Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

segunda-feira, 23 de maio de 2011

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Quase nada

Deixo meu corpo livre, ele faz de si o que quiser agora. Não, não tenho a mínima vontade de me perder numa boca qualquer. Nem de me encontrar. Na verdade, ultimamente, não tenho tido vontade de nada, não sei, coisa de momento talvez. Mas tanto faz se passar ou não. Só sei que não tenho vontades. Só sei que desde que te encontrei, não tive mais vontade de me perder nem de me encontrar, nada, além de te ver, ter por perto. Quase impossível. Quase viver. É isso. Nessas noites, tenho me mantido distante de tudo, pensando que talvez você se aproximasse, mas foi em vão. Continuo longe, por escolha minha, por falta de vontade ou por vontade demais. Queria que adiantasse de algo. Ou que simplesmente me servisse. Mais uma vez me encontro sendo sem ser, difícil, essência refletida, espelho sem reflexo, tão vazio assim, pena, eu sem você. E você sem mim?

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Meio por inteiro

J. B.

Aquele perfume que ficou em minhas mãos mal pode dissipar-se por ai, pois o contive dentro do carro, vidros fechados, coração quase parado. Ao menos tive tempo dessa vez de vê-la entrando em casa, indo embora, não pra sempre, nem por pouco tempo, apenas me deixando mais uma vez. Vestido mais curto que de costume, talvez por provocação, boa ou não, vivíamos assim de provocar mesmo, short curto, perfume forte, cabelo meio amarrado, meio olhar, meio paixão, meio amor, meio proibido, ou indevido, meio ela, eu e meio. Nós duas, três anos. Casada, quem diria! - É, casei. - Simplesmente, da noite pro dia. - Não acredito! - E acreditei, entendi, aceitei. Outra vez, aliás, pois outras dessa ela já me aprontou, mais amenas de certo, mas tão súbito quanto. E o que fazer, nunca soube, só fazia. Sim, vamos, sim, espero, sim, não, sim, sim, o que você quiser, porque, afinal, mais vale esse sentir subentendido, esse abstrato do “talvez seja exatamente isso” ou “não sei bem o que é”. Colocamos em dúvida qualquer certeza e passamos a viver juntas, separadas, numa cumplicidade sem testemunhas nem réus, vivendo o estar. E estava bom assim, como agora também está. Amanhã? Quem sabe. O que sinto é pra ser sentido agora. Ela é o agora, o exato momento, o ponto entre a vírgula e ponto final, a ligação quando estou indo embora, o encontro imediato, o proveito dos últimos minutos, da última gota, o que tem de mais importante e que deixam por aí por ter demais a qualquer hora e em qualquer quantidade. Talvez só eu soubesse disso e só ela soubesse que eu sabia, seria sapiência demais pra passar a ser. Por isso ficávamos no estar, enfim.

Estávamos, então, nesse dia a procurar por nós duas, até que nos achamos no fim da tarde. - Cinema? - Fomos. Filme até legal, mas sem muito aquele agora que esperávamos, era pra outro tempo, não nos importava qual, o que importava era sabê-lo e mudar o caminho, voltar os ponteiros e procurar o agora do agora certo. Rodamos um pouco a cidade nessa busca, relógio parado, tempo passando. - Entra aqui! - Entrei. Meio pequeno, meio aconchegante, meio diferente do que tínhamos imaginado. - Um vinho pra esquentar. - E sorriu, meio ingênua, meio insinuante, como só ela sorria. Isso sempre me irritava. Não porque eu sentia aquele sorriso esnobe dizendo pra mim que ela estava perto e longe ao mesmo tempo, pois não nos tocávamos tanto, era uma relação meio egocêntrica, mas porque a vontade que eu tinha era de pegá-la em meus braços e tornarmos ser, era a contradição que aquele sorriso me provocava. Afinal, não tinha motivos pra mudar tudo se tudo era pra estar como estava. Mover qualquer ponto era complicar a balança, desequilibrar, perder o controle. Ora veja, duas descontroladas saindo do meio pro inteiro, esse inteiro em falta que é o amor. Não, não podia acontecer. A vontade que tive foi de sair dali, daquelas quatro paredes, transformar o agora em antes ou depois, deixar o vinho aberto pela metade, deixar tudo pela metade, como sempre. Mas não o fiz. - Teu sorriso me incomoda como nenhum outro jamais me incomodou, ele é cínico demais, incoerente demais, absurdo demais, lindo demais. - Foi então que percebi, eu já estava nas reticências. Não contive o impulso quando abracei forte aquela mulher junto a uma das paredes, como nunca, acariciei, beijei, amei. Redesenhei cada traço dela com meus dedos, os cabelos, os olhos, a boca, o pescoço, os seios, o abdômen, as coxas, os pés, o sexo, a respiração, os suspiros, a transpiração, o êxtase, o suor, o sono e os sonhos. Estávamos por inteiro numa cama, num corpo e numa alma só. Não era mais ela, nem era mais eu, éramos nós. Éramos um agora de ontem e de amanhã, até a madrugada chegar.

