Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Andarilho

Poderia não ter ido andando até à faculdade. Estava relativamente perto, mas ainda assim longe. Preferiu ir andando. Fones no ouvido, volume ao máximo, música qualquer e aleatória, sol forte de meio-dia e passos apressados esbarrando na calma de seu caminhar. Por alguns instantes, perdeu-se do caminho, deve ter entrado numa ruazinha sem querer, um pequeno desvio de atenção, mesmo conhecendo todos aqueles caminhos. Não teve receios nem cansaço, continuaria andando, cortando ruas agora desconhecidas, até que retornasse aos passos de antes. Foi entre esses passos inseguros, mas insistentes, que também perdeu o pensamento que tanto a atormentava naqueles dias.

"Se um dia fores embora, te amarei bem mais do que essa hora", as perdas de novo. Havia culpa, a quem culpar? Preferia não pensar tanto, apenas andar sob o sol do meio-dia. Nada mais. Como se aquele calor pudesse derreter o que havia restado, dia-a-dia transpirasse mais uma perda. Sempre perdendo. "Fiquei tentado ao jogo de te ver só", de te perder, murmurou. Não, não somos nós que complicamos, é deveras complicado, pensava. Complicado por ser simples demais. É só isso, é apenas aquilo, somente, simplesmente. E essa quebra de braço está piorando tudo! acendeu um cigarro. Poderia manter-se assim, caminhando, evitando aqueles pensamentos em cada passo cuidadoso pra não tropeçar em alguma pedra ou escorregar em alguma poça, poderia continuar andando ou até mesmo correndo, com os fones no ouvido, a música qualquer e as pressas alheias. Mas percebeu que já estava ali, exatamente ali e pensando. E perdendo. E andando. E sentindo. Não queria mais sentir, estava cansada, estava muito cansada e com os pés machucados. Quanto mais andasse, mais sentiria, mais adormeceria, mais calejaria. E andava. Os passos às vezes se confundiam e ela pensava, esquecia dos cuidados e se perdia. Ou se perdia, esquecia dos cuidados e pensava.

"Eu vou lá, que andar é reconhecer", e ela reconheceu aquela rua que dobrava a próxima esquina, depois da pedra mal colocada que desequilibrou aqueles passos e aquele caminho encontrado, um acaso. O sangue e a sensação agora a faziam perceber-se viva, uma vida de cor e dor forte, sentida. Olhou para os lados, ninguém, além da calçada, do sangue e da sensação, sorriu, pensou em sentar no acostamento, doía, mas precisava continuar. Mancando, seguiu pelas beiradas, pensando, esquecendo, lembrando. Por quê? Um fim tão instantâneo em tanto sentimento e tanta vontade de arrancá-lo dali, do fim, do começo, de qualquer recordação, de qualquer incômodo. Doía. Em cada passo, uma mágoa, uma saudade, entre cada passada, um passado que construia as superfícies das calçadas. Andava. Anestesiada, os pés sujos, o sangue estancado, o suor contido, entrou na sala. Lá estava ele, suado, talvez tivesse andado também.

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