Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Quando Deus não quis

Um dia, demorou tal dia, mas chegou tão repentino quanto um trovão após o anúncio do relâmpago: Deus não quis. E quando Deus não quis que o time ganhasse, não quis dar o carro novo, não quis baixar o preço da gasolina, não quis apagar o fogo, não quis cessar a guerra, não quis curar os doentes, não quis abençoar o filho nem perdoar o pai, tampouco quis ir à igreja, crucificaram-no em pleno Natal, e quando Deus não quis ressuscitar no terceiro dia, deram conta de si mesmos e entenderam o que era viver em paz.

sábado, 15 de novembro de 2014

domingo, 9 de novembro de 2014

O que é sem ser sentido

 Gra.

De início, eu não sabia o que falar, aí decidi escrever e ler, sem muito drama mesmo. Só que eu também não consegui. Voltei pra frente da câmera com a cara e a coragem e comecei a gaguejar algo que parecia valer dizer, mas não valia, porque não passava de barulho e barulho nem sempre quer dizer alguma coisa. Aliás, na maioria das vezes, não quer dizer nada mesmo, só barulho, como ocupar um espaço que não lhe cabe. Então voltei pra frente do papel, segurei firme o lápis e comecei a rabiscar algo que parecia valer escrever, e então valeu. Saiu algo do tipo: um dia, só por um dia, a gente vai perceber que tudo vale a pena e então vai deixar fluir como deve fluir e passar a ser o que deve ser, e fazer sentido sem precisar fazer, mais ou menos como a gente, que já se vale assim todos os dias. Mas eu não entendi nada.

domingo, 26 de outubro de 2014

Paixonite crônica

 L. P.

Primeiro você tirou o chapéu, desprendeu-se, os cabelos esvoaçaram quando o ventilador te achou e eu me apaixonei pela primeira vez. Depois tirou os brincos pesados, deu de ombros e tirou os sapatos, sentou-se na cama e eu me apaixonei pela segunda vez. Então você foi ao banheiro e removeu toda a maquiagem, voltou para o quarto, trouxe-me água, ofereceu-se para me preparar um jantar e eu me apaixonei pela terceira vez. Enquanto tudo fervia, você veio e me abraçou sem pedir licença, reservou um livro, leu “Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende?”, parou abruptamente, disse que continuaria na manhã seguinte e eu me apaixonei pela quarta vez. Tirou a blusa e já não estava de sutiã, quinta vez. Pela sexta vez me apaixonei quando simplesmente me pegou pela cintura e me beijou, novamente sem pedir licença alguma. Sem ar, tive a impressão de me apaixonar pela sétima vez. Completamente nus, à meia luz, vi seu rosto límpido e um sorriso que dizia “fica, pois te sinto se apaixonando pela oitava vez”. Ao sentir o cheiro estranho que vinha da cozinha, hesitei e me diverti ao mesmo tempo, nona vez. E foi quando você disse “deixa tudo pra lá” que eu me apaixonei pela décima vez e nos queimamos sob o frio que fazia naquela noite abaixo de zero.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Bem-te-quis


eu, que só quebrava galhos, fui, enfim, encontrar repouso sob o bater das tuas asas de retalhos.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Da guerra

Amada,

esta carta pretende ser breve.

A primeira carta. Comecei a escrevê-la no instante exato em que senti teu cheiro. Meia-noite, com segundos vacilantes entre uma quarta e quinta-feira de céu nublado. Fiquei tentando buscar na memória que cheiro era esse, se do cabelo, da pele, do suor. E nada. Nada. Foi quando me dei conta que era teu cheiro e só. Cheiro a sós. Essa coisa toda de corpo n’alma, que talvez viesse de dentro de mim, impregnado desde o primeiro encontro (ou seria o mais recente?), fixo como as memórias do nosso último desencontro.

Quando estamos em pauta, não dá pra pensar num passado nu de arrependimentos. E eu estou vestida como quem vai pra guerra, armada até os dentes contra um futuro que possa reincidir minhas falhas. Aliás, não somente eu, sinto que você também se camufla de todas as formas, mais duramente, contra passado, presente e futuro. Uma vez me disseram que isso nunca daria certo, pois de certo você transparece mais indiferença do que amor. Só que não entenderam que nesse espelho o reflexo chega a ser dispensável, que quem te vê sou eu e nos bastamos da alma pra dentro. Duas almas em mosaico, remontadas de estilhaços de ferro, soldadas.

Minha querida, não entendo mais o sentido dos sentidos. Peço que volte logo.

Sinto saudade do tempo em que somente o cheiro era concreto.

Z.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Pelo, peito, pele

é coisa de pele, sabe?
peito que arrepia
arrepio que se fia
frio entre as pernas
passos que se guiam
pelos toques
que se findam
entre os pelos
pela pele.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Fobia de amor

Uns cantam que “você não tem medo de mim, você tem medo é do amor que você guarda para mim”. Uns cantam; outros clamam e, de fato, guardam o amor pelo medo de amar. Sim, medo de amar, de andar de mãos dadas, de abraçar, de olhar no fundo dos olhos do outro ou da outra e dizer as três palavrinhas que, hoje em dia, mais e mais, estão longe de serem mágicas. Amar tem sido trágico e esse medo não é abstrato. Hoje, mais um morreu por causa do amor porque não tinha medo. Quantos mais hão de morrer e viver de medo do amor que mata?

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Sobre amanhã

Caro Cinismo,

eu queria mesmo que você tivesse me deixado quando eu pedi e quase implorei. Mas, como sempre, você conseguiu me convencer que o melhor pra gente era que ficássemos juntos até que tudo se ajeitasse. Me conta, depois disso, por quanto tempo você ainda se enganou pra me enganar também antes de, finalmente, decidir me deixar quando, finalmente, eu achei que daria certo? Tô te escrevendo pra te deixar avisado: tô com a mala pronta, amanhã embarco e nunca mais volto. Diria onde e até quando pretendo ir, mas correr o risco de ver você por perto de novo não quero não. Até porque sempre foi fácil acertar as coisas quando tudo tinha pra dar errado e conheço de cor essa sua manha de provocar casualidades e encontros. Eu sei que de um certo jeito a gente sempre acaba se acertando mesmo, só que pra mim já deu, essa vida sem planos, sem saber como vai ser não tá dando mais. Tá, no fundo, no fundo você sabe, bem que eu queria cruzar nossos caminhos de novo, cruzar, entrelaçar, nem sei, deve ser pela conveniência que você me proporciona com tantas mentiras com cara de verdade de um futuro legal pra gente. Mas, olha, mesmo assim, sabe que vez em quando eu dei pra querer ser solta? Vai que eu me acostumo e, finalmente mesmo, nos deixo ir. Então, me despeço por aqui antes que você chegue em casa e mude de ideia e me convença e me faça mudar de ideia também. De novo. O gás acabou, mandarei o dinheiro do aluguel mês que vem.

