Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Três latinhas de cerveja e só

Todos já dormiam, mãe, vó, vô, tia, irmão, menos Elisa. A TV ligada à toa, passava um filme qualquer, que sequer chamava sua atenção nos momentos de tensão, o celular na mão, esquecido, só percebera que estava ali quando um toque quase imperceptível, pois assim mantinha seus ruídos ultimamente, anunciou uma mensagem. Quem seria em plena madrugada de quinta-feira, pensou, fazia tempo que ninguém a procurava nessas horas, pelo menos não no meio da semana, deve ser propaganda de operadora, demorou a checar. Aliás, ignorou aquele toque pelo tempo de lembrar que ela costumava procurá-la nas horas mais inusitadas, quando não bêbada, aflita. Quando mantinha o celular sempre por perto, o sono leve, o toque não. Recordado isso, vagarosamente apertou o celular entre as mãos, talvez desejando que não fosse, mas acreditando que era, e leu a mensagem. Era. Antes de reler e absorver o que dizia, atentou para a TV, um acidente de avião.

- Tenho três latinhas de cerveja. Posso ir ai?

Não lembrava a última vez que havia negado um pedido dela. Não se lembrava de já ter negado.

- Não.

Nem hesitou antes de responder. Nem pensou.

- Chego já.
- Não venha. Está tarde e todos já estão dormindo.
- Dez minutos.
- Não.

E o celular não deu mais sinal de insistência. Inquieta e sem saber o que viria a seguir, voltou a olhar para a TV. Agora havia uma terapia em grupo, o silêncio tomava todos os espaços em goles lentos e doloridos, todos pareciam cinzas pairando no ar. O telefone tocou, uma vez, meia vez. Era ela. Elisa parecia ter saído de um transe quando se levantou do sofá de uma vez e, automaticamente, foi em direção à porta da frente. Mas que diabos, cadê a chave? Ao voltar à sala para pegá-las, xingava Deus e o mundo, calada. Não acredito. Não acredito! E na ponta dos pés caminhou pela casa. Abriu a porta.
- Não acredito.

Suspirou como sob o efeito instantâneo de dez calmantes.

- Entra. Cuidado pra não se bater em nada. A porta do quarto já está aberta.

E ela entrou sorrateira como um rato, como sempre, naquela madrugada. Quase às três. Sentaram-se as duas na cama, uma em cada ponta, abrindo uma das latinhas. Elisa não sabia o que falar nem como fazer, já que tinha dito "não", não esperava que depois de tanto tempo dessa vez ela também não a escutaria. Lembrou-se de quando a convidava, antes da meia-noite, bem no fim da tarde, e quando não aparecia, insistia que poderia aparecer ainda. Antes da meia-noite. Poucas vezes apareceu. Menos ainda avisava que não apareceria ou se atrasaria. Agora que Elisa não esperava mais, resolveu do nada vir com essas três e um papo de como andava a vida.

- Onde você estava numa hora dessa? Eu disse pra não vir. Pra que veio? Pra que veio dessa vez?

Vinha da casa de uma amiga, que por acaso morava bem perto dela, e não queria voltar para casa com aquelas cervejas, então decidiu pegar o caminho mais longo, totalmente contrário ao seu, para terminar de bebê-las. Apesar de acreditar que dessa vez suportaria por mais tempo, já na segunda latinha a armadura de Elisa trincou e foi posta de lado, deitou-se. Começaram a recordar das vezes que voltavam para casa nessas madrugadas, na ponta dos pés, completamente ébrias. Das vezes que as horas não batiam em nenhum dos juízos e que levavam com elas bem mais do que três latinhas. Conversa ia e vinha, acusações ricocheteavam vez em quando, entre afetos, lembranças, convicções e privações. Elisa não estava totalmente segura de si nem dela. Ainda não entendia por que justo naquela noite, com aquela desculpa esfarrapada, resolvera aparecer. Nada tinha terminado bem. Nada tinha estado bem antes mesmo de terminar. E desde então nada continuava nada bem. Apenas equilibrava-se numa lembrança e noutra, boas e ruins. O que era péssimo, pois lembranças são como bolhas de sabão que ludibriam e se dissipam no ar com o mais leve toque ou sem mais nem menos, deixando somente o desejo de tê-las ou vê-las novamente, mas surgindo cada vez mais frágeis.
- Não ponha minhoca na cabeça, Elisa. Vim porque queria te ver, era só saudade, e tinha essas cervejas, sei que você gosta, e sei que não dorme cedo. E também sei quando não quer dizer não, mas mesmo assim diz. Só isso.
- Você bebeu quantas antes de vir pra cá? Sei que só vem quando bebe ou precisa de alguma coisa, sempre foi assim e sempre vai ser. Te odeio por isso.
- Odeia nada.
- E cadê aquela lá? Devia ter ido pra lá. Idiota.
- Mas vim pra cá.

Elisa não imaginou que ali mesmo ela passaria o resto da noite, ou o início da manhã.

- E vai dormir aqui? Eu mereço.

O tempo estava indeciso, nem dia nem noite. Nem claro, nem escuro. Como na primeira vez em que passaram a noite juntas na casa dela, o colchão no chão, as janelas entreabertas, a porta trancada e um copo d´água ao pé da cama. E como naquela noite, veio um beijo. O mesmo beijo que revirou a vida de Elisa daquela noite em diante, nunca soube se dali sua vida estava ao contrário ou do lado certo, ou de cabeça pra baixo, ou virada pra lua. Se acordara ou adormecera. À meia luz, entre farpas e carícias, um beijo, que se mostrou mais claro que o dia, mas que dessa vez não chegou a clarear nada. Elisa disse não pela segunda vez. Nem hesitou, nem pensou.
 
Não-ponha-minhoca-na-cabeça, mentalizou, com vontade de afogá-la com a terceira cerveja. Te odeio por isso. E a tomou sozinha.

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