Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Brinde trincado

 para inaê.

— Aos grandes, artistas e cientistas do dia-a-dia, um brinde significativo, o primeiro gole, que sacia todos os desejos e anestesia todas as dores! Enquanto pessoas, ser humano degradante e vil espécie, o desprezo, o último gole, o escárnio do bêbado.
Pedro já passava do oitavo copo de cerveja esperando por Lara. Estava ali sozinho desde o início da noite, mais um pôr do sol, sozinho. Algumas menininhas passavam, sorriam, hesitavam se aproximar por avistarem outro copo na mesa, algumas até o cumprimentavam, o copo estava vazio mesmo, mas logo iam embora. Pedro era sério e não alimentava muita conversa, só bebia. Cada copo que virava era uma sensação diferente, esperança, decepção, raiva, conformismo, tristeza, dormência. Muitas vezes experimentava esses goles, sozinho, acompanhado, em bares, boates, festas insignificantes, outras raras valiam sua embriaguez. Desde que conheceu Lara, passou a beber mais, menos, confuso. Ela era inconstante, insaciável, desgastante. No começo esperava por ela tanto tempo que adormecia no sofá mesmo, no outro dia a ressaca o castigava, mas ele sempre esperava. As poucas lembranças o rodeavam e o faziam ir levando cada final de tarde pacífico, resignado. Dissuadia as verdades que ali se apresentavam com queixas, vivia se maldizendo, o mundo era desprezível. E era mesmo, um lugar miserável, um vírus egoísta disfarçado, cada um agindo por si e não assumindo suas intenções sobre o outro, justificativas baixas que qualquer um pode sentir, mas evita. Como já disseram por ai que só o que atinge a si é sentido realmente.
Os goles iam passando imperceptíveis, ele ia se enganando, ela ia pra lugar nenhum. Bêbado, cambaleando pelas calçadas, Pedro ia pra casa toda noite. Algumas vezes ela o dava um banho de água fria, outras vezes, quente, nesses dias em que um casal se cuida e se revela. Dormiam juntos uma vez por semana, quando ela tinha tempo, era uma fase conturbada que exigia muitos sacrifícios. Suas necessidades iam além da vidinha comum dele e o tempo estava sempre passando, era preciso aproveitá-lo, sugá-lo. Ela queria mais, mais do que apenas goles de cerveja no fim da noite. Queria talvez um vinho relativamente bom. Só que Pedro não gosta muito de vinho, embriaga rápido e ele bebe qualquer bebida no mesmo ritmo e intensidade. Ele gosta de sentir o tempo se esvair aos poucos, o chão se desequilibrar vagarosamente, e assim equilibrar seu corpo nas ondas do mundo do seu jeitinho, sem pressa nem pressão, seguro de si e mais crédulo. Mas desde que a conheceu, perdeu o equilíbrio, muitos conceitos mudaram, os olhos agora eram crus, outras verdades e não tão agradáveis, ele inquieto se desconstruía. Ela, incoerente, com seus questionamentos e teorias, gosta de vinho, adormece um dia ruim e se põe disposta no outro pronta pra guerra rotineira que suas escolhas lhe deram. Ele, desacreditado, prático e vulnerável, e seus goles, antes promissores da noite e distraídos, agora apaziguadores de um visionário falido, ainda não gosta muito, mas vai engolindo essa liberdade sutil e gradativamente amarga.
Apesar de tanto descaso, eles se amavam. Um amor apressado, desordenado, mas ainda assim amor. Por isso ele a esperava e ela ainda não tinha tempo, o amava demais pra largar seus ideais e jogar-se incondicionalmente num amor romântico, ingênuo e irreal. Lara sempre foi muito firme em suas decisões, não tão racional nem pessimista, mesmo estando num mundo péssimo conseguia se equilibrar na realidade nua, era forte. Ele a admirava, amava e esperava desfalecendo em cinzas e ressurgindo aos poucos, mais convicto, maduro, menos palhaço de bar que provoca tantos risos, pois agora ele percebia que as piadas não tem graça, mas sim o palhaço que se expõe ao ridículo, as pessoas gostam disso, sentem-se aliviadas quando os outros libertam seus defeitos e caem de seus altares, quando o ego é resumido a uma piada, alimentam-se da audácia do outro e vão vivendo em grandes bolhas arrogantes.
No décimo quinto copo, a cerveja já quente, Pedro ajeitou-se na cadeira dormente, tirou o dinheiro da carteira, chamou com ar de condenado o garçom e pagou a conta. Nada de Lara, a lua já estava cheia no céu, poucas nuvens, já dava pra ver as estrelas e fazia frio, ou talvez fosse só febre. Faltavam poucos goles pra tudo terminar e mais um dia de enganos concluir e reafirmar suas convenções, costurar o tempo com a mesma linha, a mesma agulha, mascarado, imerso nas armações traiçoeiras, no velho destino de tudo seguir em frente e nas contradições de viver o presente, repetindo as falas ensaiadas, sossegado nos costumes, quieto, ajustado. Por ora, Pedro ia com a noite como o dia.

2 comentários:

Inaê disse...

é eu e tu?
hehehehe!!!
você me surpreende quando escreve! Acho que você podia mostrar isso pra algum professor vai que ele consegue uma publicação. São maravilhosos, peixe!!!!

Sue Barroso disse...

eu nem acho. u.u"