Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Do caos ao caso

 para Bruna Almeida.

Eram pretos. Aqueles olhos arredondados como amêndoas, nada tinham de castanho, nem claros nem escuros, mas pretos. Era um abismo rude que convergia com os fios dourados dos cabelos e da pele delicada, uma pedra bloqueando a ressaca de um mar já não tão insistente à beira da praia ou um milharal sem terra, suspenso. Preto, como uma noite iluminada apenas pelas luzes dos postes antigos que clareiam os caminhos bêbados dos boêmios e suas palavras murmuradas numa folha seca de papel amassado, posto em dúvida a cada tracejo trêmulo no canto do bar.

Ali, naquele bar, aqueles olhos iam se tornando negros, escurecendo junto à sombra de uma lua indecisa em suas formas, redonda ou oval, qual seria? Eu os via perseguindo qualquer coisa que não fossem as gotas do copo escorregando pelas curvas desalinhadas na mesa, me perseguiam com algum desinteresse eminente e me enclausuravam num escuro nauseante. Aquela negação me causava isso, desconforto e sem recusa eu me ia deslizando pelas pálpebras enigmáticas, afundando, decaindo num marasmo assustador, eu era só mais um nadando naquelas profundezas. Mais uma vez a delicadeza, de um toque sutil, mãos rodeando os cabelos, buscava expor uma luz escondida na mesma face onde aqueles olhos estavam descobertos, intimidando a quem ousasse desafiá-los a uma disputa injusta.

Ousado, fui sentindo minha leveza sendo sugada pra dentro daquele oceano, fundo de um poço habitado pelas mais estranhas criaturas marítimas. Talvez fosse um peixe naufragado e que agora descobria apenas os olhos e mantivesse o resto do corpo contornado por florescentes escondido detrás de uma rocha, tão firme quanto aquele olhar que reservava só para ele todas aquelas dores do mundo. Ou talvez fosse um abismo ao avesso, pois mantinha um sorriso aberto, destemido, contrastando com tudo mais que envolvia aquele cantinho à meia-luz. Eram dentes tão brancos, desesperados. E olhos pretos, frios. Me sentia caindo numa suavidade de oposições, sendo tomado por um redemoinho de ternura e desprezo daqueles olhares fixos, desinteressados. Eu, de olhos claros, estava totalmente vulnerável e agora já não controlava os indícios do amanhecer, estava com medo do próximo pôr-do-sol levar o que uma madrugada me trouxe em meio a tantos outros olhares e sorrisos evidentes.

2 comentários:

Fernanda Rodrigues disse...

Eita Su! Chega eu viajei nesses escritos. Tá intenso, sublime e dá uma certa curiosidade de saber o que vem depois. Dois olhos negros e intrigantes! Massa :)

Ediane Soares disse...

Tô ligada Suelene! Tô ligada... vi tudo nas entrelinhas! Tudinho...

bjo