Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

sábado, 26 de junho de 2010

Cronômetro

Soube naquele exato momento o que deveria ter descoberto há mais tempo. Agora era tarde. Não muito tarde, mas o suficiente para não dar mais tempo de resolver o que desejara ter resolvido a tempo, era simplesmente tarde. Ali, no instante de uma parada de ônibus, poucas pessoas o acompanhavam naquelas reflexões, não havia quase ninguém, aliás, arrisco dizer que daquelas poucas, nenhuma realmente o percebia. Os carros passavam, pareciam discorrer sobre um longo romance, e ele agora sabia finalmente. Sabia sobre os fins e começos. A demora do ônibus parecia proposital, como se indicasse uma espera provocadora de um atraso, quanto mais esperava, mais dava indícios de que não queria que chegasse, ofendia o tempo e o trânsito, tinha que descobrir qualquer coisa que justificasse o próximo passo, aquele que daria para continuar a viagem. — Não podemos insistir. — Sim, podemos. Ainda dá tempo pra tudo se consertar. Diga que sim! — Não, melhor não. E se foi escorrendo pelas horas como a água escorria pelos rostos e ralos depois de um banho demorado, ia carregado daquele corpo, agora límpido, para qualquer esgoto. O tempo nunca foi muito exato para ele, às vezes adiantado, outras, atrasado. Mas ele sabia que daria tempo e que poderiam ter consertado tudo, agora sabia.

O sol estava quase se pondo e Clarinha o esperava, nem ansiosa nem apática, apenas o esperava com ar de quem não espera nada, como se não houvesse nem nunca tivesse havido o que esperar. Quando ficava em casa, sempre havia muito o que fazer, então até que ele chegasse ia vivendo suas rotinas normalmente, sem que nada a afetasse. Era uma indiferença diferente, pois dava pra sentir o grande sorriso vindo do jardim abrir o portão da frente para recebê-lo e a casa, impregnada por passados dispensáveis de recordações, se transformava num ambiente perfeito para artistas fracassados, como eles dois, que coloriam sempre alguma parede juntos como se precisassem pintar alguma ausência de suas vidas. Beijavam-se entre as cores sujas, florescentes, e os desenhos indecifráveis, lembravam duas crianças que borravam suas roupas e que logo logo levariam bronca.

Ele, na parada, pensava em tudo isso, antes e depois de pegar aquele ônibus, havia parado ali. Lembrava também de Yasmin, que há alguns anos fora embora num voo imediato, sem sequer haver tempo de se despedirem. Ela não podia tê-lo, ele não podia perdê-la, e mesmo assim partiram-se um do outro em menos de um mês. Foi inevitável, para além de suas vontades, digamos quase um típico destino cruel. Quase porque Yasmin estava voltando. Não naquele ônibus que ele esperava, mas viria depois que ele passasse. Ela estava no passado, no presente e no futuro daquela parada. Mas disso ele não fazia mais questão de saber.

Nenhum comentário: