Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

domingo, 26 de setembro de 2010

Afetividade

Bolhas. Esses sentimentos fluem dentro de bolhas, por vezes sendo elas próprias uma sensação. Em alguns momentos, você sente a necessidade de acobertar e se camufla numa grande bolha protetora, e densa. Mas tem aquelas horas em que você quer estar apenas dentro dela, sendo levado pelos ventos pra qualquer lugar, sem medo de tocar em nada, já que somente ela dissolveria. O problema é que os sentimentos são bolhas mutantes, se transformando quando bem entendem em avesso se precisarem. A gente não. Somos bolhas ou estamos nela e a mudança leva tempo. É um processo sair de uma bolha construída pra você e virar essa mesma bolha pra outra pessoa. Sentimos a necessidade de ser uma bolha, mas também queremos estar dentro de uma. Surge então o dilema do peso das coisas, medindo o que vale mais a pena, e o paradoxo do tempo, mudando constantemente as nossas vontades. Nos transformamos, por fim, num vento qualquer, levando e sendo levado por tudo, esperando que num sopro ingênuo surja uma bolha leve e levada.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Leveza... Leve-az!

"Nuvens... Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstracta e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também. Nuvens... Que desassossego se sinto, que desconforto se penso, que inutilidade se quero! Nuvens... Estão passando sempre, umas muito grandes, parecendo, porque as casas não deixam ver se são menos grandes que parecem, que vão a tomar todo o céu; outras de tamanho incerto, podendo ser duas juntas ou uma que se vai partir em duas, sem sentido no ar alto contra o céu fatigado; outras ainda, pequenas, parecendo brinquedos de poderosas coisas, bolas irregulares de um jogo absurdo, só para um lado, num grande isolamento, frias.

Nuvens... Interrogo-me e desconheço-me. Nada tenho feito de útil nem farei de justificável. Tenho gasto a parte da vida que não perdi em interpretar confusamente coisa nenhuma, fazendo versos em prosa às sensações intransmissíveis com que torno meu o universo incógnito. Estou farto de mim, objectiva e subjectivamente. Estou farto de tudo, e do tudo de tudo. Nuvens... São tudo, desmanchamentos do alto, coisas hoje só elas reais entre a terra nula e o céu que não existe; farrapos indescritíveis do tédio que lhes imponho; névoa condensada em ameaças de cor ausente; algodões de rama sujos de um hospital sem paredes. Nuvens... São como eu, uma passagem desfeita entre o céu e a terra, ao sabor de um impulso invisível, trovejando ou não trovejando, alegrando brancas ou escurecendo negras, ficções do intervalo e do descaminho, longe do ruído da terra e sem ter o silêncio do céu. Nuvens... Continuam passando, continuam sempre passando, passarão sempre continuando, num enrolamento descontínuo de meadas baças, num alongamento difuso de falso céu desfeito."


Texto de Fernando Pessoa

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Incompleto

Antes mesmo de perder o equilíbrio, já estava desequilibrada. Os sons, a fumaça, os bêbados, todos, tudo empurrando pra fora um corpo que não estava mais ali, mas sugando a mente de quem permanecia estático, à espera de alguma coisa, da hora certa ou errada, tinha algo a esperar. Longe e perto, sendo tocada e rejeitada, se mantinha no mesmo lugar, aflita, calma, uma confusão prevendo uma contradição. Abraçava os braços dos desesperados e não conseguia lhe deixar tocar o rosto uma lágrima, era a agonia da noite - a vontade de chorar nos ombros de quem repulsava cada vez mais. Mas os outros choravam por ela, como se sua dor ressoasse por todo o ambiente e a livrasse daquele fardo ao mesmo tempo em que aumentasse, um balão cheio de ar. Não fazia o menor sentido estar ali, sóbria, embora fizesse todo o sentido do mundo.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Dito pelo não dito.

Procurei à noite inteira músicas e versos antigos que traduzissem o agora, ainda estou procurando, ouvindo, lendo, planando pelas superfícies e sendo recolhida para as bordas. É que não há o que me diga o que há, só há o que houve, tudo circundado por restos tão persistentes quanto necessários, impregnado. Esses escritos se vão pelos tempos arrastando o que vier pela frente, selecionando um qualquer intenso, como um imã que atrai qualquer coisa que possa ser atraída, e se constituem um qualquer cheio de significações para qualquer um. Foi um resgate madrugada adentro translaçando sono e insônia, não sei se adormeci, só sei que acordei pela manhã mais cedo que o de costume e levantei, carreguei a casa vazia com meus passos sonolentos de quem nunca precisou dormir na vida e tombei no sofá de frente ao jardim de inverno. O céu azul estava nostálgico, não num sentido ruim ou bom, apenas com algum sentido, uma nostalgia. Tive certeza então: eu estava acontecendo. Nos últimos anos, não tantos assim, mas o suficiente para ter uma entonação de relevante importância atemporal, estive sendo, fui essencialmente eu, traduzindo tudo o que quisesse e pudesse onde fosse possível ser escrito. Agora, as palavras parecem me fugir. Não tenho necessidade de resgatá-las, deixo-as livres compondo meus dias noutras palavras. É isso o acontecer, esse estar, esse constituir, preencher o tempo e não o espaço, porque ser impede que se esteja, provocando uma enorme necessidade de invadir o espaço com qualquer coisa que possa ocupar. Como estou acontecendo, não encontro mais explicação nem inspiração para traduções, pois estou por mim mesma traduzindo. Entendendo isso, pude conter o início de um desespero qualquer que me forçasse a voltar a ser e me permiti a simplesmente acontecer, jogando pro alto todo o sentido que construi quando aconteci sendo. Algumas pessoas me fazem ser. Outras me fazem acontecer. Eu, me faço duas ou mais, e quando sozinha acabo retornando à minha essência e traduzindo os espaços que pude ocupar e o tempo que pude perder.

Entre o ontem e o hoje, sendo ou estando, estou querendo o amanhã.