Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

sábado, 30 de julho de 2011

Do tempo que tudo vira pó quando nada era concreto ainda

Por que se mente pra quem gosta?
Pra não atingi-la de uma maneira que ela não espera ou suporta?
Mas e se a mentira for a maneira que ela menos espera e suporta?

Outra vez ela viu um avião cruzando os céus. Pensou que para além daquele objeto pintado no quadro azul, existiam mais coisas, pinturas, existiam pessoas e nessas pessoas existia uma vida a ser contada ou ainda vivida. Ficou ali pensando na vida dos outros que estavam num avião, cruzando os céus e indo pra algum lugar e também pensou que não importaria mais o que fizessem, chegariam em algum lugar, tinham que chegar, a não ser pela fatalidade de um acidente, mas ainda assim, chegariam em algum lugar. Pensou por um instante que era só um avião e que eram só pessoas, pensou que talvez nem houvesse nada ali, que talvez fosse um pássaro diferente, que talvez fosse uma ilusão que criara pra distrair a mente dos pensamentos que há tempos a incomodavam. Pensou que talvez. Não, não podia mais pensar assim. Tinha que pensar mais forte, mais pé no chão, tinha que parar de avistar aviões e ficar imaginando o que poderia ser ou ter sido. Mas então ficava sem saída, pois ver aviões era o único modo de não ver mais nada que estava bem debaixo do nariz dela e isso era preciso pra que não voltasse a querer ver aviões. Ver aviões para não ver a verdade e não ver a verdade para não querer ver aviões. E a verdade é que era mentira, era demais pra ela saber disso. Ou não, pois ela suportava. Só doía demais nela ao ponto de não sentir dor alguma. Outra vez estava quebrada, mas desta, virando pó, como se não houvesse mais jeito nenhum de se reconstruir. Outra vez, sem chão, vendo aviões.

Foi de um jeito diferente dessa vez. Além da mentira, havia o engano. Enganar-se com o próprio espelho, um susto. Porque o amor de quem ama é refletido em espelhos, um de frente ao outro, as imagens ficam refletindo, refletindo, refletindo. E o outro amor, o do amado, confunde-se com imagem e com espelho. Nessa confusão é que ela havia encontrado alguém pra se segurar, pra sair desse mundo de aviões que devem chegar a algum lugar, pra já estar em algum lugar e ao mesmo tempo indo pra todos os lados. Queria tanto essa imagem, que se confundiu com os espelhos quando foram se quebrando um a um, tentando agarrar a todo custo aquele amor primeiro que havia se perdido pra sempre em tantos reflexos. Porque aquele amor não era engano nem mentira, era uma espécie de balão, cheio de ar, belo, leve e livre. Passou tempos enchendo balões, colorindo todos, cuidando, assegurando para que não estourassem. Mas o tempo, entendeu, se não estoura os balões, os leva pra longe ou os secam. O problema é que ela não conseguia perceber o que havia acontecido com aquele amor, que era balão, ou espelho, ou imagem, ou avião. Só via a si mesma, entre vidros despedaçados, plásticos desfigurados, céus borrados, misturada ao ponto de não se encontrar por inteira, original.

A mentira deixa uma sensação de desgosto que parece nunca mais passar, além dos espelhos quebrados, que acabam com todo o resto que havia, deixando apenas restos. Passa a refletir tudo em cacos, em pequenas partes embaçadas, não se reconhece mais o que reflete. E era assim que ela se sentia e tentava evitar olhando aviões. Ela se sentia quebrada, restos. Suspirou quando o avião sumiu entre as nuvens, entrou em casa. Tocou sua pele pra ter certeza de que ainda havia algum corpo ali, talvez um banho contornasse suas linhas, a água reformasse seus traços. Achou no canto da prateleira um pacote esquecido de argila, viera não sei de onde, disseram que era bom pra pele, cicatrizante. Juntou, então, argila, água e pele, começando um tratamento que duraria mais do que o tempo de secar tudo.

Um comentário:

Ediane Soares disse...

Parece que o que nunca foi, demora mais para deixar de ser do que o que de fato é... "por isso da primeira vez dói, por isso não se esqueça dói" - Só lembrei dessa música qdo li teu texto. E da gente tomando uma água de côco em um bar onde todas as outras pessoas beberiam toda a cerveja do mundo... saudades disso.