Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Bem quente, por favor

Parei de fumar há um ano, onze meses e sete dias. Nunca gostei muito de café, a não ser com muito leite, mas há algum tempo tenho me atraído pela harmonia das contradições. Assim como me atrai por ti e te trai por muito tempo, me enganando entre tantas doações. Cada uma, um certificado, te amava de verdade, te amei, ou te amo. Ainda? Está amargo demais o café, mais açúcar! que minha saliva só aguenta um veneno por vez, e desta vez, quente.

Foi numa relação incoerente como aquela que saciei minha sede inconsciente pelo amargo e suportei a falta que nem fez aquele cigarro barato, numa roda torta que me lançava longe e me arrastava pelo gramado falho até à praia, onde enfim me feria com todos aqueles grãos antes de me afogar no mar, e me salvar. Às vezes fico pensando nessa dependência disfarçada que cada um tem de torturar o outro com palavras ásperas sutilmente lançadas num encontro quase que mortal de salivas, cuspindo noite afora até recolher o veneno apropriado e agarrando as mãos entre outras e corpos despidos, já vulneráveis e atentos a um amanhecer promissor. Adormeci no melhor veneno que uma noite me trouxe, cega e sem nicotina. Permaneci noturna e limpa, quebrada, surda, enxergando com as mãos aquele veneno que aos poucos me corroia e me mantinha sóbria e que hoje em falta me causa ânsias, deturpa o meu reflexo, agora nítido e embriagado. Como ia dizendo, falta açúcar e sobra falta, vou bebendo o café mesmo amargo, quente, autoflagelando a saliva, até que fique insensível a qualquer outro sabor. Não diria masoquismo, nem sadismo, de torturas as impressões distintas confundem etimologias, falo de outras origens e fins, falo de suprimento, de preencher com nada aquilo que se ausentou sem deixar recado na porta da geladeira, nem mesmo no espelho do banheiro, de reação singular, julgada ali e acolá, admitida, recusada ou simplesmente despercebida. Ao lado, na pia, percebi na borra do café que tenho esse estranho respeito pelo estranho do outro que me tenta, nunca tive pelo meu outro, mas pelo do outro, como se tentasse pôr ordem no meu próprio, enxergando o estranho do outro, nunca o trai. Trai sim, meu outro, quatro ou sete vezes, e só reafirmei o meu amor, esse amor torto, amor? Trairia mais pra sustentar a queda, soprando e soprando numa tentativa ingênua de nunca deixar cair. E caiu, e ainda traio, resgatando qualquer falha nas paredes de um abismo retilíneo pra escalar de volta ao topo, ao auge, e me jogar de novo, e de novo, até que meu corpo se torne invulnerável e alcance aquilo que chamam de plenitude. Pleno não sei de quê, essas filosofias ainda me confundem, acho que porque não acredito mesmo num fim pleno, mas num pleno fim, tentam disfarçar pelos cantinhos do caderno essas obviedades que cada vez mais me tornam cretina, bebendo o café mesmo que amargo à espera do açúcar, que furtaram. Odeio furtos, fazem me sentir a pessoa mais débil do instante, todos veem e eu, cega, sou furtada. Pura cegueira emocional, que deixa tremulas as pernas que um dia já correram por ai sem medo de cair, nem pensavam em cair, mas caia. E esquecia. Hoje lembro de quase tudo, só não do primeiro beijo, da primeira transa, dos teus defeitos que me deixam irada na hora em que, louca, quero tanto te ligar, e de outros detalhes importantes que já passaram da validade, um curto prazo. Lembro do açúcar, cadê?

Um ano, onze meses e oito dias. Quebro o jejum e aguardo a próxima ordem de cessar fogo, sempre fazendo tudo errado pra que venha esse maldito vício e me faça parar, talvez por 2 anos, quem sabe, ou mais, ou menos. Açúcar? Ou café?

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