Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

domingo, 20 de julho de 2014

Os contos que me devia

Gostava de sair, mas não nos finais de semana, que se resumiam a uma ressaca sem fim, ressaca por excesso de vida, e por isso preferia não falar com ninguém, até me conhecer. Tinha um tom contraditório que variava entre os extremos: quando não muito à toa na vida, muito compromissado; era isso o que mais me encantava e, por vezes, me fazia odiá-lo. Só não odiava tanto assim porque já o amava, e amor não tem noção. Às vezes me vinha como resposta só o desdém, talvez assim o fizesse se sentir mais meu, mas era só birra minha, pois tudo o que me contava dos domingos, ou sábados, incluía sempre um "ainda te convenço um dia a ir comigo". Já o encarava à espera, quando demorava ou hesitava um pouco, só me vinha a mesma vontade de querer encerrar ali mesmo aquele monólogo bobo de suas aventuras sem fins. Mas sem meios, continuava a ouvi-lo, tentando achar em cada frase algo que me desse um pronome possessivo e me reafirmasse: meu. E de todos. Não havia ciúmes, nem sequer possessão, me valia mais sabê-lo comigo sempre no fim da noite, do dia, mesmo que passasse por todos os outros, quaisquer, nenhum que lhe valesse o gasto da memória, ele dizia. Era meu sem ser, apenas sendo.

Numa de suas saídas, veio me bater a porta no meio da madrugada. Bêbado, talvez, pois nunca sabia exatamente o quão lúcido estava, tendo bebido ou não, ainda com os sapatos nos pés, ainda com o jeito de sempre chegar em minha casa: disfarçando qualquer noitada num banho rápido e enxaguante bucal. Aliás, sempre me parecia assim, recém saído do banho, por mais que passasse em todos os bares e festas da noite, estava sempre com tons de lucidez e perfume. Talvez por isso não me chateasse tanto quando chegava, talvez por isso logo em seguida da raiva, me viesse somente a vontade de ouvir suas histórias e esperar alguma desculpa pra me ter nelas um dia. Entrou silencioso, quase como um equilibrista, deitou-se na cama por uns instantes, a água já estava na cabeceira, dessa vez não fez cena pra tomar logo, nem o comprimido. Logo dormiria. Acho que era o único meio que tinha pra dormir: minha cama, água na cabeceira e o bendito comprimido. Pelo menos me deixava mais aliviada vê-lo ali, seguro de si e de mim, finalmente em paz, apesar de sempre deixar solto que me dava nos nervos quando chegava de madrugada, meio bêbado, meio lúcido, a ter que pensar logo em algo pra fazer as pazes quando fechasse a porta do quarto.

A história foi a seguinte: havia marcado de sair com uma amiga que não via há tempos, que acabou não aparecendo, nem lembrava o motivo. Ficou sozinho só até o terceiro copo, logo conheceu os dois rapazes sentados ao lado que discordavam da música que tocava. Tendo os três concordado em discordar, partiram dali pro primeiro lugar que tocasse o brega da noite; o que era difícil numa noite de sexta viciada em hard e house, o que tivesse movimento. Acabaram indo parar num boteco que mais parecia uma residência com cadeiras na calçada a falar da vida alheia, não fosse pelo horário, não fosse pela total ausência de vida alheia, senão a deles. Rádio FM. O dono, Seu Adelino, não hesitou em sentar-se num banquinho próximo a eles e a falar das vidas que passavam por ali e por onde ele passava. Noutro dia, aparecera uma moça, mais ou menos naquele horário, parecia esperar por alguém, sentou-se, pediu uma água. Bebeu aos poucos, e a cada gole olhava o celular, quem quer que fosse, não ligaria, mas mesmo assim esperava. Já era tarde, pediu a primeira cerveja, os primeiros goles foram lentos, até que veio a segunda, a terceira, quarta e a manhã. Ninguém ligou. Desceu a rua nem um pouco cambaleante com o que sobrara da água, dali não se sabe. Seu Adelino nunca tinha visto ninguém esperar tanto assim por ninguém, disse. - Pois eu sempre a espero, e nessa espera sempre acabo fazendo-a me esperar mais do que devia. Disse que disse a eles. Não acreditei, talvez fosse só um jeito de pedir desculpas antecipadamente. - Um dia ela vem. Sem birra nem descrença. Foi ai que decidiu dessa vez interromper tudo o que viria a fazer, pegou o primeiro táxi e veio bater a minha porta.