Adormecida num quarto desconhecido, acordou-se meio atordoada, fora do tempo, à procura de mim ou dele, atrasada para alguma coisa no meio da noite, preocupada com qualquer coisa. Havíamos perdido o nosso agora e precisávamos encontrá-lo antes de sair dali ou correr o risco de nunca mais saber de nada sobre a gente. Talvez fosse isso. Pude acalmá-la num silêncio, meio calada, quase soluçando. O agora estava voltando na constância dos gestos e das falas. - Vamos embora, acordo cedo amanhã. - E voltamos confundindo o tempo, apesar de sabermos que era noite, parecia quase amanhecer, mas também parecia quase anoitecer. No rádio, uma música pra inibir a ausência que aumentava cada vez mais que nos aproximávamos da casa dela, deles. Eu estava meio com sono e ela meio cansada. Parei quase em frente ao portão e ela se foi deixando um abraço e um beijo no canto da boca. Fixei por alguns instantes aquele desfile, aquele perfume e aquela mulher, depois descartei, mais uma vez. Abri os vidros e também fui embora. Ao chegar em casa, ainda que pisando manso, o acordei, mas meio sonolento e acostumado com minhas noites adentro de trabalho, voltou a dormir. - Boa noite, meu bem. E dormimos, abraçados, como sempre.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Cortesia

Moça de sorriso fácil, um fato breve,
saia leve, mas comprida,
decote ligeiramente provocante
ai, a imaginação alheia!
ai de mim!

Os cabelos enrolados uns nos outros,
curtos, longos, no meio-fio
e ela entre fitas de cetim, enceradas e de lã,
búzios, pedras cristalinas.
Seria uma baiana artesã?

Um sumiço pra despertar saudade
uma taça pra incitar desejo
a brincadeira pra atiçar o beijo.

Já vi dessas passando por ai
saia, cabelo e decote...
os olhos, desses já vi cem
O que justo essa tem?

Ah, morena
dança de ladinho
como quem não quer nada
como quem comeu tudo
Se é Ana, serena
Mas também é Luiza,
problema.

Eu que não faço questão
caneta, papel, jamais!
nesse fogo eu não ponho a mão
nem penso, nem olho
Desgosto de quem só provoca
quero quem me arrepia.

Mas olha que ironia!
fui fazer conto dessa criatura
e virou poesia.

domingo, 15 de maio de 2011

Vitral

O que eu vejo por ai não são pessoas, são representações. Sei que tudo nesse mundo é isso mesmo, mas as pessoas assim se tornam duas vezes mais matéria, menos alma. Vejo cascas, não casas, atrás de um copo de bebida, de um livro, de fones de ouvido, carros, roupas, tintas, quadros. Fazem de si uma obra barata, comum. E por detrás dessas pessoas, vejo você, escondida, envergonhada por ser tão crua, por não estar inserida nesse mosaico. Terapia, clínica, entorpecentes, porque só há tratamento pro que está exposto. E você está. Em carne viva, sensível, adoecida do que deveria ser cura. O teu reflexo é em si mesma, porque você é vidro, não espelho. Denso, transparente, rígido, frágil, cortante. O espelho tem identidade? Não queira ser espelho. Não queria ser eu. Estou numa representação, palco mofado, público pobre, luz, câmera e ação, mas na minha não há tantas falas, espero que sinta meus apelos nos meus gestos apáticos, é que não sei mais encenar, falta eu, falta essência que aos poucos foi se perdendo em tantas estreias. Vê? Nem pierrot, nem arlequim. E você querendo estar no palco... Não precisa subir lá, não precisa aprender a representar. O que eu vejo por aí não são pessoas. E vejo você também, com medo de machucá-las por não poder refletir a vaidade delas.

domingo, 8 de maio de 2011

Acabamento.

