O apego ao passado talvez não seja pelo fato de ter sido algo assim tão maravilhoso, mas simplesmente por não haver nenhum futuro, além do imediato que se rasteja a cada segundo no presente. A gente precisa ter um tempo pra conjugar: o problema é querer quase sempre o mais-que-perfeito. Como num presente, teoricamente pensado, adquirido e repassado pleno de afetos, boas intenções ou acordos de paz. Há o laço, o papel e o objeto-trato-troca. Há quem preze pelos três ou por um só, há quem guarde tudo ou jogue tudo fora no minuto seguinte. Há o que enfeita, ou prende, o que protege, ou cobre, e o que contenta, ou se contenta. O fato é que pra rasgar o papel, antes tem que desfazer o nó, talvez até se passe pelo papel sem rasgá-lo, mas o laço vai ser desfeito. Quando refeito, o papel vai ser outro, o presente também, ou nem haja mais nada, só a fita que ainda possa ser laço. Ou o laço que possa ser nó e nunca mais desatado. Corta-se.
sexta-feira, 30 de maio de 2014
segunda-feira, 26 de maio de 2014
Satisfeita apatia
Antes
de tudo, obrigada por nada. Pelo brinde que você não ofereceu, pela
bebida que você não compartilhou e pelo convite que você não fez. Essa
ressaca que me toma vem de não sei onde, só sei que acordei assim, sem
nenhuma dose sequer. Lembro-me de ter desabado e desabafado ontem, mas
já não me lembro de metade das palavras que soltei, em vão, no teu ar. O
desabafo se anula. O peso dobra. Quando pensei ter, finalmente,
encontrado uma pergunta pra minha resposta, dei de cara com a fome de
tudo o que se completa. E não há nada doce que ludibrie e disfarce essa
sensação contínua que meu vazio estômago insiste em rebater. Agora fico
sem respostas e sem perguntas, só com um papel preenchido a ser dado
como resolvido e arquivado nos fundos de uma sala mofada. Estou gorda,
não me sustento, e qualquer vento que dá me desequilibra: ando perto das
paredes, olhando pro chão. Tudo dói, menos o corpo.
quarta-feira, 21 de maio de 2014
Três latinhas de cerveja e só
Todos já
dormiam, mãe, vó, vô, tia, irmão, menos Elisa. A TV ligada à toa, passava um
filme qualquer, que sequer chamava sua atenção nos momentos de tensão, o
celular na mão, esquecido, só percebera que estava ali quando um toque quase
imperceptível, pois assim mantinha seus ruídos ultimamente, anunciou uma
mensagem. Quem seria em plena madrugada de quinta-feira, pensou, fazia tempo
que ninguém a procurava nessas horas, pelo menos não no meio da semana, deve
ser propaganda de operadora, demorou a checar. Aliás, ignorou aquele toque pelo
tempo de lembrar que ela costumava procurá-la nas horas mais inusitadas, quando
não bêbada, aflita. Quando mantinha o celular sempre por perto, o sono leve, o
toque não. Recordado isso, vagarosamente apertou o celular entre as mãos,
talvez desejando que não fosse, mas acreditando que era, e leu a mensagem. Era.
Antes de reler e absorver o que dizia, atentou para a TV, um acidente de avião.
- Tenho três latinhas de cerveja. Posso ir ai?
Não
lembrava a última vez que havia negado um pedido dela. Não se lembrava de já
ter negado.
- Não.
Nem hesitou antes de responder. Nem pensou.
- Chego já.
- Não
venha. Está tarde e todos já estão dormindo.
- Dez
minutos.
- Não.
E o
celular não deu mais sinal de insistência. Inquieta e sem saber o que viria a
seguir, voltou a olhar para a TV. Agora havia uma terapia em grupo, o silêncio
tomava todos os espaços em goles lentos e doloridos, todos pareciam cinzas
pairando no ar. O telefone tocou, uma vez, meia vez. Era ela. Elisa parecia ter
saído de um transe quando se levantou do sofá de uma vez e, automaticamente,
foi em direção à porta da frente. Mas que diabos, cadê a chave? Ao voltar à
sala para pegá-las, xingava Deus e o mundo, calada. Não acredito. Não acredito!
