Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Laço ou nó

O apego ao passado talvez não seja pelo fato de ter sido algo assim tão maravilhoso, mas simplesmente por não haver nenhum futuro, além do imediato que se rasteja a cada segundo no presente. A gente precisa ter um tempo pra conjugar: o problema é querer quase sempre o mais-que-perfeito. Como num presente, teoricamente pensado, adquirido e repassado pleno de afetos, boas intenções ou acordos de paz. Há o laço, o papel e o objeto-trato-troca. Há quem preze pelos três ou por um só, há quem guarde tudo ou jogue tudo fora no minuto seguinte. Há o que enfeita, ou prende, o que protege, ou cobre, e o que contenta, ou se contenta. O fato é que pra rasgar o papel, antes tem que desfazer o nó, talvez até se passe pelo papel sem rasgá-lo, mas o laço vai ser desfeito. Quando refeito, o papel vai ser outro, o presente também, ou nem haja mais nada, só a fita que ainda possa ser laço. Ou o laço que possa ser nó e nunca mais desatado. Corta-se.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Satisfeita apatia

Antes de tudo, obrigada por nada. Pelo brinde que você não ofereceu, pela bebida que você não compartilhou e pelo convite que você não fez. Essa ressaca que me toma vem de não sei onde, só sei que acordei assim, sem nenhuma dose sequer. Lembro-me de ter desabado e desabafado ontem, mas já não me lembro de metade das palavras que soltei, em vão, no teu ar. O desabafo se anula. O peso dobra. Quando pensei ter, finalmente, encontrado uma pergunta pra minha resposta, dei de cara com a fome de tudo o que se completa. E não há nada doce que ludibrie e disfarce essa sensação contínua que meu vazio estômago insiste em rebater. Agora fico sem respostas e sem perguntas, só com um papel preenchido a ser dado como resolvido e arquivado nos fundos de uma sala mofada. Estou gorda, não me sustento, e qualquer vento que dá me desequilibra: ando perto das paredes, olhando pro chão. Tudo dói, menos o corpo.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Três latinhas de cerveja e só

Todos já dormiam, mãe, vó, vô, tia, irmão, menos Elisa. A TV ligada à toa, passava um filme qualquer, que sequer chamava sua atenção nos momentos de tensão, o celular na mão, esquecido, só percebera que estava ali quando um toque quase imperceptível, pois assim mantinha seus ruídos ultimamente, anunciou uma mensagem. Quem seria em plena madrugada de quinta-feira, pensou, fazia tempo que ninguém a procurava nessas horas, pelo menos não no meio da semana, deve ser propaganda de operadora, demorou a checar. Aliás, ignorou aquele toque pelo tempo de lembrar que ela costumava procurá-la nas horas mais inusitadas, quando não bêbada, aflita. Quando mantinha o celular sempre por perto, o sono leve, o toque não. Recordado isso, vagarosamente apertou o celular entre as mãos, talvez desejando que não fosse, mas acreditando que era, e leu a mensagem. Era. Antes de reler e absorver o que dizia, atentou para a TV, um acidente de avião.

- Tenho três latinhas de cerveja. Posso ir ai?

Não lembrava a última vez que havia negado um pedido dela. Não se lembrava de já ter negado.

- Não.

Nem hesitou antes de responder. Nem pensou.

- Chego já.
- Não venha. Está tarde e todos já estão dormindo.
- Dez minutos.
- Não.

E o celular não deu mais sinal de insistência. Inquieta e sem saber o que viria a seguir, voltou a olhar para a TV. Agora havia uma terapia em grupo, o silêncio tomava todos os espaços em goles lentos e doloridos, todos pareciam cinzas pairando no ar. O telefone tocou, uma vez, meia vez. Era ela. Elisa parecia ter saído de um transe quando se levantou do sofá de uma vez e, automaticamente, foi em direção à porta da frente. Mas que diabos, cadê a chave? Ao voltar à sala para pegá-las, xingava Deus e o mundo, calada. Não acredito. Não acredito! E na ponta dos pés caminhou pela casa. Abriu a porta.
- Não acredito.

Suspirou como sob o efeito instantâneo de dez calmantes.

- Entra. Cuidado pra não se bater em nada. A porta do quarto já está aberta.

E ela entrou sorrateira como um rato, como sempre, naquela madrugada. Quase às três. Sentaram-se as duas na cama, uma em cada ponta, abrindo uma das latinhas. Elisa não sabia o que falar nem como fazer, já que tinha dito "não", não esperava que depois de tanto tempo dessa vez ela também não a escutaria. Lembrou-se de quando a convidava, antes da meia-noite, bem no fim da tarde, e quando não aparecia, insistia que poderia aparecer ainda. Antes da meia-noite. Poucas vezes apareceu. Menos ainda avisava que não apareceria ou se atrasaria. Agora que Elisa não esperava mais, resolveu do nada vir com essas três e um papo de como andava a vida.

- Onde você estava numa hora dessa? Eu disse pra não vir. Pra que veio? Pra que veio dessa vez?

Vinha da casa de uma amiga, que por acaso morava bem perto dela, e não queria voltar para casa com aquelas cervejas, então decidiu pegar o caminho mais longo, totalmente contrário ao seu, para terminar de bebê-las. Apesar de acreditar que dessa vez suportaria por mais tempo, já na segunda latinha a armadura de Elisa trincou e foi posta de lado, deitou-se. Começaram a recordar das vezes que voltavam para casa nessas madrugadas, na ponta dos pés, completamente ébrias. Das vezes que as horas não batiam em nenhum dos juízos e que levavam com elas bem mais do que três latinhas. Conversa ia e vinha, acusações ricocheteavam vez em quando, entre afetos, lembranças, convicções e privações. Elisa não estava totalmente segura de si nem dela. Ainda não entendia por que justo naquela noite, com aquela desculpa esfarrapada, resolvera aparecer. Nada tinha terminado bem. Nada tinha estado bem antes mesmo de terminar. E desde então nada continuava nada bem. Apenas equilibrava-se numa lembrança e noutra, boas e ruins. O que era péssimo, pois lembranças são como bolhas de sabão que ludibriam e se dissipam no ar com o mais leve toque ou sem mais nem menos, deixando somente o desejo de tê-las ou vê-las novamente, mas surgindo cada vez mais frágeis.
- Não ponha minhoca na cabeça, Elisa. Vim porque queria te ver, era só saudade, e tinha essas cervejas, sei que você gosta, e sei que não dorme cedo. E também sei quando não quer dizer não, mas mesmo assim diz. Só isso.
- Você bebeu quantas antes de vir pra cá? Sei que só vem quando bebe ou precisa de alguma coisa, sempre foi assim e sempre vai ser. Te odeio por isso.
- Odeia nada.
- E cadê aquela lá? Devia ter ido pra lá. Idiota.
- Mas vim pra cá.

Elisa não imaginou que ali mesmo ela passaria o resto da noite, ou o início da manhã.

- E vai dormir aqui? Eu mereço.

O tempo estava indeciso, nem dia nem noite. Nem claro, nem escuro. Como na primeira vez em que passaram a noite juntas na casa dela, o colchão no chão, as janelas entreabertas, a porta trancada e um copo d´água ao pé da cama. E como naquela noite, veio um beijo. O mesmo beijo que revirou a vida de Elisa daquela noite em diante, nunca soube se dali sua vida estava ao contrário ou do lado certo, ou de cabeça pra baixo, ou virada pra lua. Se acordara ou adormecera. À meia luz, entre farpas e carícias, um beijo, que se mostrou mais claro que o dia, mas que dessa vez não chegou a clarear nada. Elisa disse não pela segunda vez. Nem hesitou, nem pensou.
 
Não-ponha-minhoca-na-cabeça, mentalizou, com vontade de afogá-la com a terceira cerveja. Te odeio por isso. E a tomou sozinha.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Sobre a mesa

Amor é que nem cozinhar: tem quem doe, quem venda, quem compre, quem troque. Quem saiba, quem não saiba nem queira, quem tente, mas nunca acerte. Tem gente que gosta de cozinhar pra desconhecidos, fica lá na sua cozinha despejando tempero pra tudo que é gente, e ainda recebe por isso, dinheiro, obrigados em massa, simpáticos ou tímidos. Vem com nome, fama ou anonimato, mas não tira a mão da massa. Já tem gente que prefere um jantarzinho mais particular, vai às compras e escolhe cada ingrediente com esmero, nada muito maduro ou verde. Alguns cozinham aos montes. Outros, pequenas porções. Uns atentam pro sabor, outros, pra beleza. Há quem consiga os dois. Tem gente que prefere fazer o molho, outros gostam mesmo é de comprar pronto. Molho branco, tomate, madeira, 4 queijos, ervas finas. Tem quem pique tudo direitinho, tem quem jogue tudo logo na panela. Pimenta e sal a gosto. Uns optam por assados, fritos, cozidos, mal passados. Carne tem que ser bem suculenta. Tem o forno, o espeto, o óleo quente. Vegetarianos tratam de inventar de um tudo pra encantar mais e mais gente com outros temperos. Tem quem faça uma mistura de tudo e mais um pouco. Uns pensam no sabor, outros na balança. Tudo faz mal e faz bem, na quantidade ou na validade. Às vezes passa do ponto, às vezes queima, às vezes fica cru. Tem quem prefira plantar o que come, tem quem nunca nem tenha pensado nisso. Amor de cozinha começa na primeira semente que brota no pasto do outro lado do país, semente que cai das mãos suadas ou da boca de um pássaro que voa sem saber ainda pra onde vai.

A adversativa

A discriminação é mas 
Tô de saia curta, mas não sou puta 
Sou puta, mas me visto bem 
Tenho barba, mas ando limpinho 
Tomei banho, a barba é charme 
Amo muito, mas não me acabo 
Nem amo 
Me acabo, mas chego em casa 
Bebo muito, mas não dou na cara 
E você que faz, mas 
E ele que é, mas 
Mas ela, que nem comento 
Não tenho preconceito, mas 
Olha, pelo menos 
Eu sou assim 
Nem tão assado.

domingo, 4 de maio de 2014

Superdose de vida

Os comprimidos ordenados na cama como se quisesse pôr ordem no caos que começou a sentir logo que chegara em casa. Cloridrato de amitriptilina, para enurese noturna e tratamento de depressão. Contraindicado para pessoas com tendência a encontrar-se constantemente rodeadas por caóticas rotinas cheias de absolutamente nada, mas isso não dizia na bula. Sem precauções nem advertências, buscava orientação em cada pílula, a traçar linhas retas e semicírculos. Antes de tomá-las, uma a uma, mas num gole só, o que a tomava era o vazio que ecoava entre as quatros paredes do quarto. Sem carta, sem despedidas, sem desculpas, sem culpa. Aquele caos que entrou com ela pela porta da frente vinha de outras vizinhanças, de tempos mais remotos, de guerras mais civis e de romances mais tempestuosos. Era o caos dormente de um domingo à noite que já anuncia os índices do final de semana e é prólogo de mais uma segunda-feira de cinzas entre cacos de vida. A taquicardia vinha forte, batendo na vida que há tempos sentia-se morta. Agora ela sentia. Deitando na cama sem também pedir licença, adormeceu ciente de um amanhã que não viria, ao lado dele que dormira antes, sem boa noite, nem bom dia. O silêncio já era hóspede fixo. Dois corpos frios numa cama desarrumada, a chuva a alagar as ruas, afogando almas clandestinas que teimavam em sobreviver, e a bater, bater, bater e parar sem mais nem menos.