Quase sempre sua,
Esperança.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Sobre hoje

Querido Caos,

acabei de acordar e já não entendo mais nada, há pouco parecia ter uma cama aqui, mas são apenas lençóis jogados no chão e um travesseiro feito com mais lençóis. Resolvi te escrever já nesse despertar pra não esquecer o sonho. Prometi que quando sonhasse contigo, de imediato te relataria, e aqui vai: estávamos nós dois num mundo isolado onde não havia tempo certo, só o agora, tinha mais terra do que mar, mas não parecia visto de cima, podíamos também voar, e voávamos sempre, quase não me lembro de termos andado. Dava um frio na barriga toda vez que nos olhávamos e nos percebíamos suspensos no ar, era como se nos reconhecêssemos num espelho, espelho nosso. Exatamente como esse espelho que você deixou pra mim antes de ir embora que agora só serve de moldura pra um mosaico de fotografias de estranhos que ando tirando nos raros tempos livres que me obrigo a aproveitar. Você dava piruetas e cambalhotas enquanto eu checava as esquinas e quinas pra que você não se machucasse. Certo agora, você parou e desceu, reparou num muro solto no meio do nada, que insistia em ficar de pé quando todo o resto já era pedregulho. Nesse muro tinha uma janela e era oca, dava pra ver os cupins fazendo o trabalho direitinho. Depois disso ficou tudo meio embaralhado, você me perguntou se eu ainda queria trocar o trinco da porta e eu disse que trocaria a porta inteira logo, você sorriu e desatou a dar piruetas de novo até sumir entre as nuvens que já anunciavam mais chuva. Chovia sempre, mas tinha mais terra do que mar. Então eu acordei. E eu juro que tinha uma cama aqui, só que é a do outro quarto ao lado, o meu. Outra vez, dormi no teu chão. Acho que é só isso mesmo, eu e você voando, muro, janela e cupins, e chuva. Estou mandando aí uma cópia da chave, está tudo em ordem, aparece.

Quase seu,
 Equilíbrio.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Sobre ontem

Querida Rispidez,

tenho muito pra te contar sobre essa cidade, mas, calma, será aos poucos, em doses homeopáticas, como dizem por aqui. Como sou frágil, você bem sabe, adoeci logo que cheguei, passei uma semana de cama. Meu primeiro contato com alguém foi com o carinha da farmácia, inclusive, nos vemos uma vez por semana em algum lugar próximo ao pôr do sol pra tomar sorvete, mire, sorvete, deixei a cerveja de vez. De cara, ele percebeu que meu mal era a cidade e decidiu que a cada encontro iríamos a um lugar novo. Posso sair uma vez por semana. Ontem fomos a um lugar onde não vão muitos turistas, pedi a ele que não me levasse dessa vez onde tivesse muita gente que fala muito e se entende pouco. Nesta carta, só te conto de ontem, na próxima também. O que fiz nos dias anteriores pode descartar, já que não me deram motivos pra te escrever. Pois bem. Era uma praça num bairro distante, quase saindo da cidade. Tinha uma sorveteria bem na esquina. Ele ficou com açaí, eu, com limão. Acho que por isso você me veio logo ao pensamento. Então comecei a falar sobre ti pra ele. Disse que sentia saudade. Disse que você deveria ter vindo comigo, que poderia ficar bem perto, que mais perto seria melhor. Disse que deveria ter te dito isso antes de partir, mas que não tive tanta coragem como você, também disse que queria ser mais impulsiva e destemida pra dizer as coisas, como você faz. Depois disso, fiquei um tempo sem dizer nada. Quando o sorvete acabou, o dele, o meu derreteu antes, demos algumas voltas pela praça, o sol se pôs, os pássaros viraram morcegos, tivemos que voltar. Mas ainda tive como comprar numa banquinha esse porta-retrato que deve estar jogado na cama enquanto você me lê, a foto é de ontem, tiramos ao lado do escorregador porque você disse uma vez que gostava de escorregadores por causa do peso que eles simplesmente escorregam. Agora me lembrei da tua cama, sempre desarrumada. Ah, como era bom deitar numa cama sem medo de desfazê-la! Você nunca se importou com os meus pés sujos, sempre sujos. Sinto saudade dos meus pés sujos, aqui eles não me deixam ficar descalça. Acho que eles acham que quanto menor o contato for, mais rápido a gente se cura. Talvez por isso eu ainda não possa te escrever. Sorte a minha ter um amigo da farmácia que envia minhas cartas e me deixa ser levada por elas. Acho que mês que vem já posso receber visita.

Sempre sua,
Delicadeza.

domingo, 31 de agosto de 2014

Os ventos de domingo

Os ventos de domingo são distintos 
carregados de uma paz impossível de se ter 
Deixe-se perceber: no sofá 
ou à beira mar 
há sempre uma paz a se esvair 
soprando os juramentos dos dias que passaram até os que estão por vir. 

- Aqui em casa, desde que meu sofá virou mar, os ventos de domingo têm soprado a semana inteira. 
- Oxe, deixe de besteira!

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Geração corante

Entre a fumaça cinza 
a nova juventude 
topando nos muros rígidos 
de verde ainda fresco e azul quase coberto 
por um vermelho escorrido 
no preto e no branco 
com tintas solúveis em água
e pincéis descartáveis
pintando as caras
e as calçadas
que agora padecem a sós
sem bancos nas praças.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O cemitério dos suicidas

Era sempre assim, alguém reservava horário, preenchia a papelada, recebia o material necessário e ia pra casa. No dia seguinte, como combinado, eles iam lá e recolhiam o corpo. Por vezes, havia velório, mas a maioria optava por simplesmente ir de uma vez, sem pós-despedidas, somente deixando a carta de intenção que ficava junto aos outros formulários: para público geral ou destinatários específicos. Era um ótimo negócio, bastava uma salinha, um arquivo e um terreno bem cuidado. Em tão pouco tempo, com a legalização do suicídio, já tinha alcance nacional. Publicidade e propaganda quase não precisava, afinal, todo mundo é um suicida em potencial: “Escapulários: a cura pela autonomia. Totalmente seguro, insensível e indolor, qualidade garantida!”.

