Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

domingo, 30 de março de 2014

Luas cheias

As passadas largas na escada não disfarçavam a pressa daquelas pernas. Ela, ofegante. Ela, surpresa. Aquele pulso bateu tão firme na porta que ela se abriu sem qualquer receio, premeditando o conflito que aqueles corpos armariam naquele fim de tarde. Os cabelos castanhos amarrados, os óculos jogados na mesinha de canto, o suor ainda escorrendo pela testa franzida e a boca entreaberta aguardando o momento certo; a língua sedenta e inquieta passeava traiçoeira entre os dentes. Os cabelos bagunçados, os olhos confusos de um sonho distante e nenhuma curiosidade em persegui-lo e as mãos inseguras rondando o corpo tímido e nu; a boca em choque. A insatisfação e aquela curta distância iniciaram um ritual eufórico de corpos ansiosos e aparentemente virgens. Virgens de tanto desejo, como uma paixão inédita. As mãos cruzaram-se dando a impressão de uma deusa de um templo não tão distante, poligamia num par insaciável, as pernas entrelaçadas e o sangue uno. A respiração tensa, a falta de ar em busca do êxtase, da ausência total de qualquer vida comum. Exigiam a morte do corpo, a elevação, o topo da alma. Frenéticos corpos! Os dedos, demarcando espaço, invadindo territórios proibidos e delimitando aquelas áreas, percorriam sem qualquer escrúpulo a pele latejante dela, abusavam daquele terreno com total consentimento, sem qualquer rejeição. Os cabelos num só fio interligavam os gemidos imperceptíveis, um telefone sem fio ao pé do ouvido, um segredo, uma entrega. Os escudos pelo chão, as armas em mãos, uma guerra de um lado só, uma olimpíada entre lençóis e outros obstáculos. E o auge seguido, seguido, seguido por ânsia, dependência: uma noite na prisão. As luzes refletiam cada toque intenso, despertando o rei maior, anunciando um fim ou um recomeço. Mas, naquela manhã já alta, a despedida foi fria e casual, sem beijos nem abraços. Só a expectativa de um desejo agora contido, controlado, à espera de um anoitecer com a próxima lua cheia.

terça-feira, 25 de março de 2014

Carta ao amor que fica

Fixa,

finalmente. Estou indo embora dessa cidade. Já nem lembro há quanto tempo venho planejando essa despedida sem adeus, nem por quanto me vendi para ir no primeiro ônibus que me levasse o mais longe possível exatamente na hora marcada e certa. Meu tempo deixou de ser cronometrado no instante em que você disse "não". Finalmente. Prevejo todos os nossos planos do lado de lá, espelhados sem o teu reflexo, falar nisso, deixo meu espelhinho de cabeceira no mesmo cantinho, pode ficar. Do lado de lá, que nem sei ao certo onde fica, mas como há de ficar, não deixo endereço nem telefone, a garantir que você fique cá. E-mail você manda quando quiser, sem tempo de resposta, digo de antemão. Te visito sem hora marcada, me espere quando quiser, prometo. Mando cartões sem postais, para que te lembres apenas das minhas letras, outrora nunca lidas. Aliás, já guarda esta carta, como sendo a primeira, para que não te esqueças no momento presente em que desejares, se bem te conheço, em vão, ter dito "sim". Sim, estou indo embora de ti. Finalmente.

Até.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Arágua

Entre um e outro gole de cerveja 
naquele dia 
sentada à mesa 
Desnorteei um instante 
e proseei com um ser 
dos mares mais distantes 
Balbuciou qualquer coisa assim: 
- Cansei de ser fênix 
agora eu quero ser tartaruga! 

