Tudo
começou a partir de uma interrogação. E de uma planta. Depois de muito tempo,
Bárbara finalmente resolveu mudar os móveis de lugar. Como costumava quando
criança, até fez um esboço antes de onde cada coisinha se encaixaria em seu
espaço já não tão frequentado, agora sendo apenas lugar de repouso, ou de
ressaca. Ao mover a mesinha de cabeceira, logo deu de cara com um caminho, uma
longa estradinha de cupins, que dava direto ao guarda-roupa, onde, retirando de
imediato as gavetas, havia uma comunidade inteira deles a corroer papéis velhos
e sacolas, roupas e fotos antigas que ela guardava uma a uma como lembrança de
algum momento que considerava especial em sua vida. O problema é que
praticamente todos os momentos eram especiais, cada dia que passava, dentro ou
fora de casa, lhe parecia uma memória a ser guardava em qualquer espaço vago
que ainda sobrava em seu quarto. Lembranças que agora, dia após dia, estavam
sendo devoradas pelos cupins. Algumas coisas, tomando mesmo o sentido mais
abrangente de “coisa”, simplesmente não podem permanecer estáticas. Livros,
fotografias, brinquedos, chaveiros, pessoas, sentimentos, deixando-os guardados
em qualquer lugar, por mais seguro que seja, um dia correm o risco de serem
tomados por pragas como essa, que pouco a pouco destruía cada memória de
Bárbara. É preciso mudar os móveis de lugar, revirar as gavetas, tirar o mofo
das roupas, em dias de chuva, principalmente. Muitas pessoas, assim como ela,
acreditam que guardar as coisas num lugar seco basta para dá-las a eternidade
que precisam. É uma pena que Bárbara não se lembrou dos cupins, quase perdeu a
fotografia inteira de sua formatura. Essas pragas aparecem onde menos esperamos
e, por vezes, veneno algum impede que voltem ao mesmo lugar. Bárbara perdeu
duas gavetas inteiras, algumas roupas não perderam o tom, mas se guardaram
cheias de pequenos buracos, já os papéis, esses não puderam evitar o lixo.
Alguns
dias depois, e pulverizadas de dois ou três venenos indicados pela internet, os
cupins pararam de se procriar aos arredores de seu quarto, salvo alguns poucos
que partiram para o quarto vizinho, o que já não lhe cabia. Dali, decidiu
também dar um jeito no banheiro, mais para jogar alguns utensílios fora, agora
não tão úteis assim, como algumas escovas de dente ali deixadas, ou esquecidas.
Bem num dos quatro cantos, sentiu falta de algo. Nunca havia lhe tomado tal
sentimento, pois também há tempos não reparava naquele lugar. Não tendo
conhecimento dessa falta, não soube o que fazer, simplesmente tomou banho e
saiu, em cima da hora como quase sempre saia. A ideia era encontrar uma amiga
num barzinho e partir para o shopping, o ano se iniciava e quase tudo estava em
liquidação, não que fosse assim tão consumista, muito pelo contrário. Precisava
de algumas coisas desde o ano anterior e esperou que as festas insanas de fim
de ano passassem, pois tudo ficava mais pacífico e barato. O barzinho, porém,
ficou para depois. Não aproveitou para comprar novos móveis, os seus ajeitaria
ela mesma com um pouco de cola, prego e madeira. Passando pela floricultura,
onde nunca antes sequer encarou por mais de cinco segundos, veio o estalo que
precisava para aquele canto do banheiro. Sim, talvez alguma planta, não com
flores, simplesmente planta, nem tão colorida, apenas as mais puras folhas
verdes. Essa não encontrou ali, também não quis ir à outra floricultura,
aproveitou a viagem e levou uma que estava também num canto não muito visível
da lojinha. Nem sequer perguntou o nome. Decidira depois dos cupins não se
apegar tanto a muitas coisas, além do momento em si e dos próximos que poderiam
vir a partir deles. O que esperava depois daquela plantinha? Talvez mais vida
num lugar tão estático, ou talvez logo folhas secas a negá-lo.
Ceiça
estranhou a atitude da amiga: – Primeiro entra numa floricultura e agora compra
uma planta! Me diz, o que te aconteceu de ontem pra hoje? –, e encarou até que
viesse uma resposta, mas antes de qualquer balbucio da amiga, arriscou: – Foi
um péssimo término, até sem sentido nenhum, cada um pro seu lado, mas você aqui
de um certo jeito tão encantada, começo a duvidar do mundo. Quase em transe,
Bárbara apenas sorriu, balançou a cabeça e disse: – Ah, tanta coisa mudou mais
fora do que dentro de mim, que não sei se comprei essa plantinha pelo ajuste de
salário ou se porque me sinto mais delicada a cada dia que passo naquela casa
mais sozinha do que acompanhada. Falar nisso, você deveria ir lá mais vezes,
sinto falta das nossas conversas sóbrias, dos filmes e das discussões
fervorosas por desavenças tão banais. Mas, por ora, aproveitando essa sexta, já
marquei com o pessoal lá no barzinho, voltar pra casa só com essas compras é
que não volto, (tenho conseguido me virar bem sem ele. Tenho até estado bem, já
não encho os outros com meus lamentos, há tempos, apesar de ainda me pegar
chorando sozinha. Talvez nem me escutem mais, ou talvez eu que não diga mais
nada com nada mesmo. Os amores continuam passando por aqui, mas agora como
fantasmas vigilantes à espera da minha, enfim, desistência e rendição. A
verdade é que não morro mais por amor, que fiquem a me rondar e fazer
companhia, mas não morro. Pois morrer é virar do avesso, é a certeza de nunca
mais poder tocá-lo com as mãos da primeira vez, aquelas que se entrelaçaram, me
deixando segura ao atravessar a rua, me querendo pulsante do outro lado, por
quanto tempo, por onde fosse e como desse. Vivendo por amor, cercada pelo que
poderia ser, atormentada por fantasmas de possibilidades e pelo amor que um dia
foi dele, tenho conseguido até me virar bem. Já não me incomoda ele ter me
virado as costas), não hoje. A amiga, reconhecendo Bárbara, deu uma gargalhada:
– Agora sim, Bárbara, já estava ficando preocupada.