e vir.

Vestiu-se. Precisava pintar as paredes do quarto, há tempos adiara e agora estavam assim sem cor e manchadas pelo tempo abafado. A cama, ainda desarrumada, suportava o peso das palavras de Carmen. Sempre evitou despedidas e desfechos, só não os que eram encenados por ele.

— Diego... Não precisa ficar tão chateado. Na verdade não sei o que exatamente quero dizer. Depois de ontem, sinto tudo embaralhado em meu coração. A única certeza que tenho é de que quero estar com você. Mas não quero.

— Entendo.

E saiu pela porta entreaberta rumo à aula de literatura portuguesa. A lágrima que desceu em seu rosto secou antes mesmo que dobrasse o corredor. Mesmo assim, não se esforçou para sorrir. Em seus pensamentos se passaram raros assuntos extracurriculares: as paredes precisam ser pintadas, cores neutras; tomara que o quarto esteja arrumado, como deixei ontem. Após a aula foi dar uma volta pela cidade antes de ir ao estágio. Ao longe, num banco meio escondido entre árvores secas de outono, avistou um casal: o quadro daquela noite encheria o quarto de sensações e as paredes não precisariam mais ser pintadas. Sem refletir sobre qualquer coisa nem mais nada, continuou a caminhada. O museu logo estaria cheio.

Corpos que sugam, reinventam e mentem.