Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O cemitério dos suicidas

Era sempre assim, alguém reservava horário, preenchia a papelada, recebia o material necessário e ia pra casa. No dia seguinte, como combinado, eles iam lá e recolhiam o corpo. Por vezes, havia velório, mas a maioria optava por simplesmente ir de uma vez, sem pós-despedidas, somente deixando a carta de intenção que ficava junto aos outros formulários: para público geral ou destinatários específicos. Era um ótimo negócio, bastava uma salinha, um arquivo e um terreno bem cuidado. Em tão pouco tempo, com a legalização do suicídio, já tinha alcance nacional. Publicidade e propaganda quase não precisava, afinal, todo mundo é um suicida em potencial: “Escapulários: a cura pela autonomia. Totalmente seguro, insensível e indolor, qualidade garantida!”.

Não era como as funerárias e cemitérios comuns, não refletiam nada fúnebre nem precisavam abusar dos verdes campos e suas flores, eram até bem felizes e saudáveis, de fato. Mas havia um problema que começava a se alastrar: na boca do povo ecoava o chamado Cemitério dos Suicidas, e isso ia cada vez mais se espalhando pelo país, o que não era nem um pouco bom para a imagem da empresa que pretendia expandir os negócios aos países vizinhos e, em breve, mundialmente. É que suicídio e seus derivados não soavam bem para ramo nenhum, a palavra ainda era carregada demais para a economia. Foi então que Seu Enzo, pioneiro e maior empresário do mercado suicida, idealizador e dono único da Escapulários, decidiu contratar um linguista renomado e um especialista em marketing para lidar com esse contratempo.

Depois de complexas, fundamentadas e calorosas discussões entre os dois, e de descartar a ideia de abolir a palavra do dicionário, chegou-se à simples conclusão: a solução seria descarregar o peso da palavra popularizada, atribuindo valor de mercado e inserindo na mídia um termo alternativo para aqueles que sem os devidos aparatos regularizados decidiam tirar a própria vida. Dentro das condições legais, o suicídio, enfim, seria naturalizado, legal e popular, e a corporação poderia continuar com seu nome de registro e seu nome vulgar sem maiores danos.

Com isso, aos poucos, foram surgindo os chamados sáfaros, indivíduos que simplesmente se matavam sem registro na Escapulários, que passou a ser obrigatório, sendo enterrados em cemitérios comuns junto aos outros, causando um grande misto de classes: ali não se sabia mais quem morrera de morte morrida e de morte matada, informação imprescindível para manter o controle de mortalidade. Nisso, Seu Enzo logo recorreu ao poder público, não lhe bastasse o primeiro incidente de nomenclatura, agora vinham com essa de burlar o sistema de Cadastro Suicida Obrigatório (CSO). Além do mais, não somente a empresa estava sendo afetada, mas toda a sociedade, tudo se encontrava à beira de um colapso: economia, segurança, saúde. Disso, Seu Enzo fez um acordo com o Governo e, aliados, implementaram o Seguro Nacional Suicida, vinculado à Escapulários. Cada cidadão ou cidadã tinha mais um direito garantido. A taxa era cobrada mensalmente e, para maior comodidade, inclusa na conta da luz.

Com essa medida, a economia do país alavancou, os altos índices de ocupação de leitos nos hospitais diminuíram e os sáfaros reduziram consideravelmente, de início, não se morria mais de qualquer forma, o selo E estava garantido a todos. Só que essa paz durou muito pouco tempo, pois nem todos tinham condições de contribuir com mais uma taxa, tampouco com a iluminação que vinha cada vez mais cara. Logo os grupos que iam ficando no escuro já com o por do sol começaram a se aglomerar nos litorais das cidades: improvisavam casas com restos de madeira que iam encontrando pelo caminho e se mantinham a partir dos bairros vizinhos, onde batiam de porta em porta. Os litorais começaram a ser isolados, salvo poucos que serviam ao lazer e turismo cidadão e eram mantidos a duras penas pela segurança preventiva e apropriadamente equipada. Enquanto isso, todo o resto ia servindo de abrigo mais e mais a comunidades inteiras.

Não se entendia ao certo o que causara tamanha crise, mas, por enquanto, ignoravam isso, pois a ordem das metrópoles estava abalada, as taxas de suicídio ilegal haviam crescido, os sáfaros estavam superlotando os cemitérios, o suicídio legal estava perdendo a credibilidade, o que provocava aumentos abusivos nas taxas suicidas, e a economia mundial estava sendo afetada. Após incansáveis discussões e negociações entre ministérios, secretarias e coordenadorias, foi decretado estado de emergência e o Governo não teve outra opção a não ser regulamentar mais uma lei de proibição, que saiu imediatamente clara e concisa, sem mais formalidades, em todos os jornais do país, inclusive nos jornaizinhos de bairro. A partir daquela data de publicação, ficou terminantemente proibido o suicídio sáfaro, sob pena de multa, reclusão e capital ao indivíduo direta ou indiretamente responsável pelo indigente.

Um comentário:

Joao Antonio Ventura disse...

Muito bom, Suelene! Parabéns! Abraços.