Não era como as funerárias e cemitérios comuns, não refletiam nada fúnebre nem precisavam abusar dos verdes campos e suas flores, eram até bem felizes e saudáveis, de fato. Mas havia um problema que começava a se alastrar: na boca do povo ecoava o chamado Cemitério dos Suicidas, e isso ia cada vez mais se espalhando pelo país, o que não era nem um pouco bom para a imagem da empresa que pretendia expandir os negócios aos países vizinhos e, em breve, mundialmente. É que suicídio e seus derivados não soavam bem para ramo nenhum, a palavra ainda era carregada demais para a economia. Foi então que Seu Enzo, pioneiro e maior empresário do mercado suicida, idealizador e dono único da Escapulários, decidiu contratar um linguista renomado e um especialista em marketing para lidar com esse contratempo.

Depois de complexas, fundamentadas e calorosas discussões entre os dois, e de descartar a ideia de abolir a palavra do dicionário, chegou-se à simples conclusão: a solução seria descarregar o peso da palavra popularizada, atribuindo valor de mercado e inserindo na mídia um termo alternativo para aqueles que sem os devidos aparatos regularizados decidiam tirar a própria vida. Dentro das condições legais, o suicídio, enfim, seria naturalizado, legal e popular, e a corporação poderia continuar com seu nome de registro e seu nome vulgar sem maiores danos.

Com isso, aos poucos, foram surgindo os chamados sáfaros, indivíduos que simplesmente se matavam sem registro na Escapulários, que passou a ser obrigatório, sendo enterrados em cemitérios comuns junto aos outros, causando um grande misto de classes: ali não se sabia mais quem morrera de morte morrida e de morte matada, informação imprescindível para manter o controle de mortalidade. Nisso, Seu Enzo logo recorreu ao poder público, não lhe bastasse o primeiro incidente de nomenclatura, agora vinham com essa de burlar o sistema de Cadastro Suicida Obrigatório (CSO). Além do mais, não somente a empresa estava sendo afetada, mas toda a sociedade, tudo se encontrava à beira de um colapso: economia, segurança, saúde. Disso, Seu Enzo fez um acordo com o Governo e, aliados, implementaram o Seguro Nacional Suicida, vinculado à Escapulários. Cada cidadão ou cidadã tinha mais um direito garantido. A taxa era cobrada mensalmente e, para maior comodidade, inclusa na conta da luz.

Com essa medida, a economia do país alavancou, os altos índices de ocupação de leitos nos hospitais diminuíram e os sáfaros reduziram consideravelmente, de início, não se morria mais de qualquer forma, o selo E estava garantido a todos. Só que essa paz durou muito pouco tempo, pois nem todos tinham condições de contribuir com mais uma taxa, tampouco com a iluminação que vinha cada vez mais cara. Logo os grupos que iam ficando no escuro já com o por do sol começaram a se aglomerar nos litorais das cidades: improvisavam casas com restos de madeira que iam encontrando pelo caminho e se mantinham a partir dos bairros vizinhos, onde batiam de porta em porta. Os litorais começaram a ser isolados, salvo poucos que serviam ao lazer e turismo cidadão e eram mantidos a duras penas pela segurança preventiva e apropriadamente equipada. Enquanto isso, todo o resto ia servindo de abrigo mais e mais a comunidades inteiras.

Não se entendia ao certo o que causara tamanha crise, mas, por enquanto, ignoravam isso, pois a ordem das metrópoles estava abalada, as taxas de suicídio ilegal haviam crescido, os sáfaros estavam superlotando os cemitérios, o suicídio legal estava perdendo a credibilidade, o que provocava aumentos abusivos nas taxas suicidas, e a economia mundial estava sendo afetada. Após incansáveis discussões e negociações entre ministérios, secretarias e coordenadorias, foi decretado estado de emergência e o Governo não teve outra opção a não ser regulamentar mais uma lei de proibição, que saiu imediatamente clara e concisa, sem mais formalidades, em todos os jornais do país, inclusive nos jornaizinhos de bairro. A partir daquela data de publicação, ficou terminantemente proibido o suicídio sáfaro, sob pena de multa, reclusão e capital ao indivíduo direta ou indiretamente responsável pelo indigente.

domingo, 20 de julho de 2014

Os contos que me devia

Gostava de sair, mas não nos finais de semana, que se resumiam a uma ressaca sem fim, ressaca por excesso de vida, e por isso preferia não falar com ninguém, até me conhecer. Tinha um tom contraditório que variava entre os extremos: quando não muito à toa na vida, muito compromissado; era isso o que mais me encantava e, por vezes, me fazia odiá-lo. Só não odiava tanto assim porque já o amava, e amor não tem noção. Às vezes me vinha como resposta só o desdém, talvez assim o fizesse se sentir mais meu, mas era só birra minha, pois tudo o que me contava dos domingos, ou sábados, incluía sempre um "ainda te convenço um dia a ir comigo". Já o encarava à espera, quando demorava ou hesitava um pouco, só me vinha a mesma vontade de querer encerrar ali mesmo aquele monólogo bobo de suas aventuras sem fins. Mas sem meios, continuava a ouvi-lo, tentando achar em cada frase algo que me desse um pronome possessivo e me reafirmasse: meu. E de todos. Não havia ciúmes, nem sequer possessão, me valia mais sabê-lo comigo sempre no fim da noite, do dia, mesmo que passasse por todos os outros, quaisquer, nenhum que lhe valesse o gasto da memória, ele dizia. Era meu sem ser, apenas sendo.

Numa de suas saídas, veio me bater a porta no meio da madrugada. Bêbado, talvez, pois nunca sabia exatamente o quão lúcido estava, tendo bebido ou não, ainda com os sapatos nos pés, ainda com o jeito de sempre chegar em minha casa: disfarçando qualquer noitada num banho rápido e enxaguante bucal. Aliás, sempre me parecia assim, recém saído do banho, por mais que passasse em todos os bares e festas da noite, estava sempre com tons de lucidez e perfume. Talvez por isso não me chateasse tanto quando chegava, talvez por isso logo em seguida da raiva, me viesse somente a vontade de ouvir suas histórias e esperar alguma desculpa pra me ter nelas um dia. Entrou silencioso, quase como um equilibrista, deitou-se na cama por uns instantes, a água já estava na cabeceira, dessa vez não fez cena pra tomar logo, nem o comprimido. Logo dormiria. Acho que era o único meio que tinha pra dormir: minha cama, água na cabeceira e o bendito comprimido. Pelo menos me deixava mais aliviada vê-lo ali, seguro de si e de mim, finalmente em paz, apesar de sempre deixar solto que me dava nos nervos quando chegava de madrugada, meio bêbado, meio lúcido, a ter que pensar logo em algo pra fazer as pazes quando fechasse a porta do quarto.

