Deitada
numa rede, a taça próxima a um dos chinelos, o outro perdido talvez pelo
caminho traçado algumas vezes até à cozinha, o cinzeiro ainda sem nenhuma
bituca de cigarro, o maço ainda intocável, a roupa antiga a exalar perfumes ainda
impregnados na memória, e o céu sem nenhuma lua aparente, apenas algumas
nuvens, já muitas estrelas, um blues na vitrola. Era quase noite. Talvez ela já
fosse noite com o vinho a torcer as horas desde cedo, à parte do relógio da
cabeceira sempre incerto ao tempo lá fora. Meio vazia, quase esquecida ali no
chão, trocada por pensamentos frouxos que ela mesma trouxe à tona.
Lembrava-se
dele na varanda, apenas com aquele short acima dos joelhos, uma canção, um
samba, a estampa de flores, o aroma de flores, os cabelos de flores, bebia no
copo que noutro dia esquecera de deixar no bar, ébrio até a tampa. – Um brinde
ao bom vinho tomado em goles brutos num copo de bar! – dizia depreciativo. Não
era rude, apenas indelicado. Era o rapaz mais sensível que havia naquela noite,
naquele bar, completamente bêbado e alheio ao tempo moral. Cuspia palavras e
palavrões como quem cuida de jardins. – Indelicado, mas sensível – ela comentou
com a amiga ao lado que já não sabia se ouvia aqui, ali ou acolá. Por vezes
arriscou ir até lá, ou esbarrar, ou cruzar olhares, mas a verdade é que ele a
intimidava como nenhum outro. Isso a incitava mais entre fazer e não fazer, ir
ou não ir, enquanto distraia o olhar com o teto, os garçons, os outros bêbados.
– Nunca dê as flores, espere os frutos!(?) – disse uma voz meio rouca e incerta,
ele. Dali em diante quase não há lembranças do que conversaram naquela já tão
alta madrugada, de certo plantaram tudo o que tinham pelos dias que passaram
sem pressa até o final das férias, janeiro ou fevereiro. Passaram-se anos. Ou
talvez pararam-se anos. Dois ou cinco ou sete. Um jardim na frente da casa,
outro atrás. Cinco amigos, seis taças de vinho e um copo de bar. Olhava pela
janela todas as memórias que agora passavam ali embaixo, pelos cantos do
quintal, todos os fins de sábado, as ressacas de domingo, as segundas de atraso
e pressa. Sexta-feira à noite, quando ele trazia o vinho numa das mãos, o copo
e a taça na outra, brindava a tudo e a nada, sentava-se ao pé da rede na
varanda, acendia o cigarro, escorria as mãos pelos cabelos dela e ali ficava a
falar sobre flores e ervas daninhas.
Esperou
pelos frutos das flores que ele tanto falava. Oito anos talvez? Oito ou nove,
quem sabe dez. Olhando o mesmo quintal, a esperar pelos malditos frutos. Até
deu todas as flores, mas nada. Nada, além do quintal e suas ervas daninhas
insistentes, nunca cativadas. Nessa noite de janeiro, ela e a taça,
completamente cheia outra vez, agora esperam sem mais contar os minutos, talvez
pelos mesmos frutos que o levaram a manter um jardim secreto dentro de si, onde
aquela doença o explorava dia após dia, e o deixava mudo a aceitar o que era
colhido com a mesma insanidade passional do rapaz do bar de anos atrás,
sensível e indelicado, que insistia em plantar flores na mesma terra que lhe
corroia os pés.