Os
 comprimidos ordenados na cama como se quisesse pôr ordem no caos que 
começou a sentir logo que chegara em casa. Cloridrato de amitriptilina, 
para enurese noturna e tratamento de depressão. Contraindicado para 
pessoas com tendência a encontrar-se constantemente rodeadas por caóticas
 rotinas cheias de absolutamente nada, mas isso não dizia na bula. Sem 
precauções nem advertências, buscava orientação em cada pílula, a traçar 
linhas retas e semicírculos. Antes de tomá-las, uma a uma, mas num gole 
só, o que a tomava era o vazio que ecoava entre as quatros paredes do 
quarto. Sem carta, sem despedidas, sem desculpas, sem culpa. Aquele caos
 que entrou com ela pela porta da frente vinha de outras vizinhanças, de
 tempos mais remotos, de guerras mais civis e de romances mais 
tempestuosos. Era o caos dormente de um domingo à noite que já anuncia os índices do
 final de semana e é prólogo de mais uma segunda-feira de cinzas entre cacos de vida.
 A taquicardia vinha forte, batendo na vida que há tempos sentia-se 
morta. Agora ela sentia. Deitando na cama sem também pedir licença, 
adormeceu ciente de um amanhã que não viria, ao lado dele que dormira 
antes, sem boa noite, nem bom dia. O silêncio já era hóspede fixo.
 Dois corpos frios numa cama desarrumada, a chuva a alagar as ruas, 
afogando almas clandestinas que teimavam em sobreviver, e a bater, bater, bater e parar sem mais nem menos.
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