Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro tornar-se cinzas?
(F. Nietzsche)

domingo, 21 de junho de 2015

O que fica

Começou quando fui atrás das caixas vazias pra juntar tudo o que tenho e levar comigo. Não foi simples, algumas coisas tive de colocar em sacolas; descobri que não é fácil encontrar caixas vazias. Fui abrindo meus armários e gavetas, resgatando tudo o que podia, quase não deixei nada pra trás, nem memória nem papel. Algumas lembranças vazaram, escorreram por entre a poeira e alguns objetos quebrados que iam se juntando no canto do quarto. Fui vendo anos e anos da minha vida sendo empacotados e preparados pra se fixarem num lugar totalmente desconhecido, nada resistia à mudança. Foi quando eu me vi guardando na mala uma camiseta que não reconhecia. O cheiro se misturava ao meu como se me pertencesse, mas não era minha. Era de um tamanho mediano, de uma cor que me agradava, o corte desencontrado, cabia perfeitamente em mim, mas não era minha. E eu não conseguia me lembrar de quem poderia ser ou ter sido a essa altura. De qualquer forma, resolvi guardar na mala. O caminhão da mudança, com todas as minhas coisas e intenções, havia partido antes de mim, e com tudo já encaminhado, rumo à casa nova, fui ao carro pensando apenas naquela camiseta, nos braços que já tivera vestido, no cheiro, nas dobras que já pudera ter tido, no percurso e na chegada que me precederia. Quando decidi partir, decidi por vontade e obrigação deixar tudo pra trás. Ilusão a minha. A única coisa que ficou pra trás nessa viagem toda foi a minha vontade de ir, deixando tudo o que pudesse, levando tudo o que podia. E tudo chegou antes de mim, inclusive a minha saudade que se confundia com uma camiseta, agora reconhecida: fora esquecida no canto da cama quando ela, ao acaso, veio parar na minha vida pela última vez. E se aquela ficou na cama, alguma minha foi com ela. Era ela. E no meu apego desenfreado, nessa mania de não querer deixar nada de lado, percebi que toda aquela mudança havia sido em vão. Então minha partida, que deveria ter sido uma despedida definitiva, acabou virando a história que começaria depois do ponto final: já nos primeiros passos, fechando a primeira porta, reservei a camiseta que não era minha, mas que me cabia perfeitamente, no lugar mais visível, como se esperasse por outra visita, que dessa vez não esquecesse mais nada, nem me tirasse.

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