Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Making of

Procuro em teu rosto delicadamente severo algum traço de mentira, mas não consigo encontrar. Você passa pela porta, para e sorri como se eu fosse a única ali na sala e eu acredito, porque você me deixa cega, não vejo que logo atrás tem outras pessoas e que dentre elas, tem as que te conhecem tão mais do que eu, ou reconhecem outras faces, e me dizem que não é você a que é pra mim. Olho bem e não consigo mesmo ver traços de mentira, mas posso perceber face sobre face disfarçando qualquer rastro no sorriso da pessoa que um dia se pôs tão frágil diante dos meus braços já tão cansados, suplicando cuidados, desabafando desilusões. E eu me perco entre algum desses rostos, não sei mais quem sou nem o que sinto, só me pego pensando em você como se acreditasse em cada palavra que ecoa nas minhas lembranças e desejando que esteja comigo outra vez, segurando a face que me mostrou, tentando a todo custo mantê-la fixada ali pra não ver os traços que tanto dizem por ai. Acredito sim que você seja várias, pois até sempre convivi com isso, você com tantos outros e comigo. Mas não posso acreditar que, dessas várias, a única pela qual me apaixonei seja a mentira mais reluzente, a que não cabe em mim, se um dia me foi por tão completa. Leio o que você escreve, ouço o que você diz, procuro em cada linha algum rastro, coisa qualquer que me acorde e diga que não é mais a minha verdade, mas não, não encontro, nem você nem eu, só uma jura acobertando todo o resto e dando corda no relógio até marcar a hora certa, trezentos e sessenta e cinco faces e um ato por detrás das cortinas.

domingo, 12 de junho de 2011

Manual do bom cidadão

Me sinto segura no meu bairro quando vou comprar alguma coisa pro almoço, na minha cidade quando quero me distrair um pouco, no meu estado quando tenho vontade de conhecer outras praias, no meu país quando pretendo explorar outros climas e no meu planeta quando quero vivenciar outras culturas. Me sinto muito segura quando quero fazer qualquer coisa porque desde pequena aprendi a ser boa gente e boa gente não tem nada a temer. Se dirijo meu carro no limite permitido, uso o cinto e trato bem o fiscal de trânsito, não levo multa. Se saio de casa bem vestida, sem essas roupas vulgares que sensualizam os outros, não sou assediada. Se chego em casa antes da meia-noite ou ando em lugares bem aparentáveis, não corro o risco de ser assaltada. Se estudo, em vez de perder meu tempo pelas ruas, não passo necessidades nem fico passível a maus tratos. Porque, acima de tudo, a gente tem uma lei que contempla o bom cidadão e uma polícia digna que nos protege desses marginais que beiram às calçadas ameaçando a paz das nossas consciências. Me sinto tão segura que fico de bem com essa vida bem delineada e acho até estranho como as pessoas não conseguem viver assim como eu, decentemente. É só estudar e se comportar, não questionar, não ser pobre, porque ser pobre é uma escolha, lógico, não ser rude, indignado, rebelde, não ser mulher vulgar, não ser homem desleixado. Me surpreendo quando abrem a boca pra falar mal dos nossos políticos, a gente que vota neles, a gente sabe que não tem jeito, a gente não pode fazer nada, então pra que ficar falando, criticando, indo atrás de tomar satisfação? E quando falam dos policiais então, ai que fico pasma. Como assim se indignar com eles? Eles estão nas ruas nos protegendo dia e noite, mais à noite, abordam bandidos, revistam suspeitos, ameaçam e batem nos marginais, intimidam potenciais perturbadores da divina paz cidadã, mantêm a boa vizinhança, rondam nossas mentes e inibem questionamentos que possam nos tirar o sono da beleza. Realmente, não entendo esse povo que fala mal do nosso sistema. Gente, é só estudar e ser um bom cidadão, que tudo se resolve: o problema da fome, da miséria, do desemprego, da crise ambiental, do aquecimento global, da violência, do assédio... Caso contrário, a culpa é de quem opta pelo caminho mais difícil.

Um sorvete, um café, um amor

para inaê.

– A gente marca qualquer dia um sorvete, um café, um amor.

