Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

domingo, 26 de outubro de 2014

Paixonite crônica

 L. P.

Primeiro você tirou o chapéu, desprendeu-se, os cabelos esvoaçaram quando o ventilador te achou e eu me apaixonei pela primeira vez. Depois tirou os brincos pesados, deu de ombros e tirou os sapatos, sentou-se na cama e eu me apaixonei pela segunda vez. Então você foi ao banheiro e removeu toda a maquiagem, voltou para o quarto, trouxe-me água, ofereceu-se para me preparar um jantar e eu me apaixonei pela terceira vez. Enquanto tudo fervia, você veio e me abraçou sem pedir licença, reservou um livro, leu “Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende?”, parou abruptamente, disse que continuaria na manhã seguinte e eu me apaixonei pela quarta vez. Tirou a blusa e já não estava de sutiã, quinta vez. Pela sexta vez me apaixonei quando simplesmente me pegou pela cintura e me beijou, novamente sem pedir licença alguma. Sem ar, tive a impressão de me apaixonar pela sétima vez. Completamente nus, à meia luz, vi seu rosto límpido e um sorriso que dizia “fica, pois te sinto se apaixonando pela oitava vez”. Ao sentir o cheiro estranho que vinha da cozinha, hesitei e me diverti ao mesmo tempo, nona vez. E foi quando você disse “deixa tudo pra lá” que eu me apaixonei pela décima vez e nos queimamos sob o frio que fazia naquela noite abaixo de zero.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Bem-te-quis


eu, que só quebrava galhos, fui, enfim, encontrar repouso sob o bater das tuas asas de retalhos.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Da guerra

Amada,

esta carta pretende ser breve.

A primeira carta. Comecei a escrevê-la no instante exato em que senti teu cheiro. Meia-noite, com segundos vacilantes entre uma quarta e quinta-feira de céu nublado. Fiquei tentando buscar na memória que cheiro era esse, se do cabelo, da pele, do suor. E nada. Nada. Foi quando me dei conta que era teu cheiro e só. Cheiro a sós. Essa coisa toda de corpo n’alma, que talvez viesse de dentro de mim, impregnado desde o primeiro encontro (ou seria o mais recente?), fixo como as memórias do nosso último desencontro.

Quando estamos em pauta, não dá pra pensar num passado nu de arrependimentos. E eu estou vestida como quem vai pra guerra, armada até os dentes contra um futuro que possa reincidir minhas falhas. Aliás, não somente eu, sinto que você também se camufla de todas as formas, mais duramente, contra passado, presente e futuro. Uma vez me disseram que isso nunca daria certo, pois de certo você transparece mais indiferença do que amor. Só que não entenderam que nesse espelho o reflexo chega a ser dispensável, que quem te vê sou eu e nos bastamos da alma pra dentro. Duas almas em mosaico, remontadas de estilhaços de ferro, soldadas.

Minha querida, não entendo mais o sentido dos sentidos. Peço que volte logo.

Sinto saudade do tempo em que somente o cheiro era concreto.

Z.