Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quinta-feira, 31 de março de 2011

Intercalados

para mayara moreira.

Tudo o que traçava aquela menina tinha um ar de cansaço, uma fadiga que cobria todas as bordas do mundo ao mesmo tempo em que todas as chagas desse mundo a cobriam por inteiro. O que mais me chamava atenção eram os olhos, sempre os olhos, o olhar, mas aqueles nem eram de ressaca nem de fumaça, pois fugiam a qualquer definição de bela moça dos encantos extravasados, ela tinha em si, e somente para si, seus encantos, e estava mais pra moça encantada dos contos de fada, mas num transe que talvez nunca despertasse com o beijo do príncipe.

Aos poucos, fui me aproximando, feito gato faceiro, feito amor manso, inventando qualquer conversa sem graça (ô desgraça!), contornando aqueles traços com outras cores, provocando coincidências, ou simplesmente as trazendo à tona. Numa noite dessas, pude contê-la por mais de um sorriso numa brincadeira, passamos algum tempo juntos, pude tê-la por perto pelo espaço de dois segundos. Ela sorria tímida, compartilhamos alguns dons falhos, desenhos borrados, flores inventadas, surpreendeu-se com alguns segredos que eu contava, furados, e eu senti ali como se estivesse vivendo pela primeira vez um sentimento ingênuo de quem se encontra no ápice de um desabrochar para a vida, num amanhecer ou num entardecer, onde tudo é começo encantado, pois tudo nela me levava a isso, à inocência, ou ao cinismo. Ela era segredo, um segredo sem malícia ou talvez sonso, não importava, eu gostava daquilo.

Os dias passavam e nós pelos corredores, em alguns poucos encontros ou esbarrões. Ela, secreta, e eu um baú aberto, pronto para desvendar qualquer atração, queria mantê-la em mim. Algumas vezes me fazia palhaço, mágico, malabarista, outras vezes apenas um bêbado a chamar atenção, equilibrista. Queria estar rodeado por ela, por todo aquele cansaço, por todos aqueles segredos, imaginando o dia em que aos poucos eles transbordariam nossas noites através de uma fala tão mansa que me adormeceria também.

terça-feira, 29 de março de 2011

Canta, agricultor!

Ontem no ônibus
um agricultor vindo do sertão
com seu triângulo nas mãos
cantarolava as secas, as chuvas,
os sapos e percevejos, a agricultura,
a vida urbana
e o povo sertanejo...
Umas pessoas tiraram os fones do ouvido,
outras colocaram,
enquanto ainda ecoavam suas palavras:
- Papai, venha me buscar de volta pro sertão,
porque aqui na cidade o povo não se importa não.
Depois ele pediu alguns centavos,
sentou-se, abriu a janela e lavou as mãos,
aproveitando a pouca água que caia
em pleno meio-dia de uma segunda-feira
na cidade de Fortaleza.

Ruídos

 J.

E de tanto olhar ela se foi, porque de tanto só olhar contive minhas mãos, não soube agarrá-la de uma só vez, prendê-la entre meus dedos e dizer "nunca vá embora!", e ela se foi. Tive o gosto em minha boca, até em meu corpo, mas em minhas mãos não a tive, nunca, por pura covardia, minha ou dela, vai saber, ou traduzir. Se foi sem ao menos sentir o gostinho gostoso e egoísta de dizê-la minha, anda por ai noutras mãos e braços, sendo doutros, outra, estando noutra, ainda que por mim inteira, toda, pois sei que ainda a tenho, apesar de não ser nenhum pouco minha, nem sido um dia, apenas naquele dia, se foi. Vejo por ai passando, intocável, e por mágoa ou raiva privo meus toques e olhares. Vejo por aqui o que poderia ter sido e não foi, nem queria, ou era tudo o que tinha e não tive cuidado, que perdi e por culpa reneguei o que sempre quis, disse não importa, nunca quis. Vejo passar, parar, voltar, ao longe, me vejo partindo sem ir, deixando sem ter, perdendo sem achar. Partido, deixado e perdido. Talvez me esqueça ao atravessar numa esquina de braços dados com outro ou durante um cinema, um filme clichê, talvez me esqueça bebendo um café ou num papo com qualquer desconhecido. Talvez, ou quem sabe, ou talvez nem nada ou tudo. Me confundo ao vê-la de canto de olho, ela é confusão, total incoerência, desconjuntada, que me desconfigura só com o andar, ou com a aliança, com o vestido, ou com o salto alto, com a majestade, ou com a imaturidade, pois é criança, mas também mulher, minha e doutro. Um dia me falou das nossas canções, dos nossos descompassos, dos poréns, e eu, que nunca soube bem o que dizer, só ouvi, morrendo de vontade de dizer que... Não havia como dizer nem como ouvir, pois era encanto o que sentia, era cama o que faltava, era cheiro impregnado que me tampava e tapava tudo o mais. Ah mulher, como me escapou, se foi assim e deu tuas mãos a outras mãos?  Te dei tão fácil, ou sequer foi um dia minha? Dei, daria, talvez nem há esse tal de "ser minha", apesar de contigo a toda hora haver o "estar minha", mas, sim, me faço agente executor deste descuido, descaso, me ponho em total primeira pessoa, te jogando pelos cantos, me pondo pelos meios e fins. Enfim, foi-se, desritmou-se qualquer canção, súbito, bem no ápice do refrão, você sabe qual.

segunda-feira, 28 de março de 2011

"Onde estão as pessoas interessantes?"

