Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A menina e O palhaço

Ela sorri, está no circo. O palhaço faz piruetas no picadeiro e ela sorri. Ela gosta dos malabaristas, da bailarina, do mágico, do contorcionista, das cores, das luzes e da plateia. Mas o palhaço... Ele a faz sorrir. Quando ela olha para a plateia, sente orgulho de si mesma, vê um espelho. Todos sorrindo, exceto o bebê que prefere descansar o choro no colo da mãe.

Brigou com os pais, terminou o namoro, desistiu da faculdade, do curso de línguas, do curso de música, do curso... não quer fazer cenas, quer encenar. E lá estava ela na plateia, assistindo ao sorriso do palhaço e sorrindo. Todos estavam sorrindo.

Perdeu o emprego, assinou o divórcio, perdeu a guarda dos filhos, o cachorro fugiu, a hipoteca venceu, cortaram a água, o telefone e a luz. Pintou o rosto. E lá estava ele no picadeiro assistindo ao sorriso dela e sorrindo.

O pneu do carro furou, foi traído, traiu, quebrou o braço, ficou grávida por acidente, discutiu com a mãe, demitiu o funcionário, foi expulso da escola, escondeu o doce, bateu no filho, bateu o carro, perdeu a aposta, o pai morreu, o computador quebrou, a loja faliu, o dinheiro acabou, a comida venceu, ficou doente. E lá estavam eles no circo sorrindo.

Ela sorri.
O palhaço sorri.
A plateia sorri.
E todos choram.
O circo está armado.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Linha delicada, traço desbotado

Esperava toda manhã a moça sair do quartinho para a ceia matinal. Ela usava sempre um vestidinho de cores claras e uma sandália suave que mal apegavam-se aos seus pés. Eu ficava no corredor com um livro na mão; não lia não. Os cabelos eram leves, quase não suportavam a brisa dos meus suspiros. Sua pele, pura seda. Os seus passos marcavam sensibilidade naquele chão acinzentado. Suas mãos refletiam pureza ao fechar a porta. Todos os dias a esperava passar pelo corredor e era o suficiente. O por-do-sol, que tanto me encantara, agora passava despercebido. Se ela me notava, não sei, pois decerto eu era discreto como a flor que aprecia desde o voo da borboleta até o pouso breve em suas pétalas fragéis.

Ela passava, eu fingia que lia e em toda manhã acontecíamos.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O boné amarelo

Tirou o boné e olhou as nuvens que cobriam o sol naquele instante. Pode sentir o vento penetrar nos cabelos e acariciá-los num gesto de ternura matinal. Pedro olhou para o chão e viu o calor que lhe invadia os calçados, mesmo assim caminhou devagar; queria perceber os detalhes do caminho que percorria todos os dias até à escola. Nunca reparava. Mas hoje... Hoje ele queria ver cada pedacinho de terra que seus sapatos gastos pisavam toda manhã. ― Amarelo! Do jeito que você gosta, filho. Agora o pai vai viajar, mas volta logo. Loguinho! Dentro de um mês tô de volta e ai a gente vai praquela praia que você quer tanto ir com o Luquinhas. Cuida bem da mãe, viu? ― saiu pela porta deixando-a entreaberta e sumiu pela estrada. E ele adorou aquele boné. Amarelo! Era realmente a cor preferida. E seu pai sabia disto. Mas já haviam se passado dois meses além do prazo dado e nenhuma notícia de Seu Elias. Pedro não queria pensar no que podia ter acontecido. Algum contratempo talvez?! Talvez. Não queria pensar.

Parou diante de um cacto seco que invadia parte da ruazinha de terra, havia uma flor. Mirou aquela flor e reparou no quanto era bonita, pensou em arrancá-la e tirá-la daquele vazio cacto que a sustentava. Pois a flor era bonita, o cacto, deserto. No entanto, Pedro percebeu que faziam parte um do outro; o deserto era belo por causa daquela flor e ela precisava manter em sua vã beleza um vazio que a equilibrasse. Pedro olhou mais uma vez a flor, o cacto e continuou a caminhar sozinho.

O tempo parecia correr por entre os grãos de areia que batiam em sua face. O sol, agora iluminando com temor, talvez por não querer perder o seu lugar na aurora e no crepúsculo, queimava o rosto moreno de Pedro e esquentava o caminho que parecia sem fim. Sem medo, pois Pedro era menino de coragem, como o pai sempre dizia, olhou para o sol como se o enfrentasse. Ficaram por alguns instantes encarando um ao outro. Com a visão meio embaçada, Pedro olhou para trás como se esperasse por alguém, mas viu apenas uma imensidão vertiginosa. Olhou para o boné pendurado na mochila, agora mais amarelo como se o sol refletisse nele, e o pegou. Analisou as linhas que o mantinham inteiro, algumas brancas, outras pretas. Voltou-se para o caminho de terra seca que ainda teria que percorrer até à escola, colocou o boné para se proteger e continuou, sozinho.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Conjugando o tempo

As mãos tocam o beijo e os lábios sentem os arrepios do sentimento.
A luz ainda acesa, o rádio ligado e as melodias perpassando noite adentro.
As mãos tocam o corpo e a alma sente o desejo flamejante daquele olhar.
Os lençóis misturados, os travesseiros no chão e o ritmo harmonioso da paixão.

