Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Meio por inteiro

J. B.

Aquele perfume que ficou em minhas mãos mal pode dissipar-se por ai, pois o contive dentro do carro, vidros fechados, coração quase parado. Ao menos tive tempo dessa vez de vê-la entrando em casa, indo embora, não pra sempre, nem por pouco tempo, apenas me deixando mais uma vez. Vestido mais curto que de costume, talvez por provocação, boa ou não, vivíamos assim de provocar mesmo, short curto, perfume forte, cabelo meio amarrado, meio olhar, meio paixão, meio amor, meio proibido, ou indevido, meio ela, eu e meio. Nós duas, três anos. Casada, quem diria! - É, casei. - Simplesmente, da noite pro dia. - Não acredito! - E acreditei, entendi, aceitei. Outra vez, aliás, pois outras dessa ela já me aprontou, mais amenas de certo, mas tão súbito quanto. E o que fazer, nunca soube, só fazia. Sim, vamos, sim, espero, sim, não, sim, sim, o que você quiser, porque, afinal, mais vale esse sentir subentendido, esse abstrato do “talvez seja exatamente isso” ou “não sei bem o que é”. Colocamos em dúvida qualquer certeza e passamos a viver juntas, separadas, numa cumplicidade sem testemunhas nem réus, vivendo o estar. E estava bom assim, como agora também está. Amanhã? Quem sabe. O que sinto é pra ser sentido agora. Ela é o agora, o exato momento, o ponto entre a vírgula e ponto final, a ligação quando estou indo embora, o encontro imediato, o proveito dos últimos minutos, da última gota, o que tem de mais importante e que deixam por aí por ter demais a qualquer hora e em qualquer quantidade. Talvez só eu soubesse disso e só ela soubesse que eu sabia, seria sapiência demais pra passar a ser. Por isso ficávamos no estar, enfim.

Estávamos, então, nesse dia a procurar por nós duas, até que nos achamos no fim da tarde. - Cinema? - Fomos. Filme até legal, mas sem muito aquele agora que esperávamos, era pra outro tempo, não nos importava qual, o que importava era sabê-lo e mudar o caminho, voltar os ponteiros e procurar o agora do agora certo. Rodamos um pouco a cidade nessa busca, relógio parado, tempo passando. - Entra aqui! - Entrei. Meio pequeno, meio aconchegante, meio diferente do que tínhamos imaginado. - Um vinho pra esquentar. - E sorriu, meio ingênua, meio insinuante, como só ela sorria. Isso sempre me irritava. Não porque eu sentia aquele sorriso esnobe dizendo pra mim que ela estava perto e longe ao mesmo tempo, pois não nos tocávamos tanto, era uma relação meio egocêntrica, mas porque a vontade que eu tinha era de pegá-la em meus braços e tornarmos ser, era a contradição que aquele sorriso me provocava. Afinal, não tinha motivos pra mudar tudo se tudo era pra estar como estava. Mover qualquer ponto era complicar a balança, desequilibrar, perder o controle. Ora veja, duas descontroladas saindo do meio pro inteiro, esse inteiro em falta que é o amor. Não, não podia acontecer. A vontade que tive foi de sair dali, daquelas quatro paredes, transformar o agora em antes ou depois, deixar o vinho aberto pela metade, deixar tudo pela metade, como sempre. Mas não o fiz. - Teu sorriso me incomoda como nenhum outro jamais me incomodou, ele é cínico demais, incoerente demais, absurdo demais, lindo demais. - Foi então que percebi, eu já estava nas reticências. Não contive o impulso quando abracei forte aquela mulher junto a uma das paredes, como nunca, acariciei, beijei, amei. Redesenhei cada traço dela com meus dedos, os cabelos, os olhos, a boca, o pescoço, os seios, o abdômen, as coxas, os pés, o sexo, a respiração, os suspiros, a transpiração, o êxtase, o suor, o sono e os sonhos. Estávamos por inteiro numa cama, num corpo e numa alma só. Não era mais ela, nem era mais eu, éramos nós. Éramos um agora de ontem e de amanhã, até a madrugada chegar.

Adormecida num quarto desconhecido, acordou-se meio atordoada, fora do tempo, à procura de mim ou dele, atrasada para alguma coisa no meio da noite, preocupada com qualquer coisa. Havíamos perdido o nosso agora e precisávamos encontrá-lo antes de sair dali ou correr o risco de nunca mais saber de nada sobre a gente. Talvez fosse isso. Pude acalmá-la num silêncio, meio calada, quase soluçando. O agora estava voltando na constância dos gestos e das falas. - Vamos embora, acordo cedo amanhã. - E voltamos confundindo o tempo, apesar de sabermos que era noite, parecia quase amanhecer, mas também parecia quase anoitecer. No rádio, uma música pra inibir a ausência que aumentava cada vez mais que nos aproximávamos da casa dela, deles. Eu estava meio com sono e ela meio cansada. Parei quase em frente ao portão e ela se foi deixando um abraço e um beijo no canto da boca. Fixei por alguns instantes aquele desfile, aquele perfume e aquela mulher, depois descartei, mais uma vez. Abri os vidros e também fui embora. Ao chegar em casa, ainda que pisando manso, o acordei, mas meio sonolento e acostumado com minhas noites adentro de trabalho, voltou a dormir. - Boa noite, meu bem. E dormimos, abraçados, como sempre.

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