Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

domingo, 4 de outubro de 2009

Curvas tingidas de cinza

Corpos que suam
nus
Corpos que chocam
crus
Corpos efervescentes
queimam

Corpos que harmonizam a noite com ruídos de ondas de calor. A cama, o quarto, as portas fechadas com brechas de convite e nenhuma preocupação. Corpos que pedem plateia. O palco e o público, ele, ela, eles. A cena interpretada, improvisada, detalhadamente preenchida por pingos de exaustão. Respirações ofegantes de um ritmo desritmado, êxtase. Corpos que dançam um tango brasileiro, corpos que sambam na corda bamba, equilibram-se entres as curvas do picadeiro. O palhaço e o mágico, o domador de leões e a bailarina, o atirador de facas e o malabarista. Corpos que desenham e inventam, transcendem em si, revelam-se. Riscam o tempo com cores mistas, quentes, reluzentes.

Diego foi o primeiro a acordar naquela manhã. Fixou ternamente os olhos de Carmen, as formas de seu corpo, as ondas de seus cabelos. Ela ainda dormia, ele tinha o sono leve. Só após alguns minutos Carmen sentiu o olhar de Diego fitá-la e despertou.

— Precisamos conversar, Diego.

Esquivou-se do olhar dela como se soubesse a intenção daquela conversa. Há alguns dias havia visto Carmen e Rodrigo conversando no corredor da faculdade; ao aproximar-se dos dois sentiu um ar de precaução entre as palavras, mas disfarçou bem o brilho nos olhos que anunciavam uma lágrima, conseguira o estágio no museu de artes que tanto queria e fora ao seu encontro pra dar a notícia. Da surpresa que planejou, foi surpreendido. Aqueles olhares eram indiscretos demais e ele, perceptivo.

— Nossas noites têm sido maravilhosas. Tão mágicas e repletas de paixão, que chego a me assustar! Tenho medo do que possa se tornar tanto sentimento. Nossas conversas, compreensivas, apesar de curtas, me fazem tão bem que já não me preocupo tanto com os foras que levo da vida. Ter você a meu lado é como ter tudo o que qualquer garota gostaria de ter. Mas...

Os olhos de Carmen eram indiscretos. E a voz, maliciosa. Os quadros que Diego pintara desde que a conheceu refletiam cada gesto dela, agora eram vívidos e misteriosos. De cor em cor, traço em traço, apaixonou-se, mesmo sabendo desde o começo onde se metera. Como artista, arriscou-se.

— Você não precisa dizer muita coisa. Nunca precisou. Carmen, sei exatamente o que vem depois dos seus "mas"; sempre imprecisos e gaguejantes. A porta sempre esteve aberta para você ir e vir.

Vestiu-se. Precisava pintar as paredes do quarto, há tempos adiara e agora estavam assim sem cor e manchadas pelo tempo abafado. A cama, ainda desarrumada, suportava o peso das palavras de Carmen. Sempre evitou despedidas e desfechos, só não os que eram encenados por ele.

— Diego... Não precisa ficar tão chateado. Na verdade não sei o que exatamente quero dizer. Depois de ontem, sinto tudo embaralhado em meu coração. A única certeza que tenho é de que quero estar com você. Mas não quero.

— Entendo.

E saiu pela porta entreaberta rumo à aula de literatura portuguesa. A lágrima que desceu em seu rosto secou antes mesmo que dobrasse o corredor. Mesmo assim, não se esforçou para sorrir. Em seus pensamentos se passaram raros assuntos extracurriculares: as paredes precisam ser pintadas, cores neutras; tomara que o quarto esteja arrumado, como deixei ontem. Após a aula foi dar uma volta pela cidade antes de ir ao estágio. Ao longe, num banco meio escondido entre árvores secas de outono, avistou um casal: o quadro daquela noite encheria o quarto de sensações e as paredes não precisariam mais ser pintadas. Sem refletir sobre qualquer coisa nem mais nada, continuou a caminhada. O museu logo estaria cheio.

Corpos que sugam, reinventam e mentem.

Um comentário:

LaSo disse...

.bonito.