E na ponta dos pés caminhou pela casa. Abriu a porta.
- Não
acredito.
Suspirou como sob o efeito instantâneo de dez calmantes.
- Entra. Cuidado pra não se bater em nada. A porta do quarto já está aberta.
E ela
entrou sorrateira como um rato, como sempre, naquela madrugada. Quase às três.
Sentaram-se as duas na cama, uma em cada ponta, abrindo uma das latinhas. Elisa
não sabia o que falar nem como fazer, já que tinha dito "não", não
esperava que depois de tanto tempo dessa vez ela também não a escutaria.
Lembrou-se de quando a convidava, antes da meia-noite, bem no fim da tarde, e
quando não aparecia, insistia que poderia aparecer ainda. Antes da meia-noite.
Poucas vezes apareceu. Menos ainda avisava que não apareceria ou se atrasaria.
Agora que Elisa não esperava mais, resolveu do nada vir com essas três e um
papo de como andava a vida.
- Onde
você estava numa hora dessa? Eu disse pra não vir. Pra que veio? Pra que veio
dessa vez?
Vinha da
casa de uma amiga, que por acaso morava bem perto dela, e não queria voltar
para casa com aquelas cervejas, então decidiu pegar o caminho mais longo,
totalmente contrário ao seu, para terminar de bebê-las. Apesar de acreditar que
dessa vez suportaria por mais tempo, já na segunda latinha a armadura de Elisa
trincou e foi posta de lado, deitou-se. Começaram a recordar das vezes que
voltavam para casa nessas madrugadas, na ponta dos pés, completamente ébrias.
Das vezes que as horas não batiam em nenhum dos juízos e que levavam com elas
bem mais do que três latinhas. Conversa ia e vinha, acusações ricocheteavam vez
em quando, entre afetos, lembranças, convicções e privações. Elisa não estava
totalmente segura de si nem dela. Ainda não entendia por que justo naquela
noite, com aquela desculpa esfarrapada, resolvera aparecer. Nada tinha
terminado bem. Nada tinha estado bem antes mesmo de terminar. E desde então
nada continuava nada bem. Apenas equilibrava-se numa lembrança e noutra, boas e
ruins. O que era péssimo, pois lembranças são como bolhas de sabão que
ludibriam e se dissipam no ar com o mais leve toque ou sem mais nem menos,
deixando somente o desejo de tê-las ou vê-las novamente, mas surgindo cada vez
mais frágeis.
- Não
ponha minhoca na cabeça, Elisa. Vim porque queria te ver, era só saudade, e
tinha essas cervejas, sei que você gosta, e sei que não dorme cedo. E também
sei quando não quer dizer não, mas mesmo assim diz. Só isso.
- Você
bebeu quantas antes de vir pra cá? Sei que só vem quando bebe ou precisa de
alguma coisa, sempre foi assim e sempre vai ser. Te odeio por isso.
- Odeia nada.
- E cadê aquela lá? Devia ter ido pra lá. Idiota.
- Mas vim pra cá.
Elisa não
imaginou que ali mesmo ela passaria o resto da noite, ou o início da manhã.
- E vai dormir aqui? Eu mereço.
O tempo
estava indeciso, nem dia nem noite. Nem claro, nem escuro. Como na primeira vez
em que passaram a noite juntas na casa dela, o colchão no chão, as janelas
entreabertas, a porta trancada e um copo d´água ao pé da cama. E como naquela
noite, veio um beijo. O mesmo beijo que revirou a vida de Elisa daquela noite
em diante, nunca soube se dali sua vida estava ao contrário ou do lado certo,
ou de cabeça pra baixo, ou virada pra lua. Se acordara ou adormecera. À meia
luz, entre farpas e carícias, um beijo, que se mostrou mais claro que o dia,
mas que dessa vez não chegou a clarear nada. Elisa disse não pela segunda vez.
Nem hesitou, nem pensou.
