Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Primeira folha



Tudo começou a partir de uma interrogação. E de uma planta. Depois de muito tempo, Bárbara finalmente resolveu mudar os móveis de lugar. Como costumava quando criança, até fez um esboço antes de onde cada coisinha se encaixaria em seu espaço já não tão frequentado, agora sendo apenas lugar de repouso, ou de ressaca. Ao mover a mesinha de cabeceira, logo deu de cara com um caminho, uma longa estradinha de cupins, que dava direto ao guarda-roupa, onde, retirando de imediato as gavetas, havia uma comunidade inteira deles a corroer papéis velhos e sacolas, roupas e fotos antigas que ela guardava uma a uma como lembrança de algum momento que considerava especial em sua vida. O problema é que praticamente todos os momentos eram especiais, cada dia que passava, dentro ou fora de casa, lhe parecia uma memória a ser guardava em qualquer espaço vago que ainda sobrava em seu quarto. Lembranças que agora, dia após dia, estavam sendo devoradas pelos cupins. Algumas coisas, tomando mesmo o sentido mais abrangente de “coisa”, simplesmente não podem permanecer estáticas. Livros, fotografias, brinquedos, chaveiros, pessoas, sentimentos, deixando-os guardados em qualquer lugar, por mais seguro que seja, um dia correm o risco de serem tomados por pragas como essa, que pouco a pouco destruía cada memória de Bárbara. É preciso mudar os móveis de lugar, revirar as gavetas, tirar o mofo das roupas, em dias de chuva, principalmente. Muitas pessoas, assim como ela, acreditam que guardar as coisas num lugar seco basta para dá-las a eternidade que precisam. É uma pena que Bárbara não se lembrou dos cupins, quase perdeu a fotografia inteira de sua formatura. Essas pragas aparecem onde menos esperamos e, por vezes, veneno algum impede que voltem ao mesmo lugar. Bárbara perdeu duas gavetas inteiras, algumas roupas não perderam o tom, mas se guardaram cheias de pequenos buracos, já os papéis, esses não puderam evitar o lixo.
Alguns dias depois, e pulverizadas de dois ou três venenos indicados pela internet, os cupins pararam de se procriar aos arredores de seu quarto, salvo alguns poucos que partiram para o quarto vizinho, o que já não lhe cabia. Dali, decidiu também dar um jeito no banheiro, mais para jogar alguns utensílios fora, agora não tão úteis assim, como algumas escovas de dente ali deixadas, ou esquecidas. Bem num dos quatro cantos, sentiu falta de algo. Nunca havia lhe tomado tal sentimento, pois também há tempos não reparava naquele lugar. Não tendo conhecimento dessa falta, não soube o que fazer, simplesmente tomou banho e saiu, em cima da hora como quase sempre saia. A ideia era encontrar uma amiga num barzinho e partir para o shopping, o ano se iniciava e quase tudo estava em liquidação, não que fosse assim tão consumista, muito pelo contrário. Precisava de algumas coisas desde o ano anterior e esperou que as festas insanas de fim de ano passassem, pois tudo ficava mais pacífico e barato. O barzinho, porém, ficou para depois. Não aproveitou para comprar novos móveis, os seus ajeitaria ela mesma com um pouco de cola, prego e madeira. Passando pela floricultura, onde nunca antes sequer encarou por mais de cinco segundos, veio o estalo que precisava para aquele canto do banheiro. Sim, talvez alguma planta, não com flores, simplesmente planta, nem tão colorida, apenas as mais puras folhas verdes. Essa não encontrou ali, também não quis ir à outra floricultura, aproveitou a viagem e levou uma que estava também num canto não muito visível da lojinha. Nem sequer perguntou o nome. Decidira depois dos cupins não se apegar tanto a muitas coisas, além do momento em si e dos próximos que poderiam vir a partir deles. O que esperava depois daquela plantinha? Talvez mais vida num lugar tão estático, ou talvez logo folhas secas a negá-lo.
Ceiça estranhou a atitude da amiga: – Primeiro entra numa floricultura e agora compra uma planta! Me diz, o que te aconteceu de ontem pra hoje? –, e encarou até que viesse uma resposta, mas antes de qualquer balbucio da amiga, arriscou: – Foi um péssimo término, até sem sentido nenhum, cada um pro seu lado, mas você aqui de um certo jeito tão encantada, começo a duvidar do mundo. Quase em transe, Bárbara apenas sorriu, balançou a cabeça e disse: – Ah, tanta coisa mudou mais fora do que dentro de mim, que não sei se comprei essa plantinha pelo ajuste de salário ou se porque me sinto mais delicada a cada dia que passo naquela casa mais sozinha do que acompanhada. Falar nisso, você deveria ir lá mais vezes, sinto falta das nossas conversas sóbrias, dos filmes e das discussões fervorosas por desavenças tão banais. Mas, por ora, aproveitando essa sexta, já marquei com o pessoal lá no barzinho, voltar pra casa só com essas compras é que não volto, (tenho conseguido me virar bem sem ele. Tenho até estado bem, já não encho os outros com meus lamentos, há tempos, apesar de ainda me pegar chorando sozinha. Talvez nem me escutem mais, ou talvez eu que não diga mais nada com nada mesmo. Os amores continuam passando por aqui, mas agora como fantasmas vigilantes à espera da minha, enfim, desistência e rendição. A verdade é que não morro mais por amor, que fiquem a me rondar e fazer companhia, mas não morro. Pois morrer é virar do avesso, é a certeza de nunca mais poder tocá-lo com as mãos da primeira vez, aquelas que se entrelaçaram, me deixando segura ao atravessar a rua, me querendo pulsante do outro lado, por quanto tempo, por onde fosse e como desse. Vivendo por amor, cercada pelo que poderia ser, atormentada por fantasmas de possibilidades e pelo amor que um dia foi dele, tenho conseguido até me virar bem. Já não me incomoda ele ter me virado as costas), não hoje. A amiga, reconhecendo Bárbara, deu uma gargalhada: – Agora sim, Bárbara, já estava ficando preocupada.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Escalada

E não estamos todos no fundo de um mesmo, imenso e profundo poço onde alguns decidem cavar mais para encontrar outras saídas?