A história foi a seguinte: havia marcado de sair com uma amiga que não via há tempos, que acabou não aparecendo, nem lembrava o motivo. Ficou sozinho só até o terceiro copo, logo conheceu os dois rapazes sentados ao lado que discordavam da música que tocava. Tendo os três concordado em discordar, partiram dali pro primeiro lugar que tocasse o brega da noite; o que era difícil numa noite de sexta viciada em hard e house, o que tivesse movimento. Acabaram indo parar num boteco que mais parecia uma residência com cadeiras na calçada a falar da vida alheia, não fosse pelo horário, não fosse pela total ausência de vida alheia, senão a deles. Rádio FM. O dono, Seu Adelino, não hesitou em sentar-se num banquinho próximo a eles e a falar das vidas que passavam por ali e por onde ele passava. Noutro dia, aparecera uma moça, mais ou menos naquele horário, parecia esperar por alguém, sentou-se, pediu uma água. Bebeu aos poucos, e a cada gole olhava o celular, quem quer que fosse, não ligaria, mas mesmo assim esperava. Já era tarde, pediu a primeira cerveja, os primeiros goles foram lentos, até que veio a segunda, a terceira, quarta e a manhã. Ninguém ligou. Desceu a rua nem um pouco cambaleante com o que sobrara da água, dali não se sabe. Seu Adelino nunca tinha visto ninguém esperar tanto assim por ninguém, disse. - Pois eu sempre a espero, e nessa espera sempre acabo fazendo-a me esperar mais do que devia. Disse que disse a eles. Não acreditei, talvez fosse só um jeito de pedir desculpas antecipadamente. - Um dia ela vem. Sem birra nem descrença. Foi ai que decidiu dessa vez interromper tudo o que viria a fazer, pegou o primeiro táxi e veio bater a minha porta.

No outro dia, ao acordar, quase não percebeu que estava ali, olhou pra mim com dúvida e questionamento, e eu respondi com expressão nenhuma, a esperar o resto da história que me convencesse de qualquer coisa, que me lembrasse: amo mais do que odeio, amo mais do que odeio. Foi difícil quando começou a viajar, mais ainda quando perdeu completamente a lucidez e o caminho de casa. E eu ficava sem saber quando estava ali de propósito ou por acaso, a ouvir suas histórias, à espera.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Diarista

Quando quiser fazer visita
olha, avisa
tenho adiado a faxina
no quarto, na casa
e na vida.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Desregrados

Olhando a vitrine dos sapatos, pois de repente parei em frente a uma loja de sapatos e fixei na vitrine como quem gosta de sapatos, me peguei pensando na nossa discussão da noite passada, mais uma: você estava certa, afinal, quando disse que eu não poderia te amar de novo.

Eu não poderia te amar mesmo, jamais, nem pensar, quando você é dessas que se chateia por nada, ou quase nada, e sai descontando em todo mundo a raiva que nem você mesma sabe o motivo nem onde vai parar. E depois volta como quem pede desculpas sem sentir a menor culpa: sem nem usar as palavras certas, apenas segura minha mão e pergunta sobre o nosso próximo filme ou seja lá o que eu vá querer fazer. Nem poderia amar alguém que acorda de mau humor, ou quem vai dormir sempre antes mim e fica reclamando porque a luz ainda está acesa. Nem me imagino com uma pessoa que me liga no meio da noite pra dizer que me ama, embriagada, porque só assim consegue se desarmar e perceber que também pode ser amada. Também não creio que saberia lidar assim tão bem e meter o amor no meio de toda essa confusão que acontece quando eu discordo ou concordo contra as tuas vontades e crenças de achar que as pessoas ainda têm jeito ou jeito nenhum. Porque você não tem. Eu não ousaria mesmo amar só por esses 10% de sossego que você me dá ao tentar me convencer que dessa vez tudo vai ficar bem, que a calmaria vai reinar, que todo o abuso passou e que agora os remédios vão ser tomados na hora certa, porque os outros 90% vêm com você, logo em seguida, me mandando ir pro inferno, que eu decida a minha vida e vá viver longe dessa paz que você não pode me dar não por falta de vontade. Eu não poderia te amar porque você não tem o mínimo controle sobre si e sobre amor nenhum e porque eu também não tenho, posto que ninguém tem quando já ama alguém. Eu não poderia mesmo te amar porque já te amo e ninguém ama por cima, ninguém ama de novo.

Num estalo que me deu pela buzina do carro (ou foi pelo grito da criança mimada que passava?), despertei daquele transe, deixei os sapatos de lado e continuei meu caminho. O sol já ia tarde e eu precisava chegar logo em casa, era dia do turno acabar mais cedo e eu tinha te prometido aquele jantar e aquele vinho no sofá ou no chão, sem luxo nem etiqueta. 

domingo, 13 de julho de 2014

Quando flor

Foi-se o tempo das pétalas
dessa chuva que veio sem dó
agora tu murcha
alguém te quer?
Flor, se o bom tempo voltar
e alguém bem te quiser
desabrocha contra o sol
faz teu tom durar
Vai-ser rosa por si só.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Quando o amor é passado

Sai de casa pensando que ia sem rumo, mas o ponto certo era o bar mesmo, uma cerveja antes de tudo o mais porque não adianta inverter a importância das coisas, tudo começa e acaba na virada de um copo, água, café ou álcool, se cura, ou se mata, o sono, a ressaca ou o tédio. O amor virou a esquina logo na primeira curva, pensei, sem nenhuma surpresa: - ótimo, finalmente saiu. Sem mais amor de facebook. Cansei de amor certo, rima, métrica, quero amar é errado mesmo, fora da linha, amor-carne-sentido, escrever com suor ou sangue, sem mais poesia-bit de grafite, tinta azul ou preta. Papel só se for papelão na chuva à espera dela, a bater na porta sem ver a linha nem o ponto, antes ou depois, nem Caio soube. Dessa vez, toda arte vai ser consequência. A palavra vai ser dita, ou escrita, mas no corpo dela, não mais tela, não mais teclado. Vou trocar o computador pela máquina de escrever e o celular pelo telefone sem fio, porque o amor não é prático, não é só desligar, não basta dar enter. Sai pensando que não tinha rumo, voltei tendo a certeza: o caminho se faz também num passo recuado.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Terceiro brinde

Chegando em casa às sete da manhã, Marco ainda não tinha certeza se precisaria trabalhar de novo à noite. Assim eram quase sempre seus dias, ou noites: um relógio sem tempo, medido pelo toque do celular que aqui e acolá Zezé ligava e anunciava outra noitada de trabalho. Por vezes, nem voltava para casa, ia direto do balcão do bar para a casa de alguém que conhecia nas festas, a estender uma farra já desgastada. Quando sozinho em casa, mal se mantinha acordado, era cama, banho e rua. Numa noite dessas, conheceu Jéssica, que por muita insistência das amigas havia ido àquela festa. Quase nem dançou, passou a maior parte do tempo se lamentando no bar e contando os minutos para voltar para casa, onde ainda tinha uma pilha de trabalhos da faculdade para terminar, o trabalho, as contas por pagar, as contas, as contas, os juros, nunca os juramentos. Os sons, a fumaça, os bêbados, todos, tudo empurrando para fora um corpo que não estava mais ali, mas sugando a mente de quem permanecia estático, à espera de alguma coisa, da hora certa ou errada, tinha algo a esperar. Longe e perto, sendo tocada e rejeitada, se mantinha no mesmo lugar, aflita, calma, uma confusão prevendo uma contradição. Abraçava as amigas, a queixarem-se dos namorados, mas não conseguia lhe deixar tocar o rosto uma lágrima, e era a maior angústia da noite – a vontade de chorar nos ombros de quem repulsava cada vez mais. Mas era quase como se elas chorassem por ela, como se sua dor ressoasse por todo o ambiente e a livrasse daquele fardo ao mesmo tempo em que aumentasse. Era um balão cheio de tanto ar. Não fazia o menor sentido estar ali, sóbria, embora fizesse todo o sentido do mundo.

Há tempos, Marcos não conversava tanto com alguém, nem com seus amigos que vez ou outra conseguiam encontrá-lo no barzinho em suas folgas. Jéssica lhe perguntava as coisas como se realmente tivesse interesse em suas respostas, talvez tivesse, pois talvez Marco fosse a única pessoa que de fato pudesse entendê-la justamente por não ter a intenção disso. Antes de partir, porém, não pediu nenhum contato, simplesmente se foi quando Marco virou as costas para atender outro cliente. Seria difícil encontrá-la de novo, ele sabia. Seu trabalho não se limitava a nenhum lugar nem estilo de festa e também mal se preocupou em conhecer melhor a garota que serviu-se apenas de água. Costumava não ter relacionamentos, apenas casinhos pós-balada, quase nenhum em sua casa. E, por isso, não era muito de conversar sobre si nem sobre ninguém, apenas conversas fiadas o bastante para que se cumprisse o destino de duas pessoas que se conhecem numa noite que nada promete, mas tudo cumpre. Mesmo assim, todas as noites ele esperava que ela voltasse: pela manhã, ao acordar, olhava para o lado, num desejo nada compreendido, esperando que ela estivesse ali deitada, num sonho só dela; pelas ruas, esperava encontrá-la numa esquina qualquer; pela vida, esperava que, bem lá no fundo, essa espera ainda fosse real. – Bárbara? Recebi a mensagem, sim, acabei de chegar. Ainda não sei se posso ir à noite. Depois dessa virada, nem vida eu tenho pra falar ao telefone! Mas retorno mais tarde, ou apareço. Mal desligou o telefone e caiu na cama. Era Bárbara a mais próxima dele e que mais conseguia entrar em contato. Da última vez, aos prantos, Marco deixou escapar que se sentia sozinho, não por estar solteiro ou sem ninguém dividindo a casa. Sentia-se sozinho simplesmente por não conseguir como falar que assim se sentia. – A solidão é o eco de um latido bem distante. Bárbara, meio confusa, não entendeu o motivo do amigo não procurá-la com mais frequência, assim como não entendeu muito as palavras meio embaralhadas dele. O fato era que ele não costumava conversar com ninguém, mas ouvir a todos, pois achava que seus problemas nunca eram tão graves assim. Na verdade, não eram. Mas os dos outros também não. Um problema se torna de fato problema quando é ignorado, e isso Marco fazia bem. Esse relapso que teve com Bárbara foi apenas efeito do álcool e do tempo que o táxi demorou para deixá-lo em casa, tendo sido breve e facilmente esquecido. No dia seguinte, apenas a ressaca e a sensação de um nó rompido na garganta, que logo foi inundada pela água que bebia desenfreado. Ah, vodka! Ah, o esquecimento!

Seu sono não durou muito tempo, acordando na segunda vez em que o telefone tocou. – Marco? – perguntou uma voz meio tímida. – Peguei seu número com o promoter daquela festa em que nos conhecemos, amiga de uma amiga conhecia, não tinha certeza se ligava ou não, pois talvez nem se lembre de mim. – Jéssica! Sim, lembrei-me bem no momento em que atendi, já que fui bastante questionado naquela noite. Respondeu, tentando conter a dose de euforia com desfalecimento. – Não sabia bem o que conversar com um bartender, normalmente conheço pessoas num lugar mais quieto, acho que só fiz perguntas, não é? Nunca tinha conhecido alguém como você. Também não me sentia muito à vontade naquela noite. Um certo silêncio veio após essa afirmação, ambos não sabiam o que falar. Ele por nunca falar muito, evitando aproximações, pois, ultimamente, tudo acabava ao amanhecer e reencontros não eram bem prováveis. Ela por não saber lidar muito bem com reações silenciosas, tomada sempre pela insegurança que a vida lhe deu com o tempo. – Acho que não liguei numa boa hora. – Mas fui eu que liguei, Marco. – Bem... preciso ir. – Preciso desligar. Disseram quase ao mesmo tempo. Ela, achando que bem o conhecia, o rapaz detrás do balcão que preparava drinques e lidava com meio mundo de mulheres mais interessantes e bonitas, não recordou das últimas palavras dele naquela festa, antes de ir embora sem se despedir de uma conversa onde só ela parecia mostrar interesse; sua única pergunta a qual pairou pelo ar e logo se dissolveu entre a fumaça da boate: – Seu número?

Ao desligar o telefone, não conseguindo voltar a dormir, Marco mirou o espelho por um tempo como quem procura o outro lado do reflexo, e relembrou-se do fardo e das certezas que agora carregava: autossabotagem foi tudo o que lhe sobrou. Dormia o dia inteiro, mas mesmo assim continuava na cama, insone, rejeitando convites, desligando telefonemas e apagando as luzes, esperando pela próxima festa. Um dia, quando quis o que não era a solidão, descobriu o superficial, deram-lhe a felicidade e o amor de bandeja, e isso fazia dele o que não era ele. Sua sorte era o seu maior azar. Rejeitava, então, essa sorte, rejeitando a ele mesmo, e toda felicidade que lhe vinha parecia artificial. Para ele, somente a tristeza era um sentimento puro. A tristeza e o amor rejeitado. O que vem depois disso são fugas de quem acredita no sentido das coisas. Somente o não sentir é que era real, cheio de tudo. Falava sobre isso, fazia aquilo, o tempo todo lhe apontavam contradições como se descobrissem algo de extraordinário, mas assumia a si mesmo como ordinário, assumia até o que não era para poupar aproximações. Assumia canalhices, provocava marcas de batom, negava o que fosse decente. Não queria sutilezas. Mas ainda esperava que o telefone tocasse de novo, ainda naquela noite, e revelasse tudo aquilo que era mentira por medo de ser verdade. Ainda, no fundo, tinha esperança de que aquela desconhecida aparecesse e o reconhecesse, descobrindo o que tanto escondia do mundo: a loucura de ser sensível.

sábado, 5 de julho de 2014

Dieta

O telefone chegou a tocar mais de três vezes e ela nem sequer deu importância, celular desligado, caixa postal desativada já fazia algum tempo. Na cozinha, começava a preparar o jantar, sem visita certa, mas talvez alguém da família chegasse de surpresa, daquela vez teria um prato apresentável pra disfarçar a bagunça na casa e no cabelo. Especialidade: saladas e molhos, tudo muito sutil e leve, agora sem pimenta nem muito sal, tudo muito contrastante a todo o resto. Sem mais alta pressão. Norah tocava tímida, num ruído quase imperceptível, "... how does it feel?". Colheu algumas coisas, hortelã, gengibre, abacaxi, gelo, água. Sem açúcar. Não ouviu quando o telefone chamou pela segunda e última vez.

Do outro lado da cidade, a fixar o orelhão, sentou-se na calçada. Talvez ligasse de novo daqui a alguns instantes, talvez voltasse pra casa, talvez voltasse à praia, talvez voltasse, talvez de novo. Pensou um pouco antes de ir embora, mas pensou ralo e simplesmente saiu caminhando pelas ruas, deixando os ônibus passarem, quem sabe o próximo, enquanto isso, andava. O bar que dobrava logo aquela esquina convidava só pra uma cerveja, e ali também tinha um orelhão, ligou prum amigo de copo, - Desabemos essa noite, ela não me atendeu pela primeira vez, acredita? - Só fazia um ano, não entendia como dessa vez aconteceu. Mas dessa vez, como em todas as outras, precisava vê-la: só pra ter certeza de que não precisava. Dentre hiatos bem maiores, sempre atendia, ou retornava logo em seguida. Olhava o celular, nada, nenhuma chamada. - Batata frita, bolinha e espetinho. E traz a saideira, dessa vez é a última.

Adicionou algumas ervas pra substituir o sal, a fruta já bem amadurecida adoçou o jantar daquela noite como nunca antes, mesa pra um, nunca pensou que conseguiria morar tão bem sozinha outra vez.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Entre nós

Um emaranhado de pensamentos rodeavam a cabeça de Lídia como se buscassem fazê-la sentir aquela perda repentina. Enroscavam-se cada vez mais e menos faziam sentido. A desculpa - Isso fica entre nós, disse ele. Mas acabou que ficou somente com ela o desespero e a dormência entrelaçados por perder alguém tão cedo, antes mesmo do sol nascer. Que esperasse pelo menos a luz do dia, pensou, mas não deu tempo. Não deu tempo de escrever, de ligar, de bater em sua porta, tinha que ser naquele agora e só. O nó da corda tão perfeito como o de quem sai bem cedo pra pescar e que em alto mar enrosca rede, isca e anzol, e espera. Não pode esperar mais nem um minuto. O nó foi um só. O nós também. Desatou antes que fizesse sentido, mas nunca mais voltou aquilo que o prendia a ela.

[em processo de amarração]

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Laço ou nó

O apego ao passado talvez não seja pelo fato de ter sido algo assim tão maravilhoso, mas simplesmente por não haver nenhum futuro, além do imediato que se rasteja a cada segundo no presente. A gente precisa ter um tempo pra conjugar: o problema é querer quase sempre o mais-que-perfeito. Como num presente, teoricamente pensado, adquirido e repassado pleno de afetos, boas intenções ou acordos de paz. Há o laço, o papel e o objeto-trato-troca. Há quem preze pelos três ou por um só, há quem guarde tudo ou jogue tudo fora no minuto seguinte. Há o que enfeita, ou prende, o que protege, ou cobre, e o que contenta, ou se contenta. O fato é que pra rasgar o papel, antes tem que desfazer o nó, talvez até se passe pelo papel sem rasgá-lo, mas o laço vai ser desfeito. Quando refeito, o papel vai ser outro, o presente também, ou nem haja mais nada, só a fita que ainda possa ser laço. Ou o laço que possa ser nó e nunca mais desatado. Corta-se.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Satisfeita apatia

Antes de tudo, obrigada por nada. Pelo brinde que você não ofereceu, pela bebida que você não compartilhou e pelo convite que você não fez. Essa ressaca que me toma vem de não sei onde, só sei que acordei assim, sem nenhuma dose sequer. Lembro-me de ter desabado e desabafado ontem, mas já não me lembro de metade das palavras que soltei, em vão, no teu ar. O desabafo se anula. O peso dobra. Quando pensei ter, finalmente, encontrado uma pergunta pra minha resposta, dei de cara com a fome de tudo o que se completa. E não há nada doce que ludibrie e disfarce essa sensação contínua que meu vazio estômago insiste em rebater. Agora fico sem respostas e sem perguntas, só com um papel preenchido a ser dado como resolvido e arquivado nos fundos de uma sala mofada. Estou gorda, não me sustento, e qualquer vento que dá me desequilibra: ando perto das paredes, olhando pro chão. Tudo dói, menos o corpo.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Três latinhas de cerveja e só

Todos já dormiam, mãe, vó, vô, tia, irmão, menos Elisa. A TV ligada à toa, passava um filme qualquer, que sequer chamava sua atenção nos momentos de tensão, o celular na mão, esquecido, só percebera que estava ali quando um toque quase imperceptível, pois assim mantinha seus ruídos ultimamente, anunciou uma mensagem. Quem seria em plena madrugada de quinta-feira, pensou, fazia tempo que ninguém a procurava nessas horas, pelo menos não no meio da semana, deve ser propaganda de operadora, demorou a checar. Aliás, ignorou aquele toque pelo tempo de lembrar que ela costumava procurá-la nas horas mais inusitadas, quando não bêbada, aflita. Quando mantinha o celular sempre por perto, o sono leve, o toque não. Recordado isso, vagarosamente apertou o celular entre as mãos, talvez desejando que não fosse, mas acreditando que era, e leu a mensagem. Era. Antes de reler e absorver o que dizia, atentou para a TV, um acidente de avião.

- Tenho três latinhas de cerveja. Posso ir ai?

Não lembrava a última vez que havia negado um pedido dela. Não se lembrava de já ter negado.

- Não.

Nem hesitou antes de responder. Nem pensou.

- Chego já.
- Não venha. Está tarde e todos já estão dormindo.
- Dez minutos.
- Não.

E o celular não deu mais sinal de insistência. Inquieta e sem saber o que viria a seguir, voltou a olhar para a TV. Agora havia uma terapia em grupo, o silêncio tomava todos os espaços em goles lentos e doloridos, todos pareciam cinzas pairando no ar. O telefone tocou, uma vez, meia vez. Era ela. Elisa parecia ter saído de um transe quando se levantou do sofá de uma vez e, automaticamente, foi em direção à porta da frente. Mas que diabos, cadê a chave? Ao voltar à sala para pegá-las, xingava Deus e o mundo, calada. Não acredito. Não acredito! E na ponta dos pés caminhou pela casa. Abriu a porta.
- Não acredito.

Suspirou como sob o efeito instantâneo de dez calmantes.

- Entra. Cuidado pra não se bater em nada. A porta do quarto já está aberta.

E ela entrou sorrateira como um rato, como sempre, naquela madrugada. Quase às três. Sentaram-se as duas na cama, uma em cada ponta, abrindo uma das latinhas. Elisa não sabia o que falar nem como fazer, já que tinha dito "não", não esperava que depois de tanto tempo dessa vez ela também não a escutaria. Lembrou-se de quando a convidava, antes da meia-noite, bem no fim da tarde, e quando não aparecia, insistia que poderia aparecer ainda. Antes da meia-noite. Poucas vezes apareceu. Menos ainda avisava que não apareceria ou se atrasaria. Agora que Elisa não esperava mais, resolveu do nada vir com essas três e um papo de como andava a vida.

- Onde você estava numa hora dessa? Eu disse pra não vir. Pra que veio? Pra que veio dessa vez?

Vinha da casa de uma amiga, que por acaso morava bem perto dela, e não queria voltar para casa com aquelas cervejas, então decidiu pegar o caminho mais longo, totalmente contrário ao seu, para terminar de bebê-las. Apesar de acreditar que dessa vez suportaria por mais tempo, já na segunda latinha a armadura de Elisa trincou e foi posta de lado, deitou-se. Começaram a recordar das vezes que voltavam para casa nessas madrugadas, na ponta dos pés, completamente ébrias. Das vezes que as horas não batiam em nenhum dos juízos e que levavam com elas bem mais do que três latinhas. Conversa ia e vinha, acusações ricocheteavam vez em quando, entre afetos, lembranças, convicções e privações. Elisa não estava totalmente segura de si nem dela. Ainda não entendia por que justo naquela noite, com aquela desculpa esfarrapada, resolvera aparecer. Nada tinha terminado bem. Nada tinha estado bem antes mesmo de terminar. E desde então nada continuava nada bem. Apenas equilibrava-se numa lembrança e noutra, boas e ruins. O que era péssimo, pois lembranças são como bolhas de sabão que ludibriam e se dissipam no ar com o mais leve toque ou sem mais nem menos, deixando somente o desejo de tê-las ou vê-las novamente, mas surgindo cada vez mais frágeis.
- Não ponha minhoca na cabeça, Elisa. Vim porque queria te ver, era só saudade, e tinha essas cervejas, sei que você gosta, e sei que não dorme cedo. E também sei quando não quer dizer não, mas mesmo assim diz. Só isso.
- Você bebeu quantas antes de vir pra cá? Sei que só vem quando bebe ou precisa de alguma coisa, sempre foi assim e sempre vai ser. Te odeio por isso.
- Odeia nada.
- E cadê aquela lá? Devia ter ido pra lá. Idiota.
- Mas vim pra cá.

Elisa não imaginou que ali mesmo ela passaria o resto da noite, ou o início da manhã.

- E vai dormir aqui? Eu mereço.

O tempo estava indeciso, nem dia nem noite. Nem claro, nem escuro. Como na primeira vez em que passaram a noite juntas na casa dela, o colchão no chão, as janelas entreabertas, a porta trancada e um copo d´água ao pé da cama. E como naquela noite, veio um beijo. O mesmo beijo que revirou a vida de Elisa daquela noite em diante, nunca soube se dali sua vida estava ao contrário ou do lado certo, ou de cabeça pra baixo, ou virada pra lua. Se acordara ou adormecera. À meia luz, entre farpas e carícias, um beijo, que se mostrou mais claro que o dia, mas que dessa vez não chegou a clarear nada. Elisa disse não pela segunda vez. Nem hesitou, nem pensou.
 
Não-ponha-minhoca-na-cabeça, mentalizou, com vontade de afogá-la com a terceira cerveja. Te odeio por isso. E a tomou sozinha.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Sobre a mesa

Amor é que nem cozinhar: tem quem doe, quem venda, quem compre, quem troque. Quem saiba, quem não saiba nem queira, quem tente, mas nunca acerte. Tem gente que gosta de cozinhar pra desconhecidos, fica lá na sua cozinha despejando tempero pra tudo que é gente, e ainda recebe por isso, dinheiro, obrigados em massa, simpáticos ou tímidos. Vem com nome, fama ou anonimato, mas não tira a mão da massa. Já tem gente que prefere um jantarzinho mais particular, vai às compras e escolhe cada ingrediente com esmero, nada muito maduro ou verde. Alguns cozinham aos montes. Outros, pequenas porções. Uns atentam pro sabor, outros, pra beleza. Há quem consiga os dois. Tem gente que prefere fazer o molho, outros gostam mesmo é de comprar pronto. Molho branco, tomate, madeira, 4 queijos, ervas finas. Tem quem pique tudo direitinho, tem quem jogue tudo logo na panela. Pimenta e sal a gosto. Uns optam por assados, fritos, cozidos, mal passados. Carne tem que ser bem suculenta. Tem o forno, o espeto, o óleo quente. Vegetarianos tratam de inventar de um tudo pra encantar mais e mais gente com outros temperos. Tem quem faça uma mistura de tudo e mais um pouco. Uns pensam no sabor, outros na balança. Tudo faz mal e faz bem, na quantidade ou na validade. Às vezes passa do ponto, às vezes queima, às vezes fica cru. Tem quem prefira plantar o que come, tem quem nunca nem tenha pensado nisso. Amor de cozinha começa na primeira semente que brota no pasto do outro lado do país, semente que cai das mãos suadas ou da boca de um pássaro que voa sem saber ainda pra onde vai.

A adversativa

A discriminação é mas 
Tô de saia curta, mas não sou puta 
Sou puta, mas me visto bem 
Tenho barba, mas ando limpinho 
Tomei banho, a barba é charme 
Amo muito, mas não me acabo 
Nem amo 
Me acabo, mas chego em casa 
Bebo muito, mas não dou na cara 
E você que faz, mas 
E ele que é, mas 
Mas ela, que nem comento 
Não tenho preconceito, mas 
Olha, pelo menos 
Eu sou assim 
Nem tão assado.

domingo, 4 de maio de 2014

Superdose de vida

Os comprimidos ordenados na cama como se quisesse pôr ordem no caos que começou a sentir logo que chegara em casa. Cloridrato de amitriptilina, para enurese noturna e tratamento de depressão. Contraindicado para pessoas com tendência a encontrar-se constantemente rodeadas por caóticas rotinas cheias de absolutamente nada, mas isso não dizia na bula. Sem precauções nem advertências, buscava orientação em cada pílula, a traçar linhas retas e semicírculos. Antes de tomá-las, uma a uma, mas num gole só, o que a tomava era o vazio que ecoava entre as quatros paredes do quarto. Sem carta, sem despedidas, sem desculpas, sem culpa. Aquele caos que entrou com ela pela porta da frente vinha de outras vizinhanças, de tempos mais remotos, de guerras mais civis e de romances mais tempestuosos. Era o caos dormente de um domingo à noite que já anuncia os índices do final de semana e é prólogo de mais uma segunda-feira de cinzas entre cacos de vida. A taquicardia vinha forte, batendo na vida que há tempos sentia-se morta. Agora ela sentia. Deitando na cama sem também pedir licença, adormeceu ciente de um amanhã que não viria, ao lado dele que dormira antes, sem boa noite, nem bom dia. O silêncio já era hóspede fixo. Dois corpos frios numa cama desarrumada, a chuva a alagar as ruas, afogando almas clandestinas que teimavam em sobreviver, e a bater, bater, bater e parar sem mais nem menos.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Crédito especial

Parei de te convidar não pra que você aparecesse de surpresa, não quero mesmo que venha, nem tarde nem nunca, pois já gastei todas as palavras pra que pelo menos passasse por aqui, todas as desculpas pra que chegasse cedo, desenhei todos os mapas possíveis pra que não se perdesse no meio do caminho, usei todos os cartões de crédito pra estocar o que bem agradasse, fiz até conta no mercadinho da esquina; vi meus pedidos se perderem entre o eco de outros pedidos deturpados, convites aleatórios, papéis picados e rabiscados a traçar outros caminhos, dívidas e mais dívidas a acumular em meu nome. Só eu paguei, em parcelas mínimas e juros máximos, aos poucos, fui, ano após ano, engolida pelos débitos da tua ausência. Saiba que não tinha, de forma alguma, a intenção de te riscar dos meus contatos, mas é que cedo ou tarde esquecia das minhas contas e de todos os outros convidados e ia atrás do que era mesmo da minha conta, acabava sempre no cheque especial. Nem meus dois empregos estavam dando conta de sustentar esse sentimento todo. Juros, taxas, multas, alguns poucos bônus apareciam pra me ludibriar, mas logo dava pra perceber que era tudo jogada de quem não sabe se vai ou se fica. Era sempre assim: eu empobrecia de amor enquanto você decidia se levava ou se estava só olhando. Olha, se parei com os convites, entenda, é porque nem de presente quero mais. Quitei todas as pendências, festa agora só se for à vista.

domingo, 30 de março de 2014

Luas cheias

As passadas largas na escada não disfarçavam a pressa daquelas pernas. Ela, ofegante. Ela, surpresa. Aquele pulso bateu tão firme na porta que ela se abriu sem qualquer receio, premeditando o conflito que aqueles corpos armariam naquele fim de tarde. Os cabelos castanhos amarrados, os óculos jogados na mesinha de canto, o suor ainda escorrendo pela testa franzida e a boca entreaberta aguardando o momento certo; a língua sedenta e inquieta passeava traiçoeira entre os dentes. Os cabelos bagunçados, os olhos confusos de um sonho distante e nenhuma curiosidade em persegui-lo e as mãos inseguras rondando o corpo tímido e nu; a boca em choque. A insatisfação e aquela curta distância iniciaram um ritual eufórico de corpos ansiosos e aparentemente virgens. Virgens de tanto desejo, como uma paixão inédita. As mãos cruzaram-se dando a impressão de uma deusa de um templo não tão distante, poligamia num par insaciável, as pernas entrelaçadas e o sangue uno. A respiração tensa, a falta de ar em busca do êxtase, da ausência total de qualquer vida comum. Exigiam a morte do corpo, a elevação, o topo da alma. Frenéticos corpos! Os dedos, demarcando espaço, invadindo territórios proibidos e delimitando aquelas áreas, percorriam sem qualquer escrúpulo a pele latejante dela, abusavam daquele terreno com total consentimento, sem qualquer rejeição. Os cabelos num só fio interligavam os gemidos imperceptíveis, um telefone sem fio ao pé do ouvido, um segredo, uma entrega. Os escudos pelo chão, as armas em mãos, uma guerra de um lado só, uma olimpíada entre lençóis e outros obstáculos. E o auge seguido, seguido, seguido por ânsia, dependência: uma noite na prisão. As luzes refletiam cada toque intenso, despertando o rei maior, anunciando um fim ou um recomeço. Mas, naquela manhã já alta, a despedida foi fria e casual, sem beijos nem abraços. Só a expectativa de um desejo agora contido, controlado, à espera de um anoitecer com a próxima lua cheia.

terça-feira, 25 de março de 2014

Carta ao amor que fica

Fixa,

finalmente. Estou indo embora dessa cidade. Já nem lembro há quanto tempo venho planejando essa despedida sem adeus, nem por quanto me vendi para ir no primeiro ônibus que me levasse o mais longe possível exatamente na hora marcada e certa. Meu tempo deixou de ser cronometrado no instante em que você disse "não". Finalmente. Prevejo todos os nossos planos do lado de lá, espelhados sem o teu reflexo, falar nisso, deixo meu espelhinho de cabeceira no mesmo cantinho, pode ficar. Do lado de lá, que nem sei ao certo onde fica, mas como há de ficar, não deixo endereço nem telefone, a garantir que você fique cá. E-mail você manda quando quiser, sem tempo de resposta, digo de antemão. Te visito sem hora marcada, me espere quando quiser, prometo. Mando cartões sem postais, para que te lembres apenas das minhas letras, outrora nunca lidas. Aliás, já guarda esta carta, como sendo a primeira, para que não te esqueças no momento presente em que desejares, se bem te conheço, em vão, ter dito "sim". Sim, estou indo embora de ti. Finalmente.

Até.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Arágua

Entre um e outro gole de cerveja 
naquele dia 
sentada à mesa 
Desnorteei um instante 
e proseei com um ser 
dos mares mais distantes 
Balbuciou qualquer coisa assim: 
- Cansei de ser fênix 
agora eu quero ser tartaruga! 

E foi-(ser).

de Natalice Garcia.