Não-ponha-minhoca-na-cabeça,
mentalizou, com vontade de afogá-la com a terceira cerveja. Te odeio por isso.
E a tomou sozinha.
segunda-feira, 19 de maio de 2014
Sobre a mesa
Amor é que nem cozinhar: tem quem doe, quem venda, quem compre, quem troque. Quem saiba, quem não saiba nem queira, quem tente, mas nunca acerte. Tem gente que gosta de cozinhar pra desconhecidos, fica lá na sua cozinha despejando tempero pra tudo que é gente, e ainda recebe por isso, dinheiro, obrigados em massa, simpáticos ou tímidos. Vem com nome, fama ou anonimato, mas não tira a mão da massa. Já tem gente que prefere um jantarzinho mais particular, vai às compras e escolhe cada ingrediente com esmero, nada muito maduro ou verde. Alguns cozinham aos montes. Outros, pequenas porções. Uns atentam pro sabor, outros, pra beleza. Há quem consiga os dois. Tem gente que prefere fazer o molho, outros gostam mesmo é de comprar pronto. Molho branco, tomate, madeira, 4 queijos, ervas finas. Tem quem pique tudo direitinho, tem quem jogue tudo logo na panela. Pimenta e sal a gosto. Uns optam por assados, fritos, cozidos, mal passados. Carne tem que ser bem suculenta. Tem o forno, o espeto, o óleo quente. Vegetarianos tratam de inventar de um tudo pra encantar mais e mais gente com outros temperos. Tem quem faça uma mistura de tudo e mais um pouco. Uns pensam no sabor, outros na balança. Tudo faz mal e faz bem, na quantidade ou na validade. Às vezes passa do ponto, às vezes queima, às vezes fica cru. Tem quem prefira plantar o que come, tem quem nunca nem tenha pensado nisso. Amor de cozinha começa na primeira semente que brota no pasto do outro lado do país, semente que cai das mãos suadas ou da boca de um pássaro que voa sem saber ainda pra onde vai.
A adversativa
A discriminação é mas
Tô de saia curta, mas não sou puta
Sou puta, mas me visto bem
Tenho barba, mas ando limpinho
Tomei banho, a barba é charme
Amo muito, mas não me acabo
Nem amo
Me acabo, mas chego em casa
Bebo muito, mas não dou na cara
E você que faz, mas
E ele que é, mas
Mas ela, que nem comento
Não tenho preconceito, mas
Olha, pelo menos
Eu sou assim
Nem tão assado.
domingo, 4 de maio de 2014
Superdose de vida
Os
comprimidos ordenados na cama como se quisesse pôr ordem no caos que
começou a sentir logo que chegara em casa. Cloridrato de amitriptilina,
para enurese noturna e tratamento de depressão. Contraindicado para
pessoas com tendência a encontrar-se constantemente rodeadas por caóticas
rotinas cheias de absolutamente nada, mas isso não dizia na bula. Sem
precauções nem advertências, buscava orientação em cada pílula, a traçar
linhas retas e semicírculos. Antes de tomá-las, uma a uma, mas num gole
só, o que a tomava era o vazio que ecoava entre as quatros paredes do
quarto. Sem carta, sem despedidas, sem desculpas, sem culpa. Aquele caos
que entrou com ela pela porta da frente vinha de outras vizinhanças, de
tempos mais remotos, de guerras mais civis e de romances mais
tempestuosos. Era o caos dormente de um domingo à noite que já anuncia os índices do
final de semana e é prólogo de mais uma segunda-feira de cinzas entre cacos de vida.
A taquicardia vinha forte, batendo na vida que há tempos sentia-se
morta. Agora ela sentia. Deitando na cama sem também pedir licença,
adormeceu ciente de um amanhã que não viria, ao lado dele que dormira
antes, sem boa noite, nem bom dia. O silêncio já era hóspede fixo.
Dois corpos frios numa cama desarrumada, a chuva a alagar as ruas,
afogando almas clandestinas que teimavam em sobreviver, e a bater, bater, bater e parar sem mais nem menos.
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