Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

domingo, 4 de maio de 2014

Superdose de vida

Os comprimidos ordenados na cama como se quisesse pôr ordem no caos que começou a sentir logo que chegara em casa. Cloridrato de amitriptilina, para enurese noturna e tratamento de depressão. Contraindicado para pessoas com tendência a encontrar-se constantemente rodeadas por caóticas rotinas cheias de absolutamente nada, mas isso não dizia na bula. Sem precauções nem advertências, buscava orientação em cada pílula, a traçar linhas retas e semicírculos. Antes de tomá-las, uma a uma, mas num gole só, o que a tomava era o vazio que ecoava entre as quatros paredes do quarto. Sem carta, sem despedidas, sem desculpas, sem culpa. Aquele caos que entrou com ela pela porta da frente vinha de outras vizinhanças, de tempos mais remotos, de guerras mais civis e de romances mais tempestuosos. Era o caos dormente de um domingo à noite que já anuncia os índices do final de semana e é prólogo de mais uma segunda-feira de cinzas entre cacos de vida. A taquicardia vinha forte, batendo na vida que há tempos sentia-se morta. Agora ela sentia. Deitando na cama sem também pedir licença, adormeceu ciente de um amanhã que não viria, ao lado dele que dormira antes, sem boa noite, nem bom dia. O silêncio já era hóspede fixo. Dois corpos frios numa cama desarrumada, a chuva a alagar as ruas, afogando almas clandestinas que teimavam em sobreviver, e a bater, bater, bater e parar sem mais nem menos.

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