E foi-(ser).

de Natalice Garcia.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Término intrépido

O cigarro e o cinzeiro
O copo e a bebida
A mesa e o canto
O proibido e o desengano
A decisão e a despedida
Foram-se as duas
Às duas
Partidas.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Calma, alma, lama

C A L M A, foi assim, em letras de forma e com um certo ar de separação. Você estava tão bêbada naquela madrugada que nem conseguia falar, mas mesmo assim percebeu o quanto eu estava atordoada com o seu silêncio, que não era só de embriaguez, mas também de dúvida. Te tirar daquele show talvez tenha sido a pior coisa que eu tenha feito, ainda tento me arrepender, mas você sabe, arrependimentos não são do meu feitio, acho que esqueceram de me dar uma consciência meio pesada. Só me interessava te tirar dali, do próximo gole de cerveja que, cambaleante, você ainda teimava em beber. O motivo não era certo nem errado. Erro, só o meu. Foi quando te sentei em frente ao mar e fui atrás, louca, atrás de água, com gás, pra incitar vômito mesmo, o que fosse pra te livrar um pouco do peso que eu mesma havia provocado. Mas não me importava. O peso, a bebida, a água, o show, o amigo que oferecia mais e mais, a menina que te cantava mais e mais, nada. Que vomitasse tudo, depois voltasse pra casa, pra cama. Comigo ou sem mim. Calma. Até hoje, sempre que me percebo insistente, ou desistente, penso naquelas letras mal escritas na areia, totalmente ébrias, totalmente débeis. Alma. Sempre me falta quando preciso ter calma em vez de me jogar nesse jogo tosco que é o nosso amor. Lama. Que veio com toda aquela chuva, mesmo sendo verão; até onde moramos o clima é contraditório. Todos os nossos amigos ainda estão doentes, não sei se você também, já faz uma semana que não nos falamos, nem sei mais da tua temperatura. Mas eu não, não adoeci dessa vez, só a cabeça que pesa um pouco. Voltei esta tarde ao mesmo lugar em que rabiscastes a praia, buscando algum alívio: uma água, sem gás, mas longe de ser mineral. Juntei um pouco de areia e tracejei linhas que nunca trariam a leveza de uma completa e trêmula mão bêbada como a sua. C al m a. Sabe, te espero, mas não me espere mais.

domingo, 9 de março de 2014

Jogando com o diabo

UM dia inteiro dormindo, apenas o intervalo de pegar o ônibus, voltar pra casa e cair na cama de novo. Não me alimentei, não alimentei meus animais, não alimentei minha alma. Só alimentei a solidão que me perseguiu a noite anterior inteira. Quase não acreditei quando vi que hoje é domingo. Um sábado inteiro banido do meu calendário. Mas é sempre assim quando a gente espera algo de uma sexta e acontece toda merda que não esperamos. Acontece de aparecer até o diabo pra brindar com você e brincar de quem consegue cometer mais pecados. Dessa vez eu ganhei. E não tinha ninguém mais pra brincar disso, todos pegaram o primeiro caminho que os levasse pra longe dali, sequer me avisaram que estavam indo embora. Fiquei. Não corri atrás porque acho que correr atrás de quem corre de você não faz sentido nenhum. Então fiquei. Com o diabo e todos os pecados a serem cometidos. No meio da noite, até o diabo foi embora no último ônibus. Fiquei. Não dava mais pra pedir que me esperassem aqueles que disseram "vem quando tudo estiver limpo", a lama já estava até o pescoço. Ninguém gosta de limpar a sujeira dos outros, a não ser que possa jogar tudo debaixo do tapete, dia seguinte, memória apagada, está tudo de boa, sigamos novamente. Eu não. Da próxima vez, fico, mas no meu sofá e com meus próprios demônios, e não sob os dentes do próximo diabo que me jogarem como oferenda.

sábado, 1 de março de 2014

Semifechado

Aos poucos pude perceber o que esteve diante de mim durante o tempo inteiro em que estivemos juntos, o mesmo que nos manteve distantes também. Eu não fazia parte daquilo. Em meio aos sorrisos, brindes, presentes, surpresas, brigas, sempre fui um estranho, um confortavelmente adequado estranho, tão adequado que nunca me senti à parte de tudo, nem ninguém mais ali. Só agora, alguns anos depois de termos nos deixado, que me percebo: uma espiral dentro de um círculo.