Você veio, nem tão de repente assim, se aproximou delicadamente, como quem não quer nada, como você faz. E desse jeito, como quem não quer nada, me deu tudo. Sorrisos e lágrimas. Um filme e um sorvete, uma bela tarde de sexta-feira, um amigo daqueles que a gente abre bem a boca pra dizer A-M e quase confunde com amor I-G-O de tão belo que se rodeia aquele sentimento. Você o trouxe pra mim também. Me deu tudo assim de braços abertos e sorrisão no rosto, porque você tem um sorriso que não cabe em ti, mas que também não cai. Meus olhos, você abriu, e depois estendeu diante de mim uma estrada nem tão florida assim, me deu sementes e me acompanhou equilibrando a água nas mãos. Vieram as chuvas, os sóis e as flores. Também vieram as colheitas, levaram algumas das rosas mais bonitas, presentes, desculpas, cortejos. Uma casinha delicada ao canto, frágil a qualquer ventania, um café pra esquentar as noites e amanhecer os dias. Você não colocava as lâmpadas, mas sempre as trocava quando queimavam, não trazia cadeiras, trazia toalhas e almofadas pra sentarmos no chão embaixo de alguma árvore. Um amor, você trouxe amores também, meu coração reconhecia cada um, porque você me ensinou a reconhecê-los, assim como tratá-los, cuidá-los, amá-los. Você me trouxe tudo o que eu precisava. Suspiros, balões, aquarela, caderno de desenho, poesias. Questionamentos e revoluções, despertou ideologias, inquietações, movimento. Tudo o que eu era, me trouxe. E eu não percebi. Porque a única coisa que eu queria era te trazer pra mim e isso também não me deixava ver que você já estava aqui. Junto a tudo o que você trouxe, veio o medo de te perder, que não dá pra separar noutra caixa e deixar num porão bem escondida pra ninguém abrir. Esse medo que a gente sente de perder alguém fica exposto como um quadro bem na entrada da casa que alguns param pra admirar e outros nem percebem. Foi bem assim, eu não tinha nada e você trouxe tudo, e então eu quis agarrar e guardar tudo de uma vez dentro da minha mala e ir pra bem longe pra ninguém tomar de mim. Mas você não cabia ali e eu tive que escolher. Então eu te coloquei na mala junto com tudo o que havia dentro dela e não a fechei, nem fui embora. Só que eu fui juntando bugigangas que encontrava pela rua, queria guardar também ali dentro, eram coisas que combinavam com o que você havia me dado e eu queria te mostrar que eu também podia te dar algumas coisas. Mas não coube tanto e você teve que ficar de fora. Ficaram na mala nossas coisas feito um mosaico. Eu só via a bagunça que você deixou ao sair, quis jogar tudo no lixo ou guardar no fundo de um armário pra nunca ter que arrumar. Passava a maioria do tempo fora também, pensei em ir embora e simplesmente deixar tudo pra trás, sorvete, café, amor. Só depois de borrar todo o caminho, pisar em todas as flores e rasgar todos os desenhos, pude ver, bem lá no fundo da mala o que você me deixou. Sorvete no fim da tarde com sorrisos que você me inspirou a conquistar. Café da manhã na cama entre os sorrisos mais lindos que você me ajudou a reconhecer. E a promessa de um amor entre sorrisos de cuidado, compreensão e respeito que você me ensinou a ter. Me deixou tudo de bom, porque todo o tempo só queria me dar o que era bom, agora eu sei.

sábado, 11 de junho de 2011

Você recebeu uma nova mensagem

 para mayara moreira.