Você vai me abandonar e eu nada posso fazer para impedir. Você é meu único laço, cordão umbilical, ponte entre o aqui de dentro e o lá de fora. Te vejo perdendo-se todos os dias entre essas coisas vivas onde não estou. Tenho medo de, dia após dia, cada vez mais não estar no que você vê. E tanto tempo terá passado, depois, que tudo se tornará cotidiano e a minha ausência não terá nenhuma importância. Serei apenas memória, alívio, enquanto agora sou uma planta carnívora exigindo a cada dia uma gota de sangue seu para manter-se viva. Você rasga devagar o seu pulso com as unhas para que eu possa beber. Mas um dia será demasiado esforço, excessiva dor, e você esquecerá como se esquece um compromisso sem muita importância. Uma fruta mordida apodrecendo em silêncio no quarto.

Até que eu me torne uma saudade artificial de quem encontra alguém na rua, abraça forte, pergunta como tá, diz que morre de saudade, vamos marcar alguma coisa, e vai embora antes mesmo de ouvir qualquer coisa que o outro tenha a dizer. Mas você vai ouvir o que eu tenho a dizer, você tem a etiqueta da boa educação, aquela que quase perde a essência por ser etiquetada demais, vai ouvir, vai sorrir, vai até passar um tempo comigo, ficar feliz ao encontrar algum amigo e ter o que dizer, que me encontrou em algum lugar, e depois me esquecer nas entrelinhas de outra conversa bem etiquetada. Talvez antes de dormir, pense mim, pense na gente, no quanto foi bom, no quanto foi ruim, no quanto sofrimento, e no quanto alívio, tudo passou, nem lembrança nem vontade, só uma saudade artificial que não faz a mínima questão de ser morta. Nem viva.

sábado, 7 de maio de 2011

Dos utópicos amores platônicos

para MM.

Você e Quintana
os passarinhos, as estrelas
os impossíveis e suas belezas
as borboletas! Ah, as borboletas, as flores
A lagartinha num casulo, você
Tua melancolia,
que ele diz romântica
A lua,
que tu dizes balão
Eu e você
O amor-amigo
nem o sim nem o não
só o toque delicado das mãos
E um talvez...

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Ela que nem...

Quando estava chegando em casa, chovia uma chuva fina, leve, quase não molhava, quase nem chovia. Eu olhava pro seu céu e via aquelas gotinhas sutis caindo, tímidas, sem querer tocar nada, nem a mim. Como ela. Ela, que me cai pouco, que é discreta, mas tão sincera, que não consegue se dar a mim, porque afinal não é pra mim, nem eu. Perto de casa, quase chegando, não tive pressa, não me molharia, só corri quando lembrei que poderia ter algo na caixinha de mensagens, talvez dela, reclamando do meu atraso, ou do meu descaso, que nem tenho noção. E ela tem noção? Claro que não. Pois minto, ou escondo, ou ela não vê, disfarces, mil faces. Só sei que cheguei em casa, que vim numa chuva miúda, e tive vontade de tê-la mais perto, tão mais perto do que de costume, e não a tive, pra variar, e não a terei, como sempre. Porque tudo o que foi meu nunca foi meu. E, sei lá, nunca nada é nosso mesmo. Essa coisa toda de ninguém ser de ninguém. E meu, menos ainda. Ela então...

terça-feira, 3 de maio de 2011

Do outro

Sei que preciso parar com isso de começar as coisas e não terminar, parar no meio ou ainda mesmo beirando os primeiros passos ou quase fim. Deve ser coisa de signo isso, não sei, ou tanto faz. Queria mesmo pôr fim numas coisinhas, começo, meio e fim, nada de recomeços, só se for pra outros fins, enfim. Sei que preciso chegar mais vezes em mais pontos finais, sair dessas eternas reticências e vírgulas, passar essas páginas, terminar os livros. Mas ai, me diz, então, o que fica depois do final? Eu sei que é um ciclo, uma construção, algo de adição, mas e ai, é isso mesmo de eu-começo, eu-meio e eu-fim?