As mãos, os beijos, os corpos, as almas, a luz, a melodia, os lençóis, os travesseiros...
O ritmo, o desejo, a noite, o sentimento.

E subitamente, tudo é lembrança escondida num cantinho esquecido da memória.

Passado. Passo.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Praticidade

Num século imediato,
não me resumo a definições,
apenas me esquematizo
e marco os pontos principais.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Os Lençóis

Parou diante da porta, respirou. Antes de tocar a campainha, hesitou olhando para os lados; tocou. Por alguns instantes vieram-lhe intenções de desistência, mas antes de qualquer movimento negativo, ela abriu a porta. Ele, com as palavras presas na saliva que lhe faltava na boca, apenas a olhou; ela, rígida e decidida em qualquer som que lhe saísse da boca a partir daquele momento, disse: - oi.

E foi olhando pra ela que ele se viu naquela situação. Nervoso, tímido, vulnerável. Lembrou-se de quando a conheceu, tão frágil - ela disse. E ele, sorrindo delicadamente, desviou o olhar procurando cores no ar constrangido pela impressão que passava a ela. Logo ela, a garota dos cabelos negros e esvoaçantes, do olhar imediato, da voz altiva; a menina que o encantou quando pela primeira vez que voltou-se para falar com ele, convidou-o para uma festa que haveria em sua casa na mesma noite. Ele lembrou-se bem daquela noite. Preparara-se por horas em seu quarto. Os amigos o chamaram "moça", ele entrou no carro e foram à festa. Durante a noite toda ele buscou o olhar dela. No outro dia, ele a convidou para um filme em sua casa, disse que ela iria gostar. Na semana seguinte, eles já tinham um compromisso firmado diante de todos. Passaram-se três anos. Sempre viajavam juntos, até mesmo quando em viagens de família. Ele entrou para a faculdade. Ela foi cursar música. Fizeram planos. O pai dela nunca aprovara aquele relacionamento, dizia que ele não tinha porte pra ela. Ela ria e ignorava - nunca deu muita importância. Ele lia livros nas noites de insônia; ela o ouvia com ternura. Gostava de sua voz. Ele nunca entendeu o que houve com ela depois daquela viagem.

Ela olhou pra ele um pouco menos intensa. - Disse pra não vir. Ele não havia esquecido dessa ordem. Nunca esquecia do que ela dizia, a achava muito sábia em suas palavras. Mas ele não entendia. O que houve? Ele não fora bom o suficiente? Ou fora demais? Lembrou-se bem daquela semana em que esteve longe dela. Ela teve que ir praquela maldita cidade onde o céu já não tinha mais nenhuma graça, onde eles não tinham nenhuma graça. Disse que precisava ir, sua música precisava ir mais longe, e foi. Voltou desolada. Aqueles olhos imediatos tornaram-se serenos, mergulhados no silêncio da melancolia. Sua voz, ríspida. Voltou-se para ele com desdém, revirou-se, acabou. Foi para casa, não atendeu suas chamadas, trocou de número, desviou caminhos, nunca estava quando ele ia ao seu encontro. Não está - dizia seu pai com autoridade. E ele parou. Tinha esperança de que quando desistisse, ela viria atrás. Mas ela não foi.

Passou mais um ano. E ele nunca entendeu o que houve. Ela nunca o explicou. E naquela manhã ele acordou decidido a saber, a entender, a libertar-se. Impulsivamente, como nunca fora, pegou as chaves do carro que comprara para levá-la às aulas de violão e foi até lá. Não teve pressa de chegar. O caminho nem era longo, mas demorou o mesmo instante de tempo que demorava para chegar à praia aos Domingos, ela gostava de ir à praia aos Domingos; e ele gostava de apreciá-la cantando durante o percurso. Parou o carro poucos metros da casa dela. Olhou para os pedais, para a marcha, para a direção, abriu a porta e caminhou solene até à porta.

Olhou para ela timidamente. Disfarçou seu constrangimento com um breve sorriso. Desviou o olhar e fixou na pulseira amarela que ela tinha no pulso - sem nenhuma outra cor, como ela gostava, Nada colorido demais, como ela dizia. Respirou sem pressa.

― Ainda durmo com dois lençóis.

Baixou o olhar. Não sabia mais o que dizer, como explicar o que ela não entenderia. Não sabia nem o que havia dito. Os olhos dela encheram d'água e mágoa quando o viu partindo aflito. Ele não viu, fugiu, sumiu. Ela nunca mais sentiu o sorriso delicado que a encantara desde a primeira vez.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Chamada Perdida

A noite foi passando como quem atravessa a rua
E você não ligou.
Fiz de tudo pra te esperar
Dormi sem sentir... e sonhei
No sonho era dia, e passava lentamente
Quis parar o tempo, você estava linda
Te disse tudo o que queria dizer nesta noite que você não apareceu
E você sorriu!
Abraço. E o tempo sumiu de vez
Nesta noite o dia foi maravilhoso
Quando dei por mim o sol já estava forte. E eu frágil
As horas passaram normalmente
E você não ligou.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

No tempo...

Enquanto o estranho pulsar da paixão hipnotiza
depois de conhecidos a amizade eterniza
quando já comprometidos a rotina inferniza
o amor em si morre.

Texto de Lorena Maia