No outro dia, ao acordar, quase não percebeu que estava ali, olhou pra mim com dúvida e questionamento, e eu respondi com expressão nenhuma, a esperar o resto da história que me convencesse de qualquer coisa, que me lembrasse: amo mais do que odeio, amo mais do que odeio. Foi difícil quando começou a viajar, mais ainda quando perdeu completamente a lucidez e o caminho de casa. E eu ficava sem saber quando estava ali de propósito ou por acaso, a ouvir suas histórias, à espera.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Diarista

Quando quiser fazer visita
olha, avisa
tenho adiado a faxina
no quarto, na casa
e na vida.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Desregrados

Olhando a vitrine dos sapatos, pois de repente parei em frente a uma loja de sapatos e fixei na vitrine como quem gosta de sapatos, me peguei pensando na nossa discussão da noite passada, mais uma: você estava certa, afinal, quando disse que eu não poderia te amar de novo.

Eu não poderia te amar mesmo, jamais, nem pensar, quando você é dessas que se chateia por nada, ou quase nada, e sai descontando em todo mundo a raiva que nem você mesma sabe o motivo nem onde vai parar. E depois volta como quem pede desculpas sem sentir a menor culpa: sem nem usar as palavras certas, apenas segura minha mão e pergunta sobre o nosso próximo filme ou seja lá o que eu vá querer fazer. Nem poderia amar alguém que acorda de mau humor, ou quem vai dormir sempre antes mim e fica reclamando porque a luz ainda está acesa. Nem me imagino com uma pessoa que me liga no meio da noite pra dizer que me ama, embriagada, porque só assim consegue se desarmar e perceber que também pode ser amada. Também não creio que saberia lidar assim tão bem e meter o amor no meio de toda essa confusão que acontece quando eu discordo ou concordo contra as tuas vontades e crenças de achar que as pessoas ainda têm jeito ou jeito nenhum. Porque você não tem. Eu não ousaria mesmo amar só por esses 10% de sossego que você me dá ao tentar me convencer que dessa vez tudo vai ficar bem, que a calmaria vai reinar, que todo o abuso passou e que agora os remédios vão ser tomados na hora certa, porque os outros 90% vêm com você, logo em seguida, me mandando ir pro inferno, que eu decida a minha vida e vá viver longe dessa paz que você não pode me dar não por falta de vontade. Eu não poderia te amar porque você não tem o mínimo controle sobre si e sobre amor nenhum e porque eu também não tenho, posto que ninguém tem quando já ama alguém. Eu não poderia mesmo te amar porque já te amo e ninguém ama por cima, ninguém ama de novo.

Num estalo que me deu pela buzina do carro (ou foi pelo grito da criança mimada que passava?), despertei daquele transe, deixei os sapatos de lado e continuei meu caminho. O sol já ia tarde e eu precisava chegar logo em casa, era dia do turno acabar mais cedo e eu tinha te prometido aquele jantar e aquele vinho no sofá ou no chão, sem luxo nem etiqueta. 

domingo, 13 de julho de 2014

Quando flor

Foi-se o tempo das pétalas
dessa chuva que veio sem dó
agora tu murcha
alguém te quer?
Flor, se o bom tempo voltar
e alguém bem te quiser
desabrocha contra o sol
faz teu tom durar
Vai-ser rosa por si só.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Quando o amor é passado

Sai de casa pensando que ia sem rumo, mas o ponto certo era o bar mesmo, uma cerveja antes de tudo o mais porque não adianta inverter a importância das coisas, tudo começa e acaba na virada de um copo, água, café ou álcool, se cura, ou se mata, o sono, a ressaca ou o tédio. O amor virou a esquina logo na primeira curva, pensei, sem nenhuma surpresa: - ótimo, finalmente saiu. Sem mais amor de facebook. Cansei de amor certo, rima, métrica, quero amar é errado mesmo, fora da linha, amor-carne-sentido, escrever com suor ou sangue, sem mais poesia-bit de grafite, tinta azul ou preta. Papel só se for papelão na chuva à espera dela, a bater na porta sem ver a linha nem o ponto, antes ou depois, nem Caio soube. Dessa vez, toda arte vai ser consequência. A palavra vai ser dita, ou escrita, mas no corpo dela, não mais tela, não mais teclado. Vou trocar o computador pela máquina de escrever e o celular pelo telefone sem fio, porque o amor não é prático, não é só desligar, não basta dar enter. Sai pensando que não tinha rumo, voltei tendo a certeza: o caminho se faz também num passo recuado.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Terceiro brinde

