Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

terça-feira, 8 de julho de 2014

Terceiro brinde

Chegando em casa às sete da manhã, Marco ainda não tinha certeza se precisaria trabalhar de novo à noite. Assim eram quase sempre seus dias, ou noites: um relógio sem tempo, medido pelo toque do celular que aqui e acolá Zezé ligava e anunciava outra noitada de trabalho. Por vezes, nem voltava para casa, ia direto do balcão do bar para a casa de alguém que conhecia nas festas, a estender uma farra já desgastada. Quando sozinho em casa, mal se mantinha acordado, era cama, banho e rua. Numa noite dessas, conheceu Jéssica, que por muita insistência das amigas havia ido àquela festa. Quase nem dançou, passou a maior parte do tempo se lamentando no bar e contando os minutos para voltar para casa, onde ainda tinha uma pilha de trabalhos da faculdade para terminar, o trabalho, as contas por pagar, as contas, as contas, os juros, nunca os juramentos. Os sons, a fumaça, os bêbados, todos, tudo empurrando para fora um corpo que não estava mais ali, mas sugando a mente de quem permanecia estático, à espera de alguma coisa, da hora certa ou errada, tinha algo a esperar. Longe e perto, sendo tocada e rejeitada, se mantinha no mesmo lugar, aflita, calma, uma confusão prevendo uma contradição. Abraçava as amigas, a queixarem-se dos namorados, mas não conseguia lhe deixar tocar o rosto uma lágrima, e era a maior angústia da noite – a vontade de chorar nos ombros de quem repulsava cada vez mais. Mas era quase como se elas chorassem por ela, como se sua dor ressoasse por todo o ambiente e a livrasse daquele fardo ao mesmo tempo em que aumentasse. Era um balão cheio de tanto ar. Não fazia o menor sentido estar ali, sóbria, embora fizesse todo o sentido do mundo.

Há tempos, Marcos não conversava tanto com alguém, nem com seus amigos que vez ou outra conseguiam encontrá-lo no barzinho em suas folgas. Jéssica lhe perguntava as coisas como se realmente tivesse interesse em suas respostas, talvez tivesse, pois talvez Marco fosse a única pessoa que de fato pudesse entendê-la justamente por não ter a intenção disso. Antes de partir, porém, não pediu nenhum contato, simplesmente se foi quando Marco virou as costas para atender outro cliente. Seria difícil encontrá-la de novo, ele sabia. Seu trabalho não se limitava a nenhum lugar nem estilo de festa e também mal se preocupou em conhecer melhor a garota que serviu-se apenas de água. Costumava não ter relacionamentos, apenas casinhos pós-balada, quase nenhum em sua casa. E, por isso, não era muito de conversar sobre si nem sobre ninguém, apenas conversas fiadas o bastante para que se cumprisse o destino de duas pessoas que se conhecem numa noite que nada promete, mas tudo cumpre. Mesmo assim, todas as noites ele esperava que ela voltasse: pela manhã, ao acordar, olhava para o lado, num desejo nada compreendido, esperando que ela estivesse ali deitada, num sonho só dela; pelas ruas, esperava encontrá-la numa esquina qualquer; pela vida, esperava que, bem lá no fundo, essa espera ainda fosse real. – Bárbara? Recebi a mensagem, sim, acabei de chegar. Ainda não sei se posso ir à noite. Depois dessa virada, nem vida eu tenho pra falar ao telefone! Mas retorno mais tarde, ou apareço. Mal desligou o telefone e caiu na cama. Era Bárbara a mais próxima dele e que mais conseguia entrar em contato. Da última vez, aos prantos, Marco deixou escapar que se sentia sozinho, não por estar solteiro ou sem ninguém dividindo a casa. Sentia-se sozinho simplesmente por não conseguir como falar que assim se sentia. – A solidão é o eco de um latido bem distante. Bárbara, meio confusa, não entendeu o motivo do amigo não procurá-la com mais frequência, assim como não entendeu muito as palavras meio embaralhadas dele. O fato era que ele não costumava conversar com ninguém, mas ouvir a todos, pois achava que seus problemas nunca eram tão graves assim. Na verdade, não eram. Mas os dos outros também não. Um problema se torna de fato problema quando é ignorado, e isso Marco fazia bem. Esse relapso que teve com Bárbara foi apenas efeito do álcool e do tempo que o táxi demorou para deixá-lo em casa, tendo sido breve e facilmente esquecido. No dia seguinte, apenas a ressaca e a sensação de um nó rompido na garganta, que logo foi inundada pela água que bebia desenfreado. Ah, vodka! Ah, o esquecimento!

Seu sono não durou muito tempo, acordando na segunda vez em que o telefone tocou. – Marco? – perguntou uma voz meio tímida. – Peguei seu número com o promoter daquela festa em que nos conhecemos, amiga de uma amiga conhecia, não tinha certeza se ligava ou não, pois talvez nem se lembre de mim. – Jéssica! Sim, lembrei-me bem no momento em que atendi, já que fui bastante questionado naquela noite. Respondeu, tentando conter a dose de euforia com desfalecimento. – Não sabia bem o que conversar com um bartender, normalmente conheço pessoas num lugar mais quieto, acho que só fiz perguntas, não é? Nunca tinha conhecido alguém como você. Também não me sentia muito à vontade naquela noite. Um certo silêncio veio após essa afirmação, ambos não sabiam o que falar. Ele por nunca falar muito, evitando aproximações, pois, ultimamente, tudo acabava ao amanhecer e reencontros não eram bem prováveis. Ela por não saber lidar muito bem com reações silenciosas, tomada sempre pela insegurança que a vida lhe deu com o tempo. – Acho que não liguei numa boa hora. – Mas fui eu que liguei, Marco. – Bem... preciso ir. – Preciso desligar. Disseram quase ao mesmo tempo. Ela, achando que bem o conhecia, o rapaz detrás do balcão que preparava drinques e lidava com meio mundo de mulheres mais interessantes e bonitas, não recordou das últimas palavras dele naquela festa, antes de ir embora sem se despedir de uma conversa onde só ela parecia mostrar interesse; sua única pergunta a qual pairou pelo ar e logo se dissolveu entre a fumaça da boate: – Seu número?

Ao desligar o telefone, não conseguindo voltar a dormir, Marco mirou o espelho por um tempo como quem procura o outro lado do reflexo, e relembrou-se do fardo e das certezas que agora carregava: autossabotagem foi tudo o que lhe sobrou. Dormia o dia inteiro, mas mesmo assim continuava na cama, insone, rejeitando convites, desligando telefonemas e apagando as luzes, esperando pela próxima festa. Um dia, quando quis o que não era a solidão, descobriu o superficial, deram-lhe a felicidade e o amor de bandeja, e isso fazia dele o que não era ele. Sua sorte era o seu maior azar. Rejeitava, então, essa sorte, rejeitando a ele mesmo, e toda felicidade que lhe vinha parecia artificial. Para ele, somente a tristeza era um sentimento puro. A tristeza e o amor rejeitado. O que vem depois disso são fugas de quem acredita no sentido das coisas. Somente o não sentir é que era real, cheio de tudo. Falava sobre isso, fazia aquilo, o tempo todo lhe apontavam contradições como se descobrissem algo de extraordinário, mas assumia a si mesmo como ordinário, assumia até o que não era para poupar aproximações. Assumia canalhices, provocava marcas de batom, negava o que fosse decente. Não queria sutilezas. Mas ainda esperava que o telefone tocasse de novo, ainda naquela noite, e revelasse tudo aquilo que era mentira por medo de ser verdade. Ainda, no fundo, tinha esperança de que aquela desconhecida aparecesse e o reconhecesse, descobrindo o que tanto escondia do mundo: a loucura de ser sensível.

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