Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

terça-feira, 29 de março de 2011

Ruídos

 J.

E de tanto olhar ela se foi, porque de tanto só olhar contive minhas mãos, não soube agarrá-la de uma só vez, prendê-la entre meus dedos e dizer "nunca vá embora!", e ela se foi. Tive o gosto em minha boca, até em meu corpo, mas em minhas mãos não a tive, nunca, por pura covardia, minha ou dela, vai saber, ou traduzir. Se foi sem ao menos sentir o gostinho gostoso e egoísta de dizê-la minha, anda por ai noutras mãos e braços, sendo doutros, outra, estando noutra, ainda que por mim inteira, toda, pois sei que ainda a tenho, apesar de não ser nenhum pouco minha, nem sido um dia, apenas naquele dia, se foi. Vejo por ai passando, intocável, e por mágoa ou raiva privo meus toques e olhares. Vejo por aqui o que poderia ter sido e não foi, nem queria, ou era tudo o que tinha e não tive cuidado, que perdi e por culpa reneguei o que sempre quis, disse não importa, nunca quis. Vejo passar, parar, voltar, ao longe, me vejo partindo sem ir, deixando sem ter, perdendo sem achar. Partido, deixado e perdido. Talvez me esqueça ao atravessar numa esquina de braços dados com outro ou durante um cinema, um filme clichê, talvez me esqueça bebendo um café ou num papo com qualquer desconhecido. Talvez, ou quem sabe, ou talvez nem nada ou tudo. Me confundo ao vê-la de canto de olho, ela é confusão, total incoerência, desconjuntada, que me desconfigura só com o andar, ou com a aliança, com o vestido, ou com o salto alto, com a majestade, ou com a imaturidade, pois é criança, mas também mulher, minha e doutro. Um dia me falou das nossas canções, dos nossos descompassos, dos poréns, e eu, que nunca soube bem o que dizer, só ouvi, morrendo de vontade de dizer que... Não havia como dizer nem como ouvir, pois era encanto o que sentia, era cama o que faltava, era cheiro impregnado que me tampava e tapava tudo o mais. Ah mulher, como me escapou, se foi assim e deu tuas mãos a outras mãos?  Te dei tão fácil, ou sequer foi um dia minha? Dei, daria, talvez nem há esse tal de "ser minha", apesar de contigo a toda hora haver o "estar minha", mas, sim, me faço agente executor deste descuido, descaso, me ponho em total primeira pessoa, te jogando pelos cantos, me pondo pelos meios e fins. Enfim, foi-se, desritmou-se qualquer canção, súbito, bem no ápice do refrão, você sabe qual.

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