Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Sobre ontem

Querida Rispidez,

tenho muito pra te contar sobre essa cidade, mas, calma, será aos poucos, em doses homeopáticas, como dizem por aqui. Como sou frágil, você bem sabe, adoeci logo que cheguei, passei uma semana de cama. Meu primeiro contato com alguém foi com o carinha da farmácia, inclusive, nos vemos uma vez por semana em algum lugar próximo ao pôr do sol pra tomar sorvete, mire, sorvete, deixei a cerveja de vez. De cara, ele percebeu que meu mal era a cidade e decidiu que a cada encontro iríamos a um lugar novo. Posso sair uma vez por semana. Ontem fomos a um lugar onde não vão muitos turistas, pedi a ele que não me levasse dessa vez onde tivesse muita gente que fala muito e se entende pouco. Nesta carta, só te conto de ontem, na próxima também. O que fiz nos dias anteriores pode descartar, já que não me deram motivos pra te escrever. Pois bem. Era uma praça num bairro distante, quase saindo da cidade. Tinha uma sorveteria bem na esquina. Ele ficou com açaí, eu, com limão. Acho que por isso você me veio logo ao pensamento. Então comecei a falar sobre ti pra ele. Disse que sentia saudade. Disse que você deveria ter vindo comigo, que poderia ficar bem perto, que mais perto seria melhor. Disse que deveria ter te dito isso antes de partir, mas que não tive tanta coragem como você, também disse que queria ser mais impulsiva e destemida pra dizer as coisas, como você faz. Depois disso, fiquei um tempo sem dizer nada. Quando o sorvete acabou, o dele, o meu derreteu antes, demos algumas voltas pela praça, o sol se pôs, os pássaros viraram morcegos, tivemos que voltar. Mas ainda tive como comprar numa banquinha esse porta-retrato que deve estar jogado na cama enquanto você me lê, a foto é de ontem, tiramos ao lado do escorregador porque você disse uma vez que gostava de escorregadores por causa do peso que eles simplesmente escorregam. Agora me lembrei da tua cama, sempre desarrumada. Ah, como era bom deitar numa cama sem medo de desfazê-la! Você nunca se importou com os meus pés sujos, sempre sujos. Sinto saudade dos meus pés sujos, aqui eles não me deixam ficar descalça. Acho que eles acham que quanto menor o contato for, mais rápido a gente se cura. Talvez por isso eu ainda não possa te escrever. Sorte a minha ter um amigo da farmácia que envia minhas cartas e me deixa ser levada por elas. Acho que mês que vem já posso receber visita.

Sempre sua,
Delicadeza.

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