Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Neurotransmissores

Olhei de novo para o trinco, dessa vez tão fixamente que poderia ter aberto dez portas. Mas aquela nem se moveu, até porque o que eu esperava era que alguém a abrisse, qualquer um, que fosse doce e me levasse pra outro lugar, aberto. Quando digo doce não falo de romantismo, doce porque durante muito tempo foi o meu pior erro, fui acreditando nas sensações que me davam lá dentro, na mente, a tal endorfina, talvez, e esqueci as sensações que davam aos outros pelo lado de fora, aquela imagem tão almejada por tantos que não, não me pertencia há muito tempo. Foi um vício, uma fuga, uma distração, doces que me tiravam dele noite após noite, cada vez mais. Eram bons e ruins. Se agora o doce fosse esse qualquer alguém, talvez não me fizesse tanto mal quanto os de antigamente, ativasse as “inas” do organismo e simplesmente me desse as sensações que me permiti sentir de novo.

As chaves estavam em minhas mãos, mas a porta não estava trancada, era só uma segurança tê-las comigo. O trinco nem sequer brilhava. Ele fechou a porta com tanta força quando saiu que não tive coragem de abri-la de novo pra olhar o lado de fora, ficava ali dentro, fechada, e os doces todos pela casa, espalhados em meio à bagunça que se foi acumulando, também não quis mais arrumar as coisas. Já faz mais de um ano desde que ele partiu, junto foram meus amigos, um por um, já que a interação é a base de qualquer relação, não suportaram interagir por mim e por eles. Há uns dois meses desliguei o telefone e não olhei mais as correspondências, com o tempo a luz foi cortada, a água, o seguro, o plano de saúde, estou esperando a minha vez, ou a porta ser aberta. Até pensei em abri-la algumas vezes, eu ia com as chaves nas mãos, passando pelos dedos, me aproximava do olho mágico, não via nada lá fora, pois não havia o que ser visto, tocava o trinco, depois acordava deitada no sofá, chaves no chão. Era isso, não havia nada a ser visto ou sentido, lá fora não passava de um mundo que eu não conhecia mais, ou que nunca tinha conhecido, me questionava se havia sequer existido um mundo lá fora, eu existia?

Talvez tudo não passasse de um intermediário entre mim, a porta e o mundo, onde nenhum dos três estivesse realmente ali se fazendo presente, nenhum dos três fizesse o que tinha de ser feito, apenas ocupassem algum lugar em algum espaço ou tempo, ou nem isso. Eram corpos tão dependentes um do outro que não conseguiam encontrar essência em si mesmos, nem na relação entre eles. Em alguns momentos, me via deslocando do meu corpo, me tornando um ser inanimado, observando tudo bem de perto, mas à parte, realmente não me relacionando com nenhum deles. Me via olhando aquela porta como se fosse a última coisa que faria na vida, via aquela porta estagnada, agressivamente mostrando que não abriria, e via o mundo, girando no mesmo lugar na frente daquela porta, sem qualquer interesse nela ou em mim. Agora, sem saber direito onde estou, se no sofá, no chão, com chave ou sem, vejo a porta, e somente ela, não sei se está trancada, se foi o mundo que entrou quando ele saiu... Bem, não é mais alguém que quero que a abra, é qualquer um, doce ou não.

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