É como receber uma carta, mas sem muito ter o que andar.  Abro a página do e-mail, caixa de entrada e está ali, em negrito, entre tantas outras também em negrito, a mensagem dela. Às vezes, abro primeiro, vou correndo junto ao mouse, feito ratinho mesmo fugindo com o queijo na boca atrás de qualquer buraco que o esconda por algum tempo, tempo em que tudo se acalme pra então ir pra casa. Outras vezes, vou abrindo e-mail por e-mail, mesmo sabendo que são propagandas ou nada que me interesse tanto, fazendo hora até que o relógio marque a hora exata de clicar naquele que se sobrepõe a todos os outros, vou criando expectativa, dando corda ao tempo e ao coração pra quando finalmente abrir sossegar num simples e ingênuo "oi, tá ai?". É ai, nesse exato momento, nessas exatas palavras, que tudo se parte e dá partida àquilo que eu nunca joguei antes, sem regras, peças, tabuleiro, controle. A gente conversa, a gente desabafa, a gente discute, a gente debate, a gente consola, a gente conforta. E a gente sabe que tem outros meios mais rápidos de se fazer isso, coisa de mensagem instantânea, torpedo. É só clicar ali, adicionar e feito, eu e ela numa janelinha, foto, cor, personagens. Não dá pra explicar, tão natural esse papo todo e a gente simplesmente se deixou levar pelo mais complicado. Mas o natural mesmo foi trocar palavras em outros tons, retrógrados, meu e dela. De certo é que nunca simpatizei muito com a palavra instantâneo. É algo assim que se dissolve rápido, entende? Lembro de leite em pó instantâneo, também nunca gostei muito. O integral sempre foi mais gostoso, concentrado. E esse jeito prático de fazer as coisas acaba deixando a gente despercebido, com as coisas, as pessoas. Tudo vai sendo feito às pressas, a gente mexe e mexe e mexe, nem olha as bolhinhas que se formam, a água contornando a beirada do corpo, quase maremoto, o pó se diluindo aos poucos, não ouve o barulhinho tilintante da colher batendo no vidro, mexe e toma tudo de uma vez. A gente não espera se curar de um amor, remexe outro por cima dele. A gente não tem pressa de viver, a gente tem pressa de se mostrar vivo. Os amores então vão se acumulando e se acumulando, a vida vai ficando pesada, lenta, exaustiva, e a gente vai tendo cada vez mais pressa, mas não consegue mais correr. Integral, é disso que lembro quando abro a minha caixa de e-mails e vejo ali, em negrito, o nome dela e um assunto meio vago. Eu e ela vamos nos achando de fora pra dentro, aos poucos, sem correria, a gente não tem pressa de chegar porque a gente já está lá e esse lugar não é uma caixa compacta e determinada, mas um fio por onde passa toda a energia, de ponta a ponta. Não tem atropelos nem escorregões, nem acúmulos ou barreiras. Nos jogamos pelo espaço e vamos tecendo, linha por linha, uma teia que quando menos esperamos estamos presas nela, rolando de um lado pro outro, totalmente seguras. Quando leio o que ela escreve ali, e não numa janelinha suspensa dentre tantas outras, sinto aquilo sendo fixado em mim, como os anexos nos e-mails, alguns desenhos mal traçados, algumas graças que só ela tem. O desenrolar das palavras criam frases e delas vêm os textos. E dos textos, vem a gente. Das letrinhas ao corpo e à alma, numa mistura integral. Já me acostumei com a hora em que ela vem e vai embora, abro a página e fico ali olhando o momento em que vai aparecer um novo e-mail, é quase mágica, porque desce não sei de onde. E desço a página lendo toda ela, sem precisar tocar. Solto meus dedos no teclado e eles vão costurando tudo o que quero dizer, o que quero que ela ouça, mesmo com receios por estar se entregando assim tão rapidamente a alguém. E o integral nessa hora, cadê? Também não se trata do instantâneo. É que essas coisas, que são naturais, não se encaixam em tempo nem em modo nenhum, talvez ela dissesse. Aos poucos, estou me acostumando a algo novo, o espontâneo. Outro dia abri a caixinha antes do tempo dela, rebusquei em mim tantas coisas, rabisquei alguns papéis, li mensagens antigas, olhei para outros lados, e então decidi começar de outro jeito - "enviar".