Não sei mais o que fazer das minhas noites durante a semana. Em relação aos finais de semana já desisti faz tempo: noites povoadas por pessoas com metade da minha idade e do meu bom senso. Nada contra adolescentes, muitos deles até são mais interessantes e vividos do que eu, mas to falando dos “fabricação em série”. Tô fora de dançar os hits das rádios e ter meu braço ou cabelo puxado por um garoto que fala tipo assim, gata, iradíssimo, tia. Tinha me decidido a banir a palavra “balada” da minha vida e só sair de casa para jantar, ir ao cinema ou talvez um ou outro barzinho cult desses que tem aberto aos montes em bequinhos charmosos. Mas a verdade é que por mais que eu ame minhas amigas, a boa música e um bom filme, meus hormônios começaram a sentir falta de uma boa barba pra se esfregar. Já tentei paquerar em cafés e livrarias, não deu muito certo, as pessoas olham sempre pra mim com aquela cara de “tô no meu mundo, fique no seu”. Tentei aquelas festinhas que amigos fazem e que sempre te animam a pensar “se são meus amigos, logo, devem ter amigos interessantes”. Infelizmente essas festinhas são cheias de casais e um ou outro esquisito desesperado pra achar alguém só porque os amigos estão todos acompanhados. Tô fora de gente desesperada, ainda que eu seja quase uma. Baladas playbas com garotas prontas para um casamento e rapazes que exibem a chave do Audi tô mais do que fora, baladas playbas com garotas praianas hippye-chique que falam com voz entre o fresco e o nasalado (elas misturam o desejo de serem meigas com o desejo de serem manos com o desejo de serem patos) e rapazes garoto propaganda Adidas com cabelinho playmobil também tô fora. O que sobra então? Barzinhos de MPB? Nem pensar. Até gosto da música, mas rapazes que fogem do trânsito para bares abarrotados, bebem discutindo a melhor bunda da firma e depois choram “tristeza não tem fim, felicidade sim” no ombro do amigo, têm grandes chances de ser aquele tipo que se acha super descolado só porque tirou a gravata e que fala tudo metade em inglês ao estilo “quero te levar pra casa, how does it sounds?” Foi então que descobri os muquifos eletrônicos alternativos, para dançar são uma maravilha, mas ainda que eu não seja preconceituosa com esse tipo, não estou a fim de beijar bissexuais sebosos, drogados e com brinco pelo corpo todo. Tô procurando o pai dos meus filhos, não uma transa bizarra. Minha mais recente descoberta foram as baladinhas também alternativas de rock. Gente mais velha, mais bacana, roupas bacanas, jeito de falar bacana, estilo bacana, papo bacana… gente tão bacana que se basta e não acha ninguém bacana. Na praia quem é interessante, além de se isolar, acorda cedo, aí fica aquela sensação (verdadeira) de que só os idiotas vão à praia e às baladinhas praianas. Orkut, MSN, chats… me pergunto onde foi parar a única coisa que realmente importa e é de verdade nessa vida: a tal da química. Mas então onde Meu Deus? Onde vou encontrar gente interessante? O tempo está passando, meus ex já estão quase todos casados, minhas amigas já estão quase todas pensando no nome do bebê,… e eu? Até quando vou continuar achando todo mundo idiota demais pra mim e me sentindo a mais idiota de todos? Foi então que eu descobri. Ele está exatamente no mesmo lugar que eu agora, pensando as mesmas coisas, com preguiça de ir nos mesmos lugares furados e ver gente boba, com a mesma dúvida entre arriscar mais uma vez e voltar pra casa vazio ou continuar embaixo do edredon lendo mais algumas páginas do seu mundo perfeito. A verdade é que as pessoas de verdade estão em casa. Não é triste pensar que quanto mais interessante uma pessoa é, menor a chance de você vê-la andando por aí?

Texto de Tati Bernardi

sexta-feira, 11 de março de 2011

Abismo horizontal

Você vai e me busca entre os meus lençóis antes de partir, depois volta, me revira, revista, e tão fácil me põe de lado, porque me ponho fácil pra ti. Os dias vão sem conversa, sem carinhos, sem contatos, se constroem caminhos contornados por relógios e bússolas divergentes, e eu me faço sem sentidos por ai pra não perceber essa ausência que o abismo horizontal do nosso amor refaz toda noite, e também me calo, aos berros, junto ao teu silêncio, tentando manter ainda qualquer cumplicidade. E você vai, e você volta, e a gente fica nessa náusea que é o não saber, não querer saber, não precisar saber, a ignorância, o ignorar. Mas eu quero e preciso, pois não sei. É que nessa dormência sinto meu eu se dissipando, se tornando um corpo cada vez mais corpo, uma dureza frágil que ninguém mais ousa tocar a evitar que alguém se machuque. Às vezes vejo nossas promessas vagando pelos ares, evaporando depois de cada tempestade pouca, e me pergunto o por que de tanto vir se você simplesmente não chega, porque depois de tanto eu ficar te desapresso. Não há mais o talvez, o se, o sim, o não, culpa nem desculpa, há somente o vazio do desencontro de duas vozes que calam e do encontro dos beijos antes das tuas partidas e o comodismo que é manter essa porta entreaberta.

quarta-feira, 9 de março de 2011