Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

sábado, 16 de outubro de 2010

Ego.

Nua, era como estava exposta na cama, à disposição, total, para banhar-se sob a luz do luar que entranhava pelas grades da janela. Os lençóis dispensados num canto abandonado da cama e ela, em seu lugar, em sua noite, posta como um bebê, como se protegesse o corpo dos sonhos ou dos mosquitos, e os travesseiros pelo chão, em negação ao desconforto que causavam noite após noite depois que começara a dormir sozinha. A TV estava desligada, o rádio estava desligado, a luz estava desligada, somente o reflexo de alguns fleches de luz da rua no espelho e a lua, teimosa, iluminavam o quarto e mantinham a visão dela acesa. Quando se deitava, normalmente ligava a TV, assistia programa qualquer até que o sono cessasse mais um dia rotineiro, ou então ouvia alguma música que a fizesse sentir lá no fundo uma lembrança que apertasse o coração ou a embalasse no marasmo da noite, permanecia nua na cama até que ele entrasse pela madrugada e a embrulhasse num dos lençóis que dividiam, era cauteloso e também tinha medo, de perdê-la, de ela adoecer, do frio, a mantinha quente com suas mãos envolvidas na cintura dela, a possuía ao envolvê-la simplesmente em seu cansaço operário. Ali, naquela cama, dois corpos se fundiam num sono só. Ele não se despia por completo, estava de prontidão ao acaso, acaso precisasse se levantar, acaso ela precisasse dele. E ela precisava. Mas o via dormir, desfalecido, num escudo tão protetor, que suspirava em silêncio, num meio pulmão, para não acordá-lo, envolvia-se num lençol e descia as escadas no escuro guiada pelo costume da casa até a geladeira, água ou leite. Agora se encontrava, ou se perdia, naquela cama, à meia-luz, senão inteira e fosca, ainda nua, em silêncio, em soluços tímidos ou receosos, à espera das mãos dele ou do cobertor, da sensação de uma música, de qualquer coisa que a fizesse crer em qualquer coisa de novo, até na TV. Era um não-sentir tão sentido, que ela chorava por dentro, agonizando por não lhe descer ao rosto uma lágrima sequer, era somente um corpo nu numa alma morta. Ele partira, talvez para o além, talvez para outra, talvez para o mundo, era o que menos importava, era relevante apenas o verbo mais-que-perfeito, que concretizava sua ausência, tornava matéria um corpo noutro espaço. Culpava os lençóis, mais ainda os travesseiros, a cama velha ou a janela, por vezes a escada, a luz, a TV, o rádio. Culpava a si mesma, a ele, ao destino, à vontade de Deus, ao acaso, a ninguém. Sentia muito por não sentir mais nada, a não ser o desejo de tê-lo de volta envolto em seu corpo nu.

Um comentário:

Fernanda Rodrigues disse...

foda! senti ela e sua dor!