terça-feira, 7 de junho de 2011

Silêncio

Ando lendo menos, me dedicando mais. Tenho andando menos também, ficado mais tempo parada, pensando e vivendo apenas o "momento presente". Tenho disparado meu coração em vão, mas jogado palavras em ouvidos que se esforçam pra me ouvir. Tem alguém que quer me ouvir. Existe quem queira parte do meu abraço. Mas você não há. E eu volto pra esse momento, em que você não há. Ele é ausente e latente. Nele, sinto saudade de alguém que também não há. Houve? Se é passado, então invento, te recrio numa forma que me fez feliz e que agora me faz sentir essas coisas. Você, que eu amo, é passado e, talvez, até futuro, é tudo aquilo que eu não posso tocar nem viver, é um platonismo quebrado como tantos outros que já tive, é uma total abstração do que já sentimos. Nesse momento, em que você não há, posso ouvir o eco do meu coração batendo dentro do meu corpo, me sinto carne viva. Posso pensar em você e tentar imaginar o que está pensando nesse momento, em que eu não sou. Posso, mas logo me deixo voltar como uma pena se deixa levar por um vendaval ao "momento presente", pois talvez você já esteja em outro presente e eu não quero esse pra mim. Então eu volto pro meu tempo, em que você não deixa de ser, mas que aprendi a estar e a ser bem mais presente, mesmo que à parte de tudo, porque você não há e ainda continuo a te buscar pelas esquinas que passo torcendo pra não te ver.

- O tempo não existe.
- O tempo existe, sim, e devora.
- Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?
- Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.
- E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.
(Silêncio)
- Mas não seria natural.
- Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.
- Natural é encontrar. Natural é perder.
- Linhas paralelas se encontram no infinito.
- O infinito não acaba. O infinito é nunca.
- Ou sempre.
(Silêncio)

Das esquinas e das correntes

Ela ia se arrastando pelas calçadas, exausta por tantas contradições da moça-high-society. A paixão veio assim de repente, como de costume, e de repente se foi deixando nela um mundo de palavras a serem ditas e de corpos a serem sentidos. Aquela moça tinha que subir, voltar pra casa e pros amigos que em comum não tinham nada, só o salto.  Ela, que andava sem causas, tinha o que do comum e por esse tinha amigos, tão comuns quanto ela, tão cheios de quê e sem salto nenhum. O primeiro encontro foi bem por acaso mesmo, nessa festa de amigos em comum, bebidas em comum, danças em comum, mas passou assim imperceptível. No outro dia, nem nome de que nem nome de quem, Marcela ou Roberta? Vai saber. Só sei que se encontraram dali a duas semanas depois e se reconheceram logo num beijo descompromissado, com pressa de passar, corredor em movimento, a festa corria e não se podia perder a noite! Nem o dia. Só que nessa euforia ficaram algumas coisas, como o número de um telefone. Ela ainda tinha algumas pendências por resolver, contas a acertar com o coração, com multas e juros por atraso ou antecipação. A outra, coração calado, talvez acolhido num canto bem escondido, não pagaria nada. Mesmo com tantos acertos e desacertos, os dedos não se recolheram por entre as mãos, braços e corpo, ligaram e, quase sem querer, conversaram sobre qualquer coisa, quase sem promessas, mas já tão promissor. Terceiro ou quarto encontro? O fato é que foi num bar, papo à meia luz, e de outros amigos por vir, só a cerveja veio. Fez-se um mal ou um bem? Foi uma noite de anistia. Foram noites de libertação e dias sob condicional, cada qual com suas correntes levando no tempo dívidas e divisões. Só sei que foi assim e ainda é, que bom que é. Ambas entrelaçadas, ambas reconstruindo muros sobre pedras demolidas, num perfeito reaproveitamento de si. Hoje, pouco sabem desses amores e paixonites antigas, mas aqui e acolá as correntes se chocam e soltam faíscas, alguns murmúrios, outras que se foram, outras que não voltaram, outras que se perderam. São felizes, estão juntas pro que der e vier. Porque as coisas do coração são assim mesmo, amor se encontra em toda esquina, paixão é que dá trabalho!

sábado, 4 de junho de 2011

Da percepção

Uma mente ébria é capaz de enxergar muita coisa,
mas só uma mente sóbria pode perceber além.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Tempo, mano velho



Todas as noites ele esperava que ela voltasse, pela manhã, ao acordar, olhava para o lado, esperando que ela estivesse ali deitada, num sonho só dela, pelas ruas, esperava encontrá-la numa esquina qualquer, pela vida, esperava que, bem lá no fundo, essa espera ainda fosse real.