Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

terça-feira, 29 de junho de 2010

Orvalho do Mediterrâneo

para Bruna Almeida.


E o perfume que exalava naquela casa
Era a porta de entrada à minha alegria...


Alecrim. A primeira palavra que me veio à mente quando a vi cruzando a esquina. Alecrim, pelos fios dourados ou pelo perfume que logo sentiria, ou pela cerveja que partilharíamos naquela tarde mesmo, pouco depois de nos esbarrarmos, desastrada como só ela. Foi quase o destino intercalando nossos presentes, que beiravam um futuro premeditado, pois alecrim eu já sabia que plantaria naquele jardim a colorir todo o resto da casa, onde adormeci na mesma noite, passada lentamente sob o seu relógio. Ela controlava o tempo como ninguém, atrasava as horas e me tecia um longo tempo ao seu lado.

Parecia mesmo alecrim, ou rosa, por vezes, girassol. Pela manhã não acordava junto ao dia, era da noite, das madrugadas, e por isso chamava atenção por onde passava, um alecrim noturno exalando um aroma único dentre sombrios bosques e jardins adormecidos. Comecei a ter insônia e dias exaustos, afinal, dormir à noite seria estupidez enquanto ela se mostrava toda a quem quisesse ver. Eu queria. Entre bebidas quentes ou geladas, entre fumaça, desvarios, eu queria vê-la, somente. Às vezes tinha o privilégio de sentir aquele cheiro em meio a tantos odores, os que dissolviam-na num clarão escuro daqueles delírios noturnos rotineiros. As horas congeladas pelas suas mãos amornadas me davam a impressão de que podia tudo, e podia. Aquecia-me a pele sua carência disfarçada pelos tons dourados dos cabelos, alecrim, e num jardim, há pouco estranho, eu me encontrava à vontade, como um nômade.

Alecrim!, o qual plantei entre arbustos, cactos e nim, em pouco tempo desabrochou, disse ela num desses encontros perdidos. Disse também que exalava um perfume singular pela casa, mal sabia que era seu próprio perfume, distraída, ou despercebida de si. Aos acasos, a via por ai, dissipando-se, mais linda a cada esbarro, florescendo junto ao alecrim de seu jardim e de sua essência. Sim, era linda, e eu não entendia pra onde ia tanta beleza aos olhos dos outros e dela mesma. Tantos toques, tantos cheiros... Passava simplesmente, noturna, imune e impregnada pelos devaneios alheios e dispensáveis.

sábado, 26 de junho de 2010

Cronômetro

Soube naquele exato momento o que deveria ter descoberto há mais tempo. Agora era tarde. Não muito tarde, mas o suficiente para não dar mais tempo de resolver o que desejara ter resolvido a tempo, era simplesmente tarde. Ali, no instante de uma parada de ônibus, poucas pessoas o acompanhavam naquelas reflexões, não havia quase ninguém, aliás, arrisco dizer que daquelas poucas, nenhuma realmente o percebia. Os carros passavam, pareciam discorrer sobre um longo romance, e ele agora sabia finalmente. Sabia sobre os fins e começos. A demora do ônibus parecia proposital, como se indicasse uma espera provocadora de um atraso, quanto mais esperava, mais dava indícios de que não queria que chegasse, ofendia o tempo e o trânsito, tinha que descobrir qualquer coisa que justificasse o próximo passo, aquele que daria para continuar a viagem. — Não podemos insistir. — Sim, podemos. Ainda dá tempo pra tudo se consertar. Diga que sim! — Não, melhor não. E se foi escorrendo pelas horas como a água escorria pelos rostos e ralos depois de um banho demorado, ia carregado daquele corpo, agora límpido, para qualquer esgoto. O tempo nunca foi muito exato para ele, às vezes adiantado, outras, atrasado. Mas ele sabia que daria tempo e que poderiam ter consertado tudo, agora sabia.

O sol estava quase se pondo e Clarinha o esperava, nem ansiosa nem apática, apenas o esperava com ar de quem não espera nada, como se não houvesse nem nunca tivesse havido o que esperar. Quando ficava em casa, sempre havia muito o que fazer, então até que ele chegasse ia vivendo suas rotinas normalmente, sem que nada a afetasse. Era uma indiferença diferente, pois dava pra sentir o grande sorriso vindo do jardim abrir o portão da frente para recebê-lo e a casa, impregnada por passados dispensáveis de recordações, se transformava num ambiente perfeito para artistas fracassados, como eles dois, que coloriam sempre alguma parede juntos como se precisassem pintar alguma ausência de suas vidas. Beijavam-se entre as cores sujas, florescentes, e os desenhos indecifráveis, lembravam duas crianças que borravam suas roupas e que logo logo levariam bronca.

Ele, na parada, pensava em tudo isso, antes e depois de pegar aquele ônibus, havia parado ali. Lembrava também de Yasmin, que há alguns anos fora embora num voo imediato, sem sequer haver tempo de se despedirem. Ela não podia tê-lo, ele não podia perdê-la, e mesmo assim partiram-se um do outro em menos de um mês. Foi inevitável, para além de suas vontades, digamos quase um típico destino cruel. Quase porque Yasmin estava voltando. Não naquele ônibus que ele esperava, mas viria depois que ele passasse. Ela estava no passado, no presente e no futuro daquela parada. Mas disso ele não fazia mais questão de saber.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O vento da madrugada

Dizem que a cidade anda cheia de carros demais, fumaça demais, poluição demais. Em certas horas, é isso que dá pra ver mesmo, por isso gosto das madrugadas e dos drogados que andam perdidos por ela, a pé. Fica assim uma ausência, sabe? Uma ausência presente de tudo o que me agrada, só o vento em redemoinhos e nada pra atingir, folhas pelo chão, alguns insetos cientes da segurança do breu dos cantos das calçadas. Seria seguro se essa cidade fosse utópica, mas talvez seja essa insegurança das horas ruins que me acolhem melhor do que o sol do meio-dia. É uma paz só. Poucos me acompanham nessas passadas da noite, sem pressa nenhuma, afinal é perigoso, apesar de tudo estar ali exposto a olho nu, sem disfarces tóxicos, por isso gosto dos drogados, eles sim sabem o que usam. É uma consciência consciente, irônica, vai entender.

Acendo meu cigarro, a latinha de cerveja na outra mão e nesta noite caminho por aqui, sem rumo, sem nada, além do peso dos dias que cravam meus pés ao chão. Andarilho, vou dando passos bambos e dando com os ombros, cumprimentando desconhecidos e aceitando o que me oferecem, também sou um estranho. Ainda não falei em lua, mas por falar nela, está com aquele sorrisão minguante, fazendo da minha trilha uma confusão de caminhos, também a aceito. Não me canso dessas madrugadas nem das longas caminhadas, me canso dos dias, dos conhecidos, da inércia, me canso dos cigarros repetidos, quero tragos diferentes, assim não me vicio, degusto. Também dizem que o mundo vai acabar logo logo. Acredito tanto que já comecei a fazer a listinha das coisas que ainda tenho que fazer antes dessa maravilha. Uma delas é comprar uma bicicleta e dar ao vento velocidade pra me atingir. Por enquanto, é o único item da lista. É difícil pensar em outras coisas quando só penso nisso durante as madrugadas e nelas é o único desejo que tenho. Poderia já ter uma bicicleta, mas durante o dia não sinto as mesmas sensações. Quando sinto, é madrugada e pego carona em garupas alheias, vou me levando por outros sentindo as sobras do vento.

Estou assim, parado, fumando, bebendo, sentindo, esperando caronas com minha lista nas mãos e eu poderia morrer agora junto ao mundo ou simplesmente me dissolver em fumaça que continuaria assim, feliz. E de qualquer forma, se não aparecer carona qualquer, vou a pé.

domingo, 13 de junho de 2010

Pelas ruas passadas

As ruas estavam meio vazias, era Domingo afinal e a cidade costumava ficar assim ausente de vidas, cheia de energias sobrevoando um céu livre de definições, mesmo nublado. Ia dividindo os passos com a própria sombra que tinha pressa, apenas pressa. Poucos carros marcavam a velocidade, isso era até bom, estar situado ali naquele vácuo ostensivo. Talvez pensasse em alguma coisa, em alguém. Ou talvez não pensasse. Mas pensava que não pensava e se sentia livre pra pensar qualquer coisa. Tinha em mente algumas vagas lembranças de um ontem irreal, tudo o que era passado não parecia de verdade para ele, eram sonhos distantes até mesmo dele. Só o agora o afetava, depois, ou antes, nada mais sentia. Achava ruim por alguns instantes, até o momento em que virassem passado. Depois, nada. E naquele instante, pensando nisso, percebeu que estava sozinho, por dentro. Até se lamentaria, mas estava sozinho. Algumas mesas desocupadas no canto da calçada deram lugar a uma solidão de Domingo, e ainda nem era noite. Olhava a rua quase sem movimento e suas mãos cansadas da semana, podia sentir uma dor física tornando reais aqueles dias de trabalho. E só. Pensava sem desesperos nos incômodos presentes, como poderia ser uma companhia agradável se não estava bem? E como ficaria bem se ninguém estava ali pra segurar aquela mão calejada? Difícil de entender. Só saem nos finais de semana com sorrisos, é um pré-requisito bastante importante, deveria saber disso ou ficar em casa. Às vezes até ficava em casa esperando por qualquer um que trouxesse algum sorriso usado, mas traziam sempre restos e durava tão pouco que mal dava pra pensar em causar boas impressões como recompensas. Então preferia sair por ai, despido de sensibilidades, sorrisos ou lágrimas, rodando pela cidade sem outros risos ou piedades. Não, não era uma boa companhia, nem poderia ser, já que dependia até mesmo de um espelho pra refletir qualquer traço bom. Sem companhia, voltava pra casa sem pressa pelas ruas mais vazias ainda das noites de Domingo. E pensava, talvez até gostasse da sua liberdade inútil.

domingo, 6 de junho de 2010

A insustentável leveza do ser

... Ele a estreitou contra si e levemente ela adormeceu em seus braços. Nos braços dele, mesmo no auge da agitação, sempre se acalmava. Ele contava a meia voz bobagens para ela, palavras tranqüilizadoras ou engraçadas que repetia num tom monótono. Quando dormiam, ela o segurava como na primeira noite: apertava-lhe firme o pulso, um dos dedos, ou o tornozelo.

Tomas dizia consigo mesmo: deitar-se com uma mulher e dormir com ela, eis duas paixões não apenas diferentes, mas quase contraditórias. O amor não se manifesta pelo desejo de fazer amor (esse desejo se aplica a uma multidão inumerável de mulheres), mas pelo desejo do sono compartilhado (esse desejo diz respeito a uma só mulher).


Trecho do livro "A insustentável leveza do ser",
 de Milan Kundera