Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Sólido espontâneo

Sem muita pressa, seguiu pela calçada o finalzinho da tarde, à beira do meio-fio, sentindo o maior orgulho por ter fechado mais um showzinho num restaurante da cidade. A carreira estava indo bem, ela era boa nisso, afinal, e sentia cada vez mais palpável a satisfação por ter escolhido o caminho que realmente queria. Parecia até historinha de autoajuda, onde tudo dá certo. Era uma garota não muito magra nem de muito porte, tinha lá seus vinte e sete anos, cabelos nem lisos nem ondulados e de um corte mediano, as roupas eram bem leves, escolhia sempre as lojas mais antigas, pois já conheciam seu gosto, assim evitava o trabalho de procurar o que vestir na próxima estação, morava com o irmão mais velho, mas quase não o via, pois ele passava a maioria do tempo trabalhando na empresa de computadores, herança de seus pais que tinham sumido no mundo em busca de outras propostas de vida, algo diferente daquela que termina num quadro em família no qual todos sorriem, mas ninguém está realmente feliz. Ela, por sua vez, não queria aquilo, foi então que resolveu abrir mão de alguns luxos impregnados desde a infância e procurou na simplicidade de outros sons sua própria melodia. No início, foi meio difícil, tanto pra ela quanto pro irmão, que teve de arcar sozinho com todo o trabalho, mas logo tudo foi se ajeitando quando conseguiu emprego na loja de CDs. Ali estava ela e seu violão quando chamou a sua atenção um som bem distante e indefinido, mas o suficiente para que avistasse uma janela no segundo andar de uma das casas e dobrasse a esquina, entrando naquela rua sem asfalto e sem saída. A janela estava meio aberta, algumas cortinas enfrentavam o vento, iam pra lá e pra cá, inquietas, dando a impressão de uma água-viva em pleno centro urbano e reluzindo vez por outra a luz amarela que saía do quarto. Parecia um mar que havia absorvido completamente a luz do sol. Pôde perceber que junto à música mal compreendida havia alguém noutro ritmo, dançando como se nem estivesse ouvindo nada, era uma sombra ou era um rapaz, às vezes se confundiam e foi exatamente isso que chamou a atenção dela por mais alguns minutos, era ele. Sentou-se num tronco de árvore que havia por perto, um tipo de banco que muitas pessoas dali usavam para suas conversas diárias, e passou a sentir cada passo que o rapaz dava, o balançar das cortinas e até mesmo o som que vinha de dentro. Como não entendia de dança, julgou ser um balé meio jazz meio tango, sorriu sem graça pela total ignorância e numa tentativa de autodesculpa pegou o violão e começou a arranhar algumas cordas, um prelúdio que cabia perfeitamente àquele momento, a ela e ao rapaz. Ficou por ali alguns minutos dedilhando e acompanhando os passos do jovem, era como se só houvesse aquilo: não mais tempo, não mais espaço, apenas os sons do violão e as vibrações dos movimentos. Imperceptível, a noite caiu sem querer e muitas outras luzes se acenderam, as cortinas pararam com o vento quente e a música também, a dele e a dela. Somente duas coisas continuaram a navegar naquele mar, os olhos dela e os passos dele. Quando deu por si, já era hora de estar em casa, havia combinado com o irmão de se encontrarem, era aniversário dele, sairiam pra algum lugar em busca de alguma interação que os mantivessem ligados um ao outro. Ainda via o rapaz pela janela, mas outra vez teria de ir embora, cedo ou tarde, guardou o violão, avistou outras pessoas pela rua, nenhum conhecido, e continuou, seguiu rua adentro.

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