Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

sábado, 16 de outubro de 2010

Dos amores não vividos

Na fila mesmo comecei a pensar, talvez por ter de pagar uma conta atrasada, nessa relação de troca muitas vezes desigual e cheia de encargos. Pensei em Davi, no pouco tempo em que estivemos juntos, nos momentos raros em que o encontrava e como ele conseguia dar tanta intensidade a cada um, transformando os minutos em uma vida inteira de doação recíproca. No dia em que foi embora, disse que voltaria, que precisava de mim o mantendo de pé onde quer que estivesse, que eu era aquela última esperança, inspiração, sei lá. Me pôs num altar, me fez de santa a rogar, sobreviveu à distância e ao tempo, mas retornou por mim, não pra mim. Não sinto mágoa por não tê-lo de volta, pois se voltou é porque um dia o tive e ele me teve, foi, digamos, um amor abstrato, e pra mim bastou. Quando te encontrei ainda me encontrava no altar que Davi sustentava com palavras doces e promessas, por um certo tempo o esperei, mesmo estando contigo, decaindo em teus braços pouco a pouco, sobrevoava junto a ele no teu abismo. Só que, não sei, não entendo, a escuridão que ia me tomando em cada degrau dissolvia Davi, o altar e todos os sonhos que brotaram nele. Ele não foi você. É certo que Davi me deu o que não existia, você me deu livros e uma caixa de lembranças cheia no armário, me deu um recomeço real. Então apareceu Eduardo, tão inquieto pelo meu jeito, meu novo eu que você reconstruiu e moldou, que me inquietou também. Ele era intenso, tinha um olhar devorador e uma forma de me envolver às pressas que atropelou a tua calmaria posta sobre mim, tive vontade de subir as escadas correndo e me jogar nos braços dele como uma nova chance de me tornar tão importante quanto antes, ele me coloria novamente, dessa vez com cores mais fortes que os teus tons pastéis, e eu me joguei, não mais do que quatro ou cinco vezes, era uma esperança efêmera que só durava o tempo de um beijo ou de uma ligação. Eduardo era complicado, rodeado demais, mas me deu prioridades disfarçadas que só nós dois sabíamos, um segredo nosso que dava boas risadas e uma cumplicidade que viria a ser invejada se descoberta. Pouco tempo, já que você afrouxava a mão, mas logo apertava quando percebia o risco de me ver partindo pra sempre, e eu voltei pra você pela primeira vez, cheia de orgulho por te colocar acima de qualquer outro que pudesse ser melhor, tudo bem, ele também não era você. Aliás, qualquer outro era melhor e me fazia assim quando você foi esgotando a quota de simpatia, se tornando amargo e eu, irrelevante. Partimos um do outro por quase meio ano, o tempo de vivermos outras paixões, melhores do que nós dois. E foi ai que surgiu Adriano, me dando tudo o que você não deu, noites em claro regada a sorrisos, não mais a lágrimas, aventuras tolas que eram o suficiente para mim, deu conversas e perspectivas, a impressão de um futuro seguro, pois nos completávamos, não nos cansávamos um do outro. Adriano me deu a sensação de um beijo em cima de um skate, equilibrados, eu e ele, não em movimento, claro, mas era diferente, ele era uma cor irreverente. Mas você fechou a mão mais uma vez e com força, me deu uma queda brusca, me mostrou o que poderia ter me dado e não deu, me culpou e me prendeu, me rendi, pois ele não era você. Éramos tão culpados que nos remodelamos até nos encaixarmos numa desculpa, e olha! foi fácil te desculpar, só que nos diminuímos tanto que não cabíamos mais num romance convencional, soltamos a corda e pulamos na rede, você caiu primeiro porque não te segurei dessa vez, foi Benjamin a quem me agarrei com toda força, fui escorregando aos poucos, te vendo lá embaixo e vendo também a mão dele me segurando, eu sentia o que ele queria, não queria nada demais e ao mesmo tempo queria tudo, talvez de mim ou de outra, só que eu estava no momento que importava muito. Uma das minhas mãos se fundiu as dele e a outra te buscava como se pudesse alcançar o tempo e te salvar. Eu e Ben nos demos o momento certo, mas ele não é você. Se ao menos eu pudesse unir o momento certo e você... Só que você arrebentou o fio que nos ligava e agora te vejo lá embaixo, na rede, sem nada de novo nem velho a me oferecer, senão o você de sempre, nada que não desse a um irmão, amigo ou cachorro. Nessa fila, está quase chegando minha vez de ser atendida, estou pensando em tudo o que você me deu. O que você me deu realmente? Não consigo encontrar uma diferença que me eleve a qualquer outro, a não ser um amor tão falado e tentado a todo custo ser cravado em ti e tornado real. Talvez você seja só um corpo, uma imagem a ser contemplada, uma máscara que eu busco inutilmente encaixar noutro qualquer pra ser você.

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