Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Quase uma dança

 f. freire.

Era uma chuva leve, serena, quase uma serenata, quando quase amanhecia. Os primeiros raios de luz ameaçando entre os prédios coloriam os cabelos dela enquanto ela dançava suavemente acompanhada de um sorriso que instigava qualquer um a dançar. Um vestido de flores, cabelos quase encaracolados e as mãos bailando pelo ar, como se jogasse um feitiço nada discreto sobre mim, pois ao canto Clarinha percebia tudo aquilo e sorria, quase dizendo "vai ficar parada ai?". E eu ficava parada aqui, hipnotizada, morrendo de vontade de seguir o ritmo dela, mas sabia que não tinha ritmo nenhum que pudesse alcançar aqueles passos. Pelo menos eu não tinha ou não tivesse naquele momento. A única reação, ou não-reação, era ficar observando a chuva, a dança, o vestido, a moça, os cabelos e as mãos. Provocante, era a única coisa que me vinha à mente, uma provocadora! Mas tão inocente, ou tão bem disfarçada numa pureza de me causar vergonha por estar com aqueles pensamentos. Tentava não olhar, ou reparar nos movimentos do vestido, a chuva estava quase cessando e o sol já aparecia, Clarinha procurava alguma música enquanto ela parecia não estar buscando música alguma, apenas dançava, ou girava, pairava. Quando dei por mim, estava totalmente ludibriada por aquela manhã de Sábado, captava cada detalhe, os perfumes, as cores, os sons, meus sentidos estavam aguçados, como se precisassem registrar tudo ali. Era ela que estava em toda parte. – Não quer dançar mesmo? Guardei uma dança pro fim da festa ou pro início do dia. Foi quase um susto ouvir aquela voz tão empolgada quanto no início da noite passada, ela parecia não cansar, ou simplesmente não passar pelo tempo. Tudo partia, a festa, as pessoas, as bebidas, a noite, a chuva, eu. Ela não. Ou talvez só ela partisse. Enfim, não podia recusar aquele convite, nem ela, havia ainda uma dança em algum lugar daquele corpo e ela oferecera a mim, mas eu não dançava, nunca, e não dancei naquela manhã. Continuei a olhar o tempo que passava cada vez mais com ela por mim, em mim.

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