Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

sábado, 5 de julho de 2014

Dieta

O telefone chegou a tocar mais de três vezes e ela nem sequer deu importância, celular desligado, caixa postal desativada já fazia algum tempo. Na cozinha, começava a preparar o jantar, sem visita certa, mas talvez alguém da família chegasse de surpresa, daquela vez teria um prato apresentável pra disfarçar a bagunça na casa e no cabelo. Especialidade: saladas e molhos, tudo muito sutil e leve, agora sem pimenta nem muito sal, tudo muito contrastante a todo o resto. Sem mais alta pressão. Norah tocava tímida, num ruído quase imperceptível, "... how does it feel?". Colheu algumas coisas, hortelã, gengibre, abacaxi, gelo, água. Sem açúcar. Não ouviu quando o telefone chamou pela segunda e última vez.

Do outro lado da cidade, a fixar o orelhão, sentou-se na calçada. Talvez ligasse de novo daqui a alguns instantes, talvez voltasse pra casa, talvez voltasse à praia, talvez voltasse, talvez de novo. Pensou um pouco antes de ir embora, mas pensou ralo e simplesmente saiu caminhando pelas ruas, deixando os ônibus passarem, quem sabe o próximo, enquanto isso, andava. O bar que dobrava logo aquela esquina convidava só pra uma cerveja, e ali também tinha um orelhão, ligou prum amigo de copo, - Desabemos essa noite, ela não me atendeu pela primeira vez, acredita? - Só fazia um ano, não entendia como dessa vez aconteceu. Mas dessa vez, como em todas as outras, precisava vê-la: só pra ter certeza de que não precisava. Dentre hiatos bem maiores, sempre atendia, ou retornava logo em seguida. Olhava o celular, nada, nenhuma chamada. - Batata frita, bolinha e espetinho. E traz a saideira, dessa vez é a última.

Adicionou algumas ervas pra substituir o sal, a fruta já bem amadurecida adoçou o jantar daquela noite como nunca antes, mesa pra um, nunca pensou que conseguiria morar tão bem sozinha outra vez.

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