Chegando em casa às sete da manhã, Marco ainda não tinha certeza se precisaria trabalhar de novo à noite. Assim eram quase sempre seus dias, ou noites: um relógio sem tempo, medido pelo toque do celular que aqui e acolá Zezé ligava e anunciava outra noitada de trabalho. Por vezes, nem voltava para casa, ia direto do balcão do bar para a casa de alguém que conhecia nas festas, a estender uma farra já desgastada. Quando sozinho em casa, mal se mantinha acordado, era cama, banho e rua. Numa noite dessas, conheceu Jéssica, que por muita insistência das amigas havia ido àquela festa. Quase nem dançou, passou a maior parte do tempo se lamentando no bar e contando os minutos para voltar para casa, onde ainda tinha uma pilha de trabalhos da faculdade para terminar, o trabalho, as contas por pagar, as contas, as contas, os juros, nunca os juramentos. Os sons, a fumaça, os bêbados, todos, tudo empurrando para fora um corpo que não estava mais ali, mas sugando a mente de quem permanecia estático, à espera de alguma coisa, da hora certa ou errada, tinha algo a esperar. Longe e perto, sendo tocada e rejeitada, se mantinha no mesmo lugar, aflita, calma, uma confusão prevendo uma contradição. Abraçava as amigas, a queixarem-se dos namorados, mas não conseguia lhe deixar tocar o rosto uma lágrima, e era a maior angústia da noite – a vontade de chorar nos ombros de quem repulsava cada vez mais. Mas era quase como se elas chorassem por ela, como se sua dor ressoasse por todo o ambiente e a livrasse daquele fardo ao mesmo tempo em que aumentasse. Era um balão cheio de tanto ar. Não fazia o menor sentido estar ali, sóbria, embora fizesse todo o sentido do mundo.

Há tempos, Marcos não conversava tanto com alguém, nem com seus amigos que vez ou outra conseguiam encontrá-lo no barzinho em suas folgas. Jéssica lhe perguntava as coisas como se realmente tivesse interesse em suas respostas, talvez tivesse, pois talvez Marco fosse a única pessoa que de fato pudesse entendê-la justamente por não ter a intenção disso. Antes de partir, porém, não pediu nenhum contato, simplesmente se foi quando Marco virou as costas para atender outro cliente. Seria difícil encontrá-la de novo, ele sabia. Seu trabalho não se limitava a nenhum lugar nem estilo de festa e também mal se preocupou em conhecer melhor a garota que serviu-se apenas de água. Costumava não ter relacionamentos, apenas casinhos pós-balada, quase nenhum em sua casa. E, por isso, não era muito de conversar sobre si nem sobre ninguém, apenas conversas fiadas o bastante para que se cumprisse o destino de duas pessoas que se conhecem numa noite que nada promete, mas tudo cumpre. Mesmo assim, todas as noites ele esperava que ela voltasse: pela manhã, ao acordar, olhava para o lado, num desejo nada compreendido, esperando que ela estivesse ali deitada, num sonho só dela; pelas ruas, esperava encontrá-la numa esquina qualquer; pela vida, esperava que, bem lá no fundo, essa espera ainda fosse real. – Bárbara? Recebi a mensagem, sim, acabei de chegar. Ainda não sei se posso ir à noite. Depois dessa virada, nem vida eu tenho pra falar ao telefone! Mas retorno mais tarde, ou apareço. Mal desligou o telefone e caiu na cama. Era Bárbara a mais próxima dele e que mais conseguia entrar em contato. Da última vez, aos prantos, Marco deixou escapar que se sentia sozinho, não por estar solteiro ou sem ninguém dividindo a casa. Sentia-se sozinho simplesmente por não conseguir como falar que assim se sentia. – A solidão é o eco de um latido bem distante. Bárbara, meio confusa, não entendeu o motivo do amigo não procurá-la com mais frequência, assim como não entendeu muito as palavras meio embaralhadas dele. O fato era que ele não costumava conversar com ninguém, mas ouvir a todos, pois achava que seus problemas nunca eram tão graves assim. Na verdade, não eram. Mas os dos outros também não. Um problema se torna de fato problema quando é ignorado, e isso Marco fazia bem. Esse relapso que teve com Bárbara foi apenas efeito do álcool e do tempo que o táxi demorou para deixá-lo em casa, tendo sido breve e facilmente esquecido. No dia seguinte, apenas a ressaca e a sensação de um nó rompido na garganta, que logo foi inundada pela água que bebia desenfreado. Ah, vodka! Ah, o esquecimento!

Seu sono não durou muito tempo, acordando na segunda vez em que o telefone tocou. – Marco? – perguntou uma voz meio tímida. – Peguei seu número com o promoter daquela festa em que nos conhecemos, amiga de uma amiga conhecia, não tinha certeza se ligava ou não, pois talvez nem se lembre de mim. – Jéssica! Sim, lembrei-me bem no momento em que atendi, já que fui bastante questionado naquela noite. Respondeu, tentando conter a dose de euforia com desfalecimento. – Não sabia bem o que conversar com um bartender, normalmente conheço pessoas num lugar mais quieto, acho que só fiz perguntas, não é? Nunca tinha conhecido alguém como você. Também não me sentia muito à vontade naquela noite. Um certo silêncio veio após essa afirmação, ambos não sabiam o que falar. Ele por nunca falar muito, evitando aproximações, pois, ultimamente, tudo acabava ao amanhecer e reencontros não eram bem prováveis. Ela por não saber lidar muito bem com reações silenciosas, tomada sempre pela insegurança que a vida lhe deu com o tempo. – Acho que não liguei numa boa hora. – Mas fui eu que liguei, Marco. – Bem... preciso ir. – Preciso desligar. Disseram quase ao mesmo tempo. Ela, achando que bem o conhecia, o rapaz detrás do balcão que preparava drinques e lidava com meio mundo de mulheres mais interessantes e bonitas, não recordou das últimas palavras dele naquela festa, antes de ir embora sem se despedir de uma conversa onde só ela parecia mostrar interesse; sua única pergunta a qual pairou pelo ar e logo se dissolveu entre a fumaça da boate: – Seu número?

Ao desligar o telefone, não conseguindo voltar a dormir, Marco mirou o espelho por um tempo como quem procura o outro lado do reflexo, e relembrou-se do fardo e das certezas que agora carregava: autossabotagem foi tudo o que lhe sobrou. Dormia o dia inteiro, mas mesmo assim continuava na cama, insone, rejeitando convites, desligando telefonemas e apagando as luzes, esperando pela próxima festa. Um dia, quando quis o que não era a solidão, descobriu o superficial, deram-lhe a felicidade e o amor de bandeja, e isso fazia dele o que não era ele. Sua sorte era o seu maior azar. Rejeitava, então, essa sorte, rejeitando a ele mesmo, e toda felicidade que lhe vinha parecia artificial. Para ele, somente a tristeza era um sentimento puro. A tristeza e o amor rejeitado. O que vem depois disso são fugas de quem acredita no sentido das coisas. Somente o não sentir é que era real, cheio de tudo. Falava sobre isso, fazia aquilo, o tempo todo lhe apontavam contradições como se descobrissem algo de extraordinário, mas assumia a si mesmo como ordinário, assumia até o que não era para poupar aproximações. Assumia canalhices, provocava marcas de batom, negava o que fosse decente. Não queria sutilezas. Mas ainda esperava que o telefone tocasse de novo, ainda naquela noite, e revelasse tudo aquilo que era mentira por medo de ser verdade. Ainda, no fundo, tinha esperança de que aquela desconhecida aparecesse e o reconhecesse, descobrindo o que tanto escondia do mundo: a loucura de ser sensível.

sábado, 5 de julho de 2014

Dieta

O telefone chegou a tocar mais de três vezes e ela nem sequer deu importância, celular desligado, caixa postal desativada já fazia algum tempo. Na cozinha, começava a preparar o jantar, sem visita certa, mas talvez alguém da família chegasse de surpresa, daquela vez teria um prato apresentável pra disfarçar a bagunça na casa e no cabelo. Especialidade: saladas e molhos, tudo muito sutil e leve, agora sem pimenta nem muito sal, tudo muito contrastante a todo o resto. Sem mais alta pressão. Norah tocava tímida, num ruído quase imperceptível, "... how does it feel?". Colheu algumas coisas, hortelã, gengibre, abacaxi, gelo, água. Sem açúcar. Não ouviu quando o telefone chamou pela segunda e última vez.

Do outro lado da cidade, a fixar o orelhão, sentou-se na calçada. Talvez ligasse de novo daqui a alguns instantes, talvez voltasse pra casa, talvez voltasse à praia, talvez voltasse, talvez de novo. Pensou um pouco antes de ir embora, mas pensou ralo e simplesmente saiu caminhando pelas ruas, deixando os ônibus passarem, quem sabe o próximo, enquanto isso, andava. O bar que dobrava logo aquela esquina convidava só pra uma cerveja, e ali também tinha um orelhão, ligou prum amigo de copo, - Desabemos essa noite, ela não me atendeu pela primeira vez, acredita? - Só fazia um ano, não entendia como dessa vez aconteceu. Mas dessa vez, como em todas as outras, precisava vê-la: só pra ter certeza de que não precisava. Dentre hiatos bem maiores, sempre atendia, ou retornava logo em seguida. Olhava o celular, nada, nenhuma chamada. - Batata frita, bolinha e espetinho. E traz a saideira, dessa vez é a última.

Adicionou algumas ervas pra substituir o sal, a fruta já bem amadurecida adoçou o jantar daquela noite como nunca antes, mesa pra um, nunca pensou que conseguiria morar tão bem sozinha outra vez.