Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Pelo, peito, pele

é coisa de pele, sabe?
peito que arrepia
arrepio que se fia
frio entre as pernas
passos que se guiam
pelos toques
que se findam
entre os pelos
pela pele.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Fobia de amor

Uns cantam que “você não tem medo de mim, você tem medo é do amor que você guarda para mim”. Uns cantam; outros clamam e, de fato, guardam o amor pelo medo de amar. Sim, medo de amar, de andar de mãos dadas, de abraçar, de olhar no fundo dos olhos do outro ou da outra e dizer as três palavrinhas que, hoje em dia, mais e mais, estão longe de serem mágicas. Amar tem sido trágico e esse medo não é abstrato. Hoje, mais um morreu por causa do amor porque não tinha medo. Quantos mais hão de morrer e viver de medo do amor que mata?

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Sobre amanhã

Caro Cinismo,

eu queria mesmo que você tivesse me deixado quando eu pedi e quase implorei. Mas, como sempre, você conseguiu me convencer que o melhor pra gente era que ficássemos juntos até que tudo se ajeitasse. Me conta, depois disso, por quanto tempo você ainda se enganou pra me enganar também antes de, finalmente, decidir me deixar quando, finalmente, eu achei que daria certo? Tô te escrevendo pra te deixar avisado: tô com a mala pronta, amanhã embarco e nunca mais volto. Diria onde e até quando pretendo ir, mas correr o risco de ver você por perto de novo não quero não. Até porque sempre foi fácil acertar as coisas quando tudo tinha pra dar errado e conheço de cor essa sua manha de provocar casualidades e encontros. Eu sei que de um certo jeito a gente sempre acaba se acertando mesmo, só que pra mim já deu, essa vida sem planos, sem saber como vai ser não tá dando mais. Tá, no fundo, no fundo você sabe, bem que eu queria cruzar nossos caminhos de novo, cruzar, entrelaçar, nem sei, deve ser pela conveniência que você me proporciona com tantas mentiras com cara de verdade de um futuro legal pra gente. Mas, olha, mesmo assim, sabe que vez em quando eu dei pra querer ser solta? Vai que eu me acostumo e, finalmente mesmo, nos deixo ir. Então, me despeço por aqui antes que você chegue em casa e mude de ideia e me convença e me faça mudar de ideia também. De novo. O gás acabou, mandarei o dinheiro do aluguel mês que vem.

Quase sempre sua,
Esperança.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Sobre hoje

Querido Caos,

acabei de acordar e já não entendo mais nada, há pouco parecia ter uma cama aqui, mas são apenas lençóis jogados no chão e um travesseiro feito com mais lençóis. Resolvi te escrever já nesse despertar pra não esquecer o sonho. Prometi que quando sonhasse contigo, de imediato te relataria, e aqui vai: estávamos nós dois num mundo isolado onde não havia tempo certo, só o agora, tinha mais terra do que mar, mas não parecia visto de cima, podíamos também voar, e voávamos sempre, quase não me lembro de termos andado. Dava um frio na barriga toda vez que nos olhávamos e nos percebíamos suspensos no ar, era como se nos reconhecêssemos num espelho, espelho nosso. Exatamente como esse espelho que você deixou pra mim antes de ir embora que agora só serve de moldura pra um mosaico de fotografias de estranhos que ando tirando nos raros tempos livres que me obrigo a aproveitar. Você dava piruetas e cambalhotas enquanto eu checava as esquinas e quinas pra que você não se machucasse. Certo agora, você parou e desceu, reparou num muro solto no meio do nada, que insistia em ficar de pé quando todo o resto já era pedregulho. Nesse muro tinha uma janela e era oca, dava pra ver os cupins fazendo o trabalho direitinho. Depois disso ficou tudo meio embaralhado, você me perguntou se eu ainda queria trocar o trinco da porta e eu disse que trocaria a porta inteira logo, você sorriu e desatou a dar piruetas de novo até sumir entre as nuvens que já anunciavam mais chuva. Chovia sempre, mas tinha mais terra do que mar. Então eu acordei. E eu juro que tinha uma cama aqui, só que é a do outro quarto ao lado, o meu. Outra vez, dormi no teu chão. Acho que é só isso mesmo, eu e você voando, muro, janela e cupins, e chuva. Estou mandando aí uma cópia da chave, está tudo em ordem, aparece.

Quase seu,
 Equilíbrio.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Sobre ontem

Querida Rispidez,

tenho muito pra te contar sobre essa cidade, mas, calma, será aos poucos, em doses homeopáticas, como dizem por aqui. Como sou frágil, você bem sabe, adoeci logo que cheguei, passei uma semana de cama. Meu primeiro contato com alguém foi com o carinha da farmácia, inclusive, nos vemos uma vez por semana em algum lugar próximo ao pôr do sol pra tomar sorvete, mire, sorvete, deixei a cerveja de vez. De cara, ele percebeu que meu mal era a cidade e decidiu que a cada encontro iríamos a um lugar novo. Posso sair uma vez por semana. Ontem fomos a um lugar onde não vão muitos turistas, pedi a ele que não me levasse dessa vez onde tivesse muita gente que fala muito e se entende pouco. Nesta carta, só te conto de ontem, na próxima também. O que fiz nos dias anteriores pode descartar, já que não me deram motivos pra te escrever. Pois bem. Era uma praça num bairro distante, quase saindo da cidade. Tinha uma sorveteria bem na esquina. Ele ficou com açaí, eu, com limão. Acho que por isso você me veio logo ao pensamento. Então comecei a falar sobre ti pra ele. Disse que sentia saudade. Disse que você deveria ter vindo comigo, que poderia ficar bem perto, que mais perto seria melhor. Disse que deveria ter te dito isso antes de partir, mas que não tive tanta coragem como você, também disse que queria ser mais impulsiva e destemida pra dizer as coisas, como você faz. Depois disso, fiquei um tempo sem dizer nada. Quando o sorvete acabou, o dele, o meu derreteu antes, demos algumas voltas pela praça, o sol se pôs, os pássaros viraram morcegos, tivemos que voltar. Mas ainda tive como comprar numa banquinha esse porta-retrato que deve estar jogado na cama enquanto você me lê, a foto é de ontem, tiramos ao lado do escorregador porque você disse uma vez que gostava de escorregadores por causa do peso que eles simplesmente escorregam. Agora me lembrei da tua cama, sempre desarrumada. Ah, como era bom deitar numa cama sem medo de desfazê-la! Você nunca se importou com os meus pés sujos, sempre sujos. Sinto saudade dos meus pés sujos, aqui eles não me deixam ficar descalça. Acho que eles acham que quanto menor o contato for, mais rápido a gente se cura. Talvez por isso eu ainda não possa te escrever. Sorte a minha ter um amigo da farmácia que envia minhas cartas e me deixa ser levada por elas. Acho que mês que vem já posso receber visita.

Sempre sua,
Delicadeza.