Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Instantes e bueiros

Havia lama pelos canteiros após uma chuva inesperada, cada pingo com pelo menos um grão de areia pintava as paredes brancas já rabiscadas, noite ou dia. O guarda-chuva não o cobria por completo, e de certo modo, além dos pés molhados, a calça já estava encharcada. Só a camiseta e os cabelos permaneciam intactos, até a mochila sofria os respingos do clima. Se aproximava de casa, não tinha pressa em seus passos, quem sabe um banho de chuva seria totalmente adequado naquele momento. Mas que momento, senão o vazio preenchido que o guiava até em casa? Não se sabe, apesar de haver um momento qualquer que fosse e precisasse de um banho de chuva, em seu incessante retorno sem prévias.
Capitu traíra ou não afinal? Não entendia essas discussões, nem queria. Queria era adentrar mais no que viria a ser escrito ou no que beirava o forno da padaria da esquina. Mas insistiam em Capitu, nas belezas de Capitu, nos olhos de ressaca de Capitu. Se Capitu estivesse na chuva, não provocaria tantos boatos essa suposta traição, os olhos traduziriam uma tempestade em alto-mar e o guarda-chuva talvez a cobrisse por inteiro. Mas havia um momento que precisava de um banho de chuva, não era Capitu. Quem sabe um momento escrito por ele mesmo. Ou nem escrito. Apenas o seu momento dissolvido em abstrações ou frustrações não registradas, ou simplesmente deteriorado em papel seda. Enfim, também havia o que precisasse ser afogado nesses canteiros e escorrido nos bueiros, esquecido.
Era inútil buscar o momento certo, mesmo caminhando alheio pelas calçadas e evitando encontros indesejados. Não queria mesmo falar sobre Capitu, talvez Hilda, mas Capitu não. Estava cansado daquele dia, daqueles momentos. Ainda bem que estava chovendo, pensava com um sorriso indiferente. Tinha vontade de largar o guarda-chuva ali mesmo e se atirar nas lamas com os pés descalços, à mercê de qualquer doença, calças dobradas até os joelhos e sem camiseta, a mochila escorrendo junto à corrente de água suja, lixo. Mas não era o momento, não era tempo de se expor por inteiro a qualquer temporal. E se aquela chuva fosse apenas uma nuvem passageira? Não arriscaria entregar-se assim, fácil, a um resfriado qualquer. E concluiu, não era o momento, definitivamente.

Talvez no portão de casa, antes de abrir, fosse o momento, ou no quintal, entre as flores cultivadas com apreensão, não sabia que eram tão delicadas. Aprendera a cuidar delas com o pouco de afeição que lhe restava, que as chuvas ainda não haviam levado. E floresciam, ali, no lugar delas. É, quem sabe entre elas houvesse um momento. Mas não, eram muito sensíveis, e ele queria escorrer rua abaixo com o mínimo de cautela. Não, entre as flores não, nem entre as ruas, ou na porta de casa. Desviou